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2 CURRÍCULO, CULTURA E RELAÇÕES DE PODER: CRUZAMENTOS E

2.5 O DESTAQUE DA CULTURA: UM EMPRÉSTIMO DOS ESTUDOS

É certo que talvez a própria reflexão sob a qual orbite todo o trabalho já esteja anunciada, algumas vezes explicada pela própria conexão de como currículo, cultura e poder estão mutualmente interligados através de práticas contextualmente específicas, ou seja, localizáveis. O maior desafio aqui é simplesmente explorar esse mecanismo no que ele

converge para subjetividades específicas de gênero e sexualidade na educação infantil através

de práticas curriculares específicas.

Apesar de ainda não ter me dedicado a essa convergência específica, discutirei o modo com o gênero e sexualidade estão sendo compreendidos em uma sessão no próximo capítulo, a partir principalmente de Butler (2010), Louro (2000; 2015) e Scott (1995). Na discussão me dedicarei a expor argumentos que possam demonstrar como que o gênero e a sexualidade são fortemente marcados pela cultura, meio no qual as práticas sociais são produzidas.

Até agora já assinalei por diversas vezes a importância que a cultura possui nesse estudo, em que as práticas sociais dentro dela expressam ou comunicam significados. Esclareço nesse momento, que o peso explicativo da cultura nesta investigação, foi elaborado principalmente a partir do ponto de vista do campo de estudos que elege a sociedade, as relações de poder e a cultura como uma questão, denominado: Estudos Culturais. No nosso caso, em sua vertente pós-estruturalista de inspiração foucaultiana. Costa, Silveira e Somer (2003, p. 39) salientam:

Os estudos culturais não constituem um conjunto articulado de ideias e pensamento. Como dizem os cronistas mais contundentes, eles são e sempre foram um conjunto de formações instáveis e descentradas [...] os Estudos Culturais se constituíram como projeto político de oposição, e suas movimentações sempre foram acompanhadas de transtorno, discussão, ansiedades instáveis e inquietudes.

Posso apontar também que não só a perspectiva do conceito de cultura, mas toda construção desta pesquisa traz ressonâncias desse campo, do modo como ele foi adjetivado acima, de forma que transita entre todas as sessões essa indisciplina estética e criativa que não se fixa a um padrão tradicional dissertativo que separa o raciocínio em câmeras e espaços definidos.

Em Costa, Silveira e Somer (2003), quando se dedicam a pensar a utilidade dos estudos culturais na Educação e na Pedagogia, indicam que esses estudos definem como fenômeno constitutivo das sociedades humanas a organização de um mecanismo diferenciador, ou seja, no seu interior surge marcadores de diferenças que definem por exemplo o adequado e o inadequado, o civilizado e não civilizado, o permitido e o não permitido. Em relação ao gênero e a sexualidade, será possível observar e pensar nisso ainda melhor no capítulo das análises em que um mecanismo diferenciador do normal e do anormal aparecerá constantemente nas narrativas dxs professorxs.

Refletir sobre esse embaraçamento, especialmente dentro da educação, que deveria ser um âmbito de expressividade do pensamento, de diálogo, de transformação e respeito à diversidade humana, não será a tábula da salvação, constato eu. Mas, estabelecer esse relacionamento de denúncia e exposição fortalecerá os processos de desconstrução e resistência para perfurar a blindagem e “desarmar” lógicas perversas que fazem do sexismo, da homofobia, transfobia e machismo sua bandeira delirante. Fazer frente as implicações e extensões desse contexto, tem constituído um projeto dos EC ao redor do mundo. Precisamos, portanto, abrir espaços de diálogo na educação para mudar as instituições para que elas sejam capazes de contemplar o outro e as contribuições dos Estudos Culturais me parece absolutamente relevante nessa reflexão.

Como já foi demonstrado anteriormente, o currículo não possui significado pleno em si, é na arena da convivência na cultura que se desenha suas formas, por isso mesmo, ele se aglutina pela intersecção em diferentes aparatos, com investimentos heterógenos, envolvendo diferentes práticas discursivas. Não é à toa que questões referentes ao currículo tem se constituído com frequência alvos de atenção de autoridades, e aparecido com persistência em matérias de revistas, textos de jornais, nos discursos de autoridades políticas, educacionais e religiosas, nas dúvidas dos pais.

