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2 CURRÍCULO, CULTURA E RELAÇÕES DE PODER: CRUZAMENTOS E

2.2 APROXIMAÇÕES COM O AMBIENTE EM TORNO DO CURRÍCULO

Estou perscrutando o currículo como um campo intelectual de problematização, como elemento do campo social que necessita ser questionado, ou seja, existe espaço para se plantar perguntas, para aprofundamentos. Uma vez imaginado como algo que possui significado politizado, logo percebe-se que há discordância, e a análise dessa discordância está explícita aqui.

Independentemente do que esteja definido em documentos formais do Ministério da Educação e das secretarias estaduais e municipais de educação não se pode deixar de perceber que seus contornos dependem de determinadas condições, ligado a uma determinada sociedade composta por grupos que ocupam diferentes posições na hierarquia social, econômica e cultura. A decisão do que estará vigorando nas práticas curriculares não é algo pacífico, apenas superficialmente aparece como um conteúdo sobre o qual todos concordam.

Isso ficará muito explícito ao longo desta dissertação. Quer dizer, existe uma negociação intensa, as vezes tácita e quase sempre conflituosa em torno do currículo, desde o seu plano macro até o principal âmbito que é o que analisaremos aqui: o da sala de aula, onde o currículo também é produzido cotidianamente.

Olhando para esse cotidiano, não parece novidade que estamos envolvidos na tessitura de uma trama em que sexismo, homofobia, transfobia e tantas outras formas de discriminação produzem efeitos que, apesar de nossas intenções, terminamos muitas vezes por promover sua perpetuação. Na dinâmica do cotidiano, somos chamados a confrontos no âmbito da atuação profissional, onde, muitas vezes, ocorre um consumismo negligente da linguagem e da ação repetitiva em um espaço cheio de falas prontas facilmente suscetível a reprodução de clichês, certezas e posturas carregadas de expressões preconceituosas. Estamos expostos e vulneráveis a essas situações por sermos permeáveis e carregarmos incertezas, dificuldades e perplexidades que afinam e desafinam.

Pérez Gómez (1993) reconhece a escola “como espaço ecológico” de cruzamento, de influencias plurais que de forma permanente nos atingem e atravessam. Esse autor sugere buscarmos nesse espaço, afinar a percepção dos funcionamentos subjacentes à ação professoral, sem que haja, no entanto, uma determinação mecânica causa e efeito. Essa ideia que parece bastante coerente se encaixa de modo muito apropriado dentro deste estudo, que compartilhando das práticas curriculares como organização temporal, busca estudá-las de

maneira historicista, levando em consideração as razões históricas pelas quais determinadas ações pedagógicas atuam de um modo preconceituoso ou discriminatório, excludente.

Supor a existência de uma prática discriminatória e preconceituosa na educação infantil pode gerar uma certa descrença em relação a sua sistematicidade já que as crianças estão ali justamente para serem protegidas e acolhidas. A menos que por um caso específico isolado, pode parecer improvável que haja uma regularidade de situações em que elas sejam sujeitas a exposição de símbolos e códigos sexistas, machistas, heterocentristas, isso porque são práticas naturalizadas, portanto absolutamente cotidianas e desapercebidas na imensa maioria das situações.

A padronização de expectativa de comportamento estereotipados associados a meninos e a meninas, é uma dessas práticas. Esta pesquisa mostra que quando o assunto é gênero e sexualidade algumas salas de aula se transformam, em pontos de apoio onde práticas sexistas permeiam as atividades pedagógicas diárias, se naturalizando como uma forma viável e produtiva para introduzir as crianças no jogo de regras do gênero binário.

Pouco a pouco, através de reforços diários na convivência entre as crianças reforça- se a importância de não transgredir o que é socialmente determinado para cada gênero. Sem se desfazer da docilidade, direcionamentos são planejados e executados para garantirem que cada criança de acordo com seu sexo passe a reconhecer e se identificar com as atividades do gênero pré-determinado pela sua morfologia. Claro que essa separação apresenta algumas flexibilizações, borramentos de fronteiras já advindos de avanços históricos onde na cultura alterou-se os limites daquilo que é autorizado como sendo “natural” ou permitido para cada sexo, e logo essas redefinições passaram funcionar como prescrições autorizadas desde que observem a ordem, inseparável sexo-gênero.