Disso, o que se reúne para compor as propostas curriculares, aquelas que chegam aos professores como diretrizes ou referenciais, faz parte, antes de tudo, de um projeto que se constrói balizado por práticas sociais e desdobramentos da perspectiva cultura. Candau (2007, p. 18) explica um pouco como se dá essa montagem:

São uma construção e seleção de conhecimentos e práticas produzidas em contextos concretos e em dinâmicas sociais, políticas e culturais, intelectuais e pedagógicas. Conhecimentos e práticas expostos às novas dinâmicas e reinterpretados em cada contexto histórico. As indagações revelam que há entendimento de que os currículos são orientados pela dinâmica da sociedade.

Ao aterrissarem nas instituições educacionais, o processamento continua: “Currículo refere-se, portanto, à criação, recriação, contestação e transgressão” (MOREIRA e SILVA, 1994, p. 27). Sobre esse aspecto, creio que teremos oportunidade de examinarmos esses nuances a partir do que os próprios professores e professoras participantes desta pesquisa nos falaram, quando se detém a organização de suas práticas curriculares, especificamente aquelas associadas à condução do tema dessa pesquisa.

Por enquanto, o que é necessário é ter em mente que estudar o modo como ele se torna a ser o que é, a sua montagem pensado e posicionado para, no final, atingir certos fins, implica no abandono da percepção como produto homogêneo, acabado, monolítico, para perscrutar as nuances de sua configuração, por isso me dediquei tanto a explorar sua multidimensionalidade.

Sob a ênfase dada pelos estudos culturais na importância de se analisar o conjunto da produção cultural de uma sociedade podemos dar ao currículo escolar uma multifacetada e polissêmica extensão. Através da mestiçagem entre estudos culturais e estudos pós- estruturalistas, abre-se um corte profundo nas concepções tradicionais expondo seu “mecanismo vascular” em rede. Sua anatomia é inteiramente artificial, todo seu corpo é produzido, uma invenção sofisticada, constantemente sujeito a intervenções e suturas, em geral muito bem fechadas de modo a parecer natural: “O currículo é pensado como um conjunto de fatos, de conhecimentos e de informações, selecionados do estoque cultural mais amplo da sociedade, para serem transmitidos às crianças e aos jovens na escola” (SILVA, 1999, p. 12).

Sob essa visão perspectivista e interpretativa, seu caráter artificial e produzido abre um campo de novas interrogações e novas conexões tonalizando assim o currículo como porção

da cultura Silva (2010), mas cumpre observar, uma porção seletiva da cultura. Em outras

palavras, nem tudo da cultura é considerado válido. O processo de captura daquilo que deve ser valorizado acaba criando diversos embates constituindo com isso um território de disputa quase sempre adornado de muitas contradições e exclusões uma vez que existe mais de um repertório de sentidos.

Estamos lidando nesse caso com um panorama de fluxos, o que obviamente complica ainda mais na medida que se trata de uma arena de conflito social, por isso mesmo a cultura passa a ser incontornável nesse estudo. (LOPES; MACEDO, 2011). Vejamos um trecho

da obra Escola e Cultura em que o autor apresenta uma compreensão que nos ofereceu aporte para parte desse texto.

Cultura é o conjunto dos traços característicos do modo de vida de uma sociedade, de uma comunidade ou de um grupo, aí compreendidos os aspectos que se podem considerar como os mais cotidianos, os mais triviais ou os mais “inconfessáveis”. Esse é um conceito de cultura desenvolvido pelos sociólogos e não poderia satisfazer o pedagogo, na medida em que é preciso reconhecer que a educação implica um esforço voluntário, com vistas a conferir aos indivíduos (ou ajudar os indivíduos a adquirir) as qualidades, competências, disposições que se tem por relativamente ou intrinsecamente desejáveis e que para isso nem todos os componentes da cultura no sentido sociológico são de igual utilidade, de igual valor (FORQUIN, 1993, p. 12). (Grifo nosso)

Daí o sentido em articular e conectar os fios entre os três âmbitos de que trata esse capítulo, visto que os currículos escolares não se encerram naquilo que dizem. A interseção entre currículo, cultura e poder, atende ao exame dessa cadeia sempre incompleta, sempre produtiva, multidimensional onde as problemáticas e tensões podem encontrar nos Estudo Culturais terreno para importantes elucidações.

Ainda mais quando se promove uma interseção a partir de argumentos pós- estruturalistas e de uma maneira inspirada nas reflexões foucaultianas perseguindo o objetivo geral da pesquisa no que tange ao funcionamento do governamento de gênero e sexualidade em práticas curriculares de professorxs em salas de educação infantil natalense. Insisto, não no sentido de deferir uma sentença, mas de expor aspectos do seu funcionamento.

A fecundidade da absorção desse campo de estudo contribui particularmente com a reflexão da contingência do que pode ser relevante ou legítimo para prática curricular. Para esse campo, toda nossa conduta docente e toda a racionalidade pedagógica que articulamos para “produzir” os sujeitos escolares são ligadas ao domínio político da cultura. Como no caso da possibilidade do corpo, afinal, é o corpo, a sua unidade, e o seu “gerenciamento” que estão expostos a efeitos de classificação em torno dos quais gravitam inúmeras prerrogativas, sanções e discriminações.

A esse respeito pensemos o seguinte, é perfeitamente aceitável e interpretado como natural que um menino e uma menina brinquem de casal, mas é escandaloso ainda que menino e menino ou menina e menina brinquem de casal, que um menino brinque de boneca, de casinha, que goste de rosa, que goste de filmes onde a princesa seja a protagonista, a lista de exemplos poderia se estender por muitas linhas. A mesma vigilância e diligência não ocorre quando um menino simula uma arma com o brinquedo, brinca de ser o vilão do desenho animado.

As formas de vivenciar a infância, nesse sentido, estão reguladas por uma unidade identitária de gênero e sexo desprezando-se as contingencia que possam vir a separar essa unidade, É o fixo que importa. O sujeito estável, anunciado pelo corpo, marcado por um véu espesso de naturalidade. É esse sujeito autorizado a aparecer nos romances, nas músicas, nas novelas, nas danças, na publicidade, nos livros sagrados das religiões, no mundo do trabalho.

Mas podemos nos perguntar: ser menino e ser menina terá para sempre uma única expressão que vala para todos e todas que venham a viver? Homens e mulheres serão sempre fixos em suas expressões de gênero, sem nunca na história e nas diferentes sociedades modificarem essas expressões naquilo que os diferenciam sob diversos ângulos? Penso que isso só poderia ocorrer de duas maneiras, se fossemos animais desprovidos de cultura ou se fossemos matéria inanimada, como não somos nem um nem outro imaginar esse congelamento não poderia ser outra coisa senão uma ilusão enfadonha.

Então, esse estancamento artificial elaborado para fixar o que é fluxo, movimento e contingência, quando problematizado a partir dos estudos culturais vai se delineando novos nexos entre cultura e currículo, ao averiguar que a ênfase que certas práticas curriculares dão a normatização de gênero funciona não por ser a mais apropriada e mais legítima, mas por derivarem de âmbitos assimétricos de poder em tensão.

Em sua abordagem culturalista, os estudos culturais se preocupam fundamentalmente em entender os significados incorporados a cultura, enfatizando a ação dos sujeitos sobre as estruturas sociais. Demonstrando que questões econômicas e sociais, assim como transformações históricas são culturais (LOPES e MACEDO, 2011, p. 194).

Os debates realizados nesse campo são amplos e variados, mas aqui buscarei pensar aquelas relações conflituosas e imprecisas dos arranjos de gênero e sexualidade entre os três âmbitos que debatidos nesse capítulo, dão o pano de fundo da investigação.

O exame das condições que possibilitam esse processo na minha compreensão passam pela averiguação de engrenagens que se encaixam dando movimento e fazendo funcionar um conjunto de práticas coercitivas ou no mínimo reguladoras, que também são discursos e afetam as subjetividades através da ação articulada de determinados meios, que aqui são enfocadas a partir das práticas curriculares dos professores e professoras, mas que de um modo ou de outro encontram-se dispersos em uma rede de significados muito ampla e disseminada por todo funcionamento da escola, de maneira que não se reflete somente nos conteúdos programáticos mas sim disseminadas no dia a dia, nas experiências, na convivência com todxs daquele espaço.