Na sala de aula há diversos aparatos pedagógicos operando para que cada criança se reconheça como uma pessoa humana e reconheça o mundo em que está inserida, para que ocorra o funcionamento bem-sucedido dessa tarefa entre muitas outras referências a diferenciação dos papeis de sexo e gênero são umas das que mais se recorre pois se relacionam com a busca da formação da identidade que seria fundamental para os seres humanos em cada sociedade.

É nesse espaço que identificamos a materialização de uma prática curricular propriamente dita, ou falando de uma forma mais clara, como xs professorxs incorporam elementos e dinâmicas, através de sua função política, que ganham real existência na vida dos

sujeitos. Não se trata de uma intervenção puramente técnica-instrumental, neutra. Nela reside um forte componente da dimensão da ação da experiência histórica e cultural, em que dificilmente encontramos um procedimento padrão rígido entre xs professorxs, ou seja, ele ocorre por discernimentos mais ou menos individuais, particulares.

Mesmo sabendo da importância da microação particular professoral, é preciso procurar relacioná-la a dimensões mais amplas. Se pensarmos a educação como projeto amplo de questionamento social teremos o currículo como uma das principais portas de entrada por onde podemos começar movimentos de averiguação de suas agencias, suas fronteiras, suas “convulsões”. A educação e o currículo parecem sempre se atrelar a dimensões conflituosas de classe, raça, religião, sexo, gênero e outras. Reconhecer as múltiplas estruturas de desigualdade inscritas nas suas narrativas parece ser um caminho bastante viável para sair fora do quadro totalizante e homogêneo que o cerca, tendo em vista a criação de um espaço de diálogo e de articulação entre diferentes interesses sociais.

Desde já, eclode esse gosto por politizá-lo, me proponho a enxergar o currículo como fato político e como instrumento de poder (VEIGA-NETO, 2002). As instituições, no caso específico deste estudo, de educação infantil, ao praticá-lo através da prática pedagógica criam dinâmicas que mostram variações em diferentes níveis, inclusive paradoxais, que se vinculam a ideologias, teorias, estruturas sociais, poder, cultura e a opções dentro desses âmbitos.

Problematizar seus códigos, seus conteúdos, suas formas, seus rituais e também seus silêncios tem sido uma preocupação, uma urgência, já que possui o efeito de um processo vivenciador das transformações da sociedade. O que se traz ou se exclui dele, reverbera não somente numa organização institucional, como algo que possui um caráter de intencionalidade social, mas também interfere nas circunstâncias históricas, que podem ser ignoradas ou postas em evidência, fazendo, desta forma, outra coisa senão política.

Imaginemos então que as instituições de educação infantil não são ilhas imunes a todas as transformações e a toda estética que se movimenta fora dela. Há uma imensa pluralidade que circula no mundo onde as crianças se movimentam e onde, de um jeito ou de outro, são apresentadas sem necessariamente dependerem de nenhuma autorização. Afinal, ninguém tem a seu alcance a possibilidade total de ocultar, ao menos do ponto de vista prático, as pessoas trans, os homens gays, as mulheres lésbicas, a existência de casais homoafetivos, a existência filhos desses casais, assim como mulheres exercendo atividades consideradas

masculinas e também o contrário homens cumprindo papeis considerados femininos. A convivência com essas pessoas reais é inevitável até porque como bem observa Guacira Lopes Louro:

As muitas formas de experimentar prazeres e desejos, de dar e de receber afeto, de amar e de ser amada/o são ensaiadas e ensinadas na cultura. E hoje, mais do que nunca, essas formas são múltiplas. As possibilidades de viver os gêneros e as sexualidades ampliaram-se. As certezas acabaram. Tudo isso pode ser fascinante, rico e também desestabilizador (LOURO, 2008, p. 23).

Se as instituições de educação infantil a partir das práticas curriculares invisibilizam essa diversidade, terminam por praticar um tipo de política, discriminatória que ignora as violências historicamente cometidas contra esses sujeitos assim como ignora a proteção aos direitos da mulher, pessoas trans, homossexuais, e de como essas populações foram e ainda são discriminadas pela própria sociedade, cultura e seus governos. Não pode ser impróprio para nenhuma criança a possibilidade de crescer sabendo que homens e mulheres não dependem de seus sexos para constituir relações afetivas, trabalhar, se comportar, viver.

É estarrecedor, portanto, pensar que num mundo contemporâneo em que há um impressionante avanço da ciência e da tecnologia, uma imensa capacidade de contato entre povos e culturas, e uma colossal capacidade de acesso a informação, comunicação e ao conhecimento, tenhamos tanto ainda para avançar no respeito a diversidade, na tolerância, no combate a subalternidades e a radicalismos. Um ambiente educacional institucional contemporâneo onde presumidamente se tem um lugar onde diferentes sujeitos convivem e se desenvolvem humanamente não deveria propiciar a todxs acesso a recursos sociais fundamentais à diversidade da existência humana?

É importante que se perceba que esta é uma pergunta curricular e que ao posicioná- la aqui diretamente, estou intencionalmente definindo a ideia de currículo impressa neste trabalho, afinal, a resposta está longamente elaborada desde que iniciei essa escrita e continua a se desenvolver aqui, mas não somente.

Os elevadíssimos índices de violência contra mulheres, o massacre contra as travestis e transexuais, os abusos e discriminações contra os gays, lésbicas e outros acontecimentos de alto teor de ignorância e autoritarismo não se desenvolveriam se não encontrassem um clima socialmente propício, ou seja, essas violências dependem de padrões culturais que pulverizados atingem as mais diversas esferas da vida. Não podemos nos furtar a

combater essas injustiças a nível institucional em todas as fases do nosso desenvolvimento, isso porque desde muito cedo somos bombardeados por seus efeitos nefastos.

Esse cenário faz com que ser mulher ou um/uma LGBTI seja uma categoria política e como tal implica a nossa potência para combater a objetificação que nos é destinada deste muito cedo. Essa constatação ainda nos tempos de hoje nos fere profundamente, mas também nos move em direção ao enfrentamento. Sabemos que a invisibilidade que a educação institucional ajuda a manter, na maioria dos casos contribui para ausência do reconhecimento da dignidade dessa população9 por toda a vida escolar, assim como para o travamento de iniciativas que ainda na infância comuniquem a possibilidades da diversidade de expressões de vivenciar ou imaginar de muitas maneiras os nossos corpos, sentimentos, fantasias, afetos. Necessitamos encontrar lugar no currículo para enfrentar essas situações. Ele deve ser um catalisador de problemáticas como essas e não um imenso artefato em torno do qual se desenvolvam ações e instrumentos que limitem expressões de gênero a duas formas possíveis.

Estou me referindo a operadores10 que criam sentidos para as diferenças percebidas em nossos corpos e articula indivíduos, emoções e práticas dentro de uma estrutura de poder que pode, entre outros, refletir-se na exclusão escolar, no sofrimento pessoal, na reprodução de sujeitos intolerantes, no estabelecimento de limites e imposições que atingem pessoas na materialidade de suas existências, jogando-as para contextos de hostilidades.

Essa entre outas consequências violentas nos sensibiliza em relação a questões de gênero e até põe em dúvida se de fato estamos sob um Estado democrático e laico, do qual todos dependemos para sermos reconhecidos como cidadãos e cidadãs e exercer nossas liberdades e nossos direitos: “É num tempo como esse que nós educadores e educadoras nos vemos moralmente obrigados a fazer perguntas cruciais, vitais sobre nosso ofício e nosso papel, sobre nosso trabalho e nossa responsabilidade” (SILVA, 2001, p. 8).

Quando me refiro, talvez até excessivamente, a aspectos quase do campo de uma textualidade mais ativista é por constatar ao longo muito tempo de experiências pessoais e profissionais que as distinções de gênero são um forte componente da vida social, para o qual

9 De acordo com a pesquisa “Preconceito e Discriminação no Ambiente Escolar”, realizada pela Fundação

Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) a pedido do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), 93,5% dos entrevistados têm preconceito de gênero e 87,3% com relação à orientação sexual. A pesquisa pode ser consultada do endereço eletrônico:

<http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/diversidade_apresentacao.pdf>.

10 Esses operadores serão explorados no capítulo das análises, dizem respeito àquelas ações que são elaborados

para apontar, ensinar e fazer cumprir os limites de distinção entre os gêneros usando principalmente o corpo como parâmetro, mas não só ele.

suas energias tem realmente sido conduzidas a cada vez mais extremos e tem servido para rebaixar direitos básicos, possibilidades de convivências, de expressões de afetos, que sempre causam por algum ângulo em intensidades diversas efeitos marcantes no amplo processo itinerário de nossa formação identitária.

Além de que, como professor atuando na educação infantil tenho a oportunidade de percorrer esse território de fronteiras conflituosas, já que a infância é fonte de preocupações e projeções. Portanto um desafio sensível e inspirador. Sensível pelo significado que a infância possui em nosso tempo, como sendo um ponto de partida para a vida, para um futuro possível, e inspirador pelas inúmeras situações espontaneamente transgressoras e pela originalidade das mais inimagináveis perguntas e respostas de quem supostamente não sabe de nada.

É possível que sejam infindáveis as violências e formas de opressões que podemos experimentar. Igualmente intermináveis a energia humana da resistência. Esse jogo inesgotável de correlações de forças que nos atravessa e do qual ninguém escapa pode ser examinado em diferentes circunstancias e estabelecer múltiplos diálogos que envolvam diferentes tipos de subordinação e discriminação.

Evidente que aqui damos ênfase a um aspecto, qual seja, a questão do gênero e sexualidade. Ela é o fio puxado da malha, o elemento integrador por onde comecei a articular perguntas impacientes desse estudo, tencionando com as práticas específicas que dentro da escola de educação infantil cumprem a função de perceber, significar e agir sobre o gênero e a sexualidade das crianças pequenas.

É indispensável alertar que não é uma questão aqui neste trabalho perscrutar, conjecturar ou explicar a identidade de gênero, a orientação sexual ou desenvolvimento psíquico da sexualidade das crianças. Mas sim, escrutinar o jogo de forças em ação e diligencia no interesse em conformar essas identidades dentro das prescrições binárias, comprometendo o desenvolvimento de uma educação para igualdade e respeito de diferenças gênero desde a infância.

Isso nos faz compreender que xs professorxs exercem um sensível papel humanizador e por isso ético e político. O que significa ser gay, travesti, transexual, lésbica, o que são coisas de homem e coisas de mulher, portanto, qualquer sinal de desconformidade fora da linearidade homem-mulher heterossexual significa, muitas vezes, para elxs (professorxs) ir ao encontro de arranjos imperfeitos, degenerativos da condição humana. Tal interpretação faz

funcionar um “aparato de proteção” de que alguns comportamentos podem ser perigosos, danosos a formação das crianças.

Esses conteúdos que tenho mencionado aparecem sempre de maneira até recorrente tanto por estarem umbilicalmente ligados ao cerne do que é tratado aqui como por serem ressonâncias culturais diretamente implicadas com a produção de atos de significação dispersas nas práticas pedagógicas amparados em discursos científicos, discursos mediáticos, valores sociais, movimentos religiosos e diversas fontes justificadas pelos professores e professoras, como será possível perceber em suas falas.

Já que perscrutei uma série de manifestações importantes que alcançam o currículo e que está pesquisa precisou percebê-las, ainda que no começo de tudo, intuitivamente. Agora passo a compor os nexos conceituais que potencializam a forma como as inferições desta pesquisa.