Sem dúvida, na educação infantil há uma diligência muito elaborada e pedagogicamente sofisticada na condução dos comportamentos, a ideia de conduzir, de oferecer as primeiras referencias, irão exigir das práticas dxs professorxs todo um cabedal cultural que abarque a orientação da proposta contemporânea que orienta essa modalidade de ensino, qual seja, educar, cuidar e brincar, muito bem retificada tanto no Referenciais Curriculares Nacional da Educação Infantil (1998) como nas Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil (2010). Sob essa tarefa irá se organizar uma gigantesca estrutura por todos os espaços indicando modos de agir e formas de pensar.

Refiro-me a atitudes e valores transmitidos pelas relações sociais na instituição, pelas rotinas do cotidiano escolar, rituais e práticas sociais, a disposição de símbolos, relações hierárquicas, regras e procedimentos, modos de organizar o espaço e o tempo na escola, modos de distribuir as crianças por grupamentos, de designar atividades, mensagens implícitas nas falas dxs professorxs e nos recursos literários e audiovisuais.

É no espectro dessas atribuições, dessas competências que os professorxs vão desenvolvendo diariamente um conjunto de proposições curriculares, produzindo mudanças, escolhas, decisões, certamente profundamente tencionadas por fluxos de discursos, concepções e práticas que se hibridizam na medida em que circulam dentro dos próprios discursos pedagógicos advindos não somente de uma cultura pedagógica como de atos de enunciação cultural que remete a grupos diferentes.

Essa circularidade, ou seja, característica permeável das proposições curriculares está manifestada nos vários procedimentos cotidianos da relação professor-alunx movimentada por todo equipamento pedagógico seja ele material ou imaterial. Elas funcionam por ajustes e desajustes, pelo consumo das transformações culturais, pela cotidianidade das práticas de significação, podem inclusive muitas vezes surgirem da ausência de consensos e da imprevisibilidade.

No calor da prática, existem outras preocupações, demandas, pressões, propósitos, que não se inserem necessariamente no instrumental pedagógico, mas são de ordem subjetivas dxs docentes, de sua participação em relações sociais mais amplas, correspondem as suas convicções pessoais, suas dúvidas, seus sentimentos, seus anseios, suas vivencias junto a determinados grupos, suas crenças, portanto da esfera de sua vida pessoal eles proporcionam um quadro de referência, ajustes e complementariedade para xs professorxs constituírem as

suas ideias a respeito de identidades não hegemônicas e agir diante das performances de gênero e sexualidade das crianças em sala de aula.

Nesse imbricamento entre o eu inacabado e a formação de entendimentos do mundo, o choque com diferentes versões e o processamento introspectivo delas, provoca espantos, angustias, desencaixes, aproximações e distanciamentos, proporcionando trânsitos por caminhos de diferentes dimensões, que podem algumas vezes se chocarem e contradizerem, em que xs professorxs buscam fazer reconciliações.

Todxs nós, ao longo da vida, realizamos essas operações frente ao mundo, um movimento em que a subjetividade é ponto integrante do entendimento que possui em relação ao mundo. Esse movimento demonstra que longe de sermos unificados e homogêneos, somos divididos, fragmentados e principalmente, não plenamente identificáveis. Um homem pleno ou uma mulher plena só poderia ser uma criação fictícia e frágil. Nunca se é mulher ou homem num mesmo sentido, numa relação fixa e idêntica, em outras palavras somos irrealizáveis.

Mas já que segui até aqui suspeitando de essencialismos e naturalizações e agora mencionei a subjetividade como ponto integrante do sujeito, irei me deter um pouco a essa característica, pois dela me servirei no próximo capítulo para discutir gênero e sexualidade. Além de entender que seja necessário aqui, marcar a perspectiva que assumo nesse campo, visto que as práticas curriculares destinadas a gênero e sexualidade também são forjadas pela subjetividade dxs professorxs.

2.6 SUJEITO, SUBJETIVIDADE E GOVERNAMENTO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES