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2 CURRÍCULO, CULTURA E RELAÇÕES DE PODER: CRUZAMENTOS E

2.3 UM POUCO MAIS DO CURRÍCULO: APROXIMANDO AS LENTES

Como já acenei, o conceito de currículo está relacionado a uma complexidade de problemas e sabe-se que existe uma profusa literatura que disputa e dialoga esse sentido, busquei, no entanto, aproximar panoramicamente de uma perspectiva que dê importância a vida pessoal, social e que problematize o tipo de sociedade onde se articule a sensibilidade ao outro, a solidariedade e o respeito a pluralidade, multiplicando o comprometimento com um projeto de humanidade diversa.

De agora em diante estarei me remetendo mais detidamente ao conceito que incorporei na pesquisa, de modo que o esforço será de criar condições de entendimento para especificar mais didaticamente o que vem a ser a produção de uma prática específica especializada em se deter minuciosamente ao gênero e a sexualidade intercambiada por um vasto cabedal de referências misturados da cultura. Já que esse é o principal exame realizado aqui.

Quero dizer que por enquanto eu estive mesclando variadas condições atuais que são pano de fundo de expressões políticas que tem se institucionalizado e atingido as pessoas em função de seu gênero. Dando continuidade, definirei pontos cruciais do entendimento de currículo e posteriormente articularei com a ele o que estou marcando como práticas

curriculares que são tão importantes para entendermos como elas funcionam regulando identidades sexuais e de gênero.

Parece que nunca é demais dizer que currículo não é apenas um rol de conteúdos programáticos de disciplinas, não é apenas um conjunto de expectativas de aprendizagem, não é apenas um documento formal com programas e projetos instituídos pelos sistemas educacionais. É indispensável que para além desses aspectos pensemos as nuances no interior de sua formação. Inclusive já andamos explorando anteriormente algumas das situações em que vem se formando delineando efeitos sobre o currículo que tem rechaçado a discussão de gênero. Tais nuances são perceptíveis quando buscamos analisar as descontinuidades onde desenvolvimentos contínuos são encontrados. Isto é, quando identificamos e estranhamos elementos desconexos dentro de uma pretensa ordem de ações convergentes, funcionando como fissuras. Para possibilitar uma maior clareza nessa ideia, antecipo uma breve constatação que retiro das análises para auxiliar esse argumento.

Na execução das atividades em sala de aula e nas verbalizações dos professores foi possível visualizar relações de forças funcionando, tensionadas, nos acontecimentos. Com isso inúmeras incongruências puderam ser rastreadas, nos dizeres e nas ações cotidianas fortemente tributárias de um conjunto dinâmico de valores, na repetição reiterada de algumas táticas e nos diversos aparatos construídos para realizarem “impressão” de um gênero “correto” segundo a referência mais “segura” que é o próprio corpo, que termina por representar um monumento da verdade de uma identidade sexual e gênero.

Para efeito de reflexão do que são as práticas curriculares de que falamos, estou entendendo anteriormente o currículo, juntamente com Silva (1995) como prática cultural e prática de significação. Silva nos faz perceber que ele é confeccionado temporalmente de

maneira que acolha uma seleção de sistemas explicativos, narrativas, visões de mundo no intuito de viabilizar ações coletivas e coordenadas numa determinada direção. O interesse é em garantir por força institucional que os sujeitos escolares tenham acesso a um determinado modelo de mundo específico para que assim detenham os signos e símbolos que os permitam se movimentar por ele.

Mas é claro que o processamento desses interesses não ocorre de maneira simplista. Como se pode concluir ao consultar Lopes (2004), na medida em que são múltiplos os contextos produtores, são múltiplos os significados em disputa, com isso ocorre a formação de um ciclo contínuo de produção de políticas no qual são desenvolvidas recontextualizações por processos

híbridos. Tais recontextualizações “expressam a negociação de sentidos e significados curriculares capaz de produzir uma política ambivalente” (LOPES, 2004, p. 60).

Com base nessa interpretação, defino aqui, para efeito de análise, que o Currículo

é um catalizador de interesses, nele está impresso as intenções do ensino e também através dele são ativamente produzidas contestações. Isso quer dizer que ele é engendrado por

convenção que são assimétricas, não unilateral, entre campos que valorizam e legitimam plataformas específicas de valores, saberes, estética, comportamentos, crenças. Não é por menos que Lopes e Macedo (2002) evidenciam que o hibridismo é a marca do campo do currículo.

Por isso é importante que se diga também que o Currículo não possui um chão firme, seu terreno é movediço, apesar de possuir um script institucional que apareça como pacífico, representante de um consenso, por dentro dele proliferam discrepâncias, desencaixes perturbadoras de sua ordem. A sua efetivação resulta de vários fatores do processo de autonomia consubstanciado por cada um através do domínio do conhecimento social e cultural acumulado e da capacidade de fazer uso próprio das normas sociais.

Nessa mesma linha, Silva (1995) se esforça em explicar que o currículo é uma prática social, um instrumento paradoxal e contraditório, é negociação, é também prescrição, vitalmente em fluxo como uma linguagem, são experiências objetivas, mas também simbólicas do mundo.

Como pode ser percebido, em busca de traduzirem um sentido para o currículo mais próximo de sua configuração contemporânea, esses autores de quem tomamos algumas definições emprestada, partilham de uma postura antipositivista, antiessencialista e antiestruturalista, dado que questões como identidade, diferença e flutuação linguística mediam a construção da percepção da realidade e do mundo, pois, como defendem, estamos sempre preenchendo a lacuna da significação.

Via de regra a literatura aponta como sendo uma das funções mais explícitas do currículo atuar como uma ferramenta organizativa de práticas pedagógicas O que não significa que essa verticalização não seja reorganizada tendo em vista que no chão da sala de aula há movimentos em que o professor ou professora toma como referência uma gama muito variada de elementos, suas ações não se estabilizam de modo unificado em um documento formal, pois a ação professoral viabiliza desancoragens constantes, visto que “as decisões mais prescritivas

e disciplinares do conhecimento são incapazes de dar conta da problemática social” (MACEDO; LOPES, 2002, p. 81).

Se, por um lado, é o currículo que dá a sustentação epistemológica às práticas espaciais e temporais que se efetivam continuamente na escola, por outro lado, são as práticas que dão materialidade e razão de ser ao currículo. E, na medida em que tanto as práticas quanto o currículo se sustentam na disciplinaridade, é esta que funciona como um articulador entre ambos: as práticas e o currículo (VEIGA-NETO, 2002, p. 10).

Mesmo que o currículo seja consagrado como ferramenta organizativa das práticas pedagógicas, inúmeros desdobramentos saem dessa relação, consequentemente ocorre fragmentações de modo que é impossível afirmações conclusivas e peremptórias sobre sua unidade, por isso para um entendimento razoável somos impelidos a enxerga-lo como provisório, variável e problemático.

Parece haver uma qualidade indiscutivelmente valiosa nessa constatação que é a de que ele não possa ser exatamente proibitivo nem permissivo, ele não começa e termina em si mesmo. Podemos pensar com isso que apesar de seu protagonismo e de sua importância xs

professorxs são xs efetivxs viabilizadorxs de demarcações que podem conduzi-lo por múltiplas e embaraçosas direções.

Da forma como vim construindo o sentido de currículo que desejo abordar neste texto e ao mesmo tempo dialogando com outros sentidos já citados até o momento, assumo a impossibilidade de uma resposta objetiva sobre sua definição, mas que para fins de uma boa interlocução e reflexão, acrescento:

O currículo é lugar, espaço, território. O currículo é relação de poder. O currículo é estratégia, viagem, percurso. O currículo é autobiografia, nossa vida, Currículo vitae: no currículo se forja nossa identidade. O currículo é texto, discurso, documento. O currículo é documento de identidade (SILVA, 2011, p. 150).

Nesse momento do trabalho, essa preocupação na organização de uma escolha da definição de currículo responde muito criteriosamente ao que posterior a ela, dentro do estudo está compreendido como práticas curriculares, imaginadas aqui como sendo: formas de

condução da ação docente que respondem pela constituição de marcas de poder na produção social do próprio trabalho pedagógico.

Está carregado, portanto, de valores e pressuposto que é preciso decifrar esmiuçadamente, mesmo que não possamos esgotá-lo, tornando nossa compreensão de suas

estruturas mais realistas no sentido de se opor a visões romanticamente idealistas. Aproveito para exemplificar uma forma possível desse tipo de compreensão que foi elaborada justamente na própria pesquisa e se desenvolverá mais detalhadamente no terceiro capítulo, mas lanço desde então mais uma vez no intuito de me fazer entender.

Nessa lógica, algo recorrente nas falas das professoras foi a ideia de que o corpo é código, é ele quem de maneira muito visível e natural define o sexo, separa por oposição as identidades de gênero, demarca possibilidades de vivencia da sexualidade. É ele quem representa essencialmente que as crianças adotem condutas, valores, atitudes e hábitos necessários à inserção da normalidade social de gênero. Louro (2000) menciona essa mesma característica em suas incursões pelas pedagogias da sexualidade.

Entretanto, os limites dessa normalidade várias vezes oscilam, dependendo da leitura de profissional para profissional, ela pode em alguns momentos aparecer muito associada a obediência de padrões fixos e em outros momentos cambiar como sinônimo de um extrato temporal, a partir do que entendiam como mudanças nas relações que com o tempo produzem possibilidades de gênero antes negadas, mas sem esconder a desconfiança em torno. Isso retifica, ao meu ver, o que venho expressando sobre o currículo e traz indicadores muito semelhantes a compreensão de práticas curriculares que elaborei alguns parágrafos atrás.

Há, assim, como defende Costa (2015, p. 91), muitas marcas de significado em funcionamento nas práticas curriculares, “essas marcas distintivas que não emergem da ordem natural das coisas, mas de jogos de poder elaboram seus sentidos validados no interior dos sistemas simbólicos da linguagem e da cultura” e costumam coexistirem disputando espaço. Elas são sempre rastreáveis, mesmo quando ornamentados pelos “signos misteriosos” da natureza das coisas.

Quando essa complexa rede é enfrentada e suas costuras expostas, geram-se fortes embates tornando o debate um aparato político de disputas e enquadramentos. Inclusive isso vem ocorrendo atualmente com ânimos bastante avivados. Destaco aqui O Manifesto pela

igualdade de gênero na educação: por uma escola democrática, inclusiva e sem censuras11, articulado para entre outras coisas, rechaçar propostas curriculares impregnadas das velhas

11 Documento elaborado em 2015 por um coletivo de entidades ligadas aos direitos humanos e grupos de

pesquisa de todo o país, onde sustentam que o conceito de gênero é um conceito operador que cria sentido para as diferenças percebidas em nossos corpos e articula pessoas, emoções, práticas e coisas dentro de uma estrutura de poder.

concepções preconceituosas sobre o homem e a mulher, construídas com base nas diferenças de sexo.

Frontalmente posicionado a essa resistência outros grupos interessados no endurecimento do espaço do debate de gênero na escola se lançam na desqualificação. Certamente, não é raro encontramos em diversas situações que vivenciamos algum indivíduo ou grupos de indivíduos vociferando justificativas que formam mental e emocionalmente a noção do único, do verdadeiro, do comum a todxs.

Atrás da aparência da justiça, da bondade e da razão, essa espécie de distorção repetitiva, que inclusive depende dessa repetibilidade dissemina uma falação odiosa que deforma consciências e consegue agir sobre a ciência, sobre a cultura, o senso comum e inclusive na educação, criando um padrão de normalidade. Quase sempre essas convergem para exclusão ou expurgação do outro, do estranho, do anômalo. São movimentos de representação visceralmente implicados seja com a produção de propostas curriculares sejam com as próprias práticas pedagógicas dxs professorxs.

Por isso um exercício que pense constantemente o currículo pode ser tão necessário e importante. Insisto que devemos resistir a ataques orquestrados pelo preconceito desumano e odioso pois temos a imensa responsabilidade de situar a escola desde a educação infantil até a universidade, frente aos novos e pertinentes desafios em relação ao currículo que contemple a diversidade, bem como desconstruir as práticas do currículo vigente que priorizam políticas curriculares cristalizadas.

Retira-se dessa compreensão que o currículo está para além de ser uma construção política e prevista por legisladores e especialistas, é muito mais uma construção que se faz nas unidades escolares e nas salas de aula, tornando-se um dos eixos que articula as demandas sociopolíticas e culturais da sociedade num determinado momento histórico. Não podemos nos esquecer que essas demandas nem sempre são unívocas, elas são fragmentadas e dispersas tendo em práticas pedagógicas diversas sua real oportunidade de se desencadear tornando-se expressivos ou do contrário rejeitados, embora também seja necessário observar que esse funcionamento nunca é assim totalmente preciso, muitas vezes há entrecruzamentos, como ficará claro no capítulo seguinte.

Com isso, para dar prosseguimento, fica especificado que o currículo como documento institucional formal e declarado é limitado, se concebido como determinante da prática pedagógica concreta, pois a visão de totalidade que ele embute é esfacelada pela

microatuação que aciona outras redes que podem conservá-lo ou subvertê-lo, mesmo que parcialmente ou pontualmente.

O currículo é uma práxis antes que um objeto estático emanado de um modelo coerente de pensar a educação ou as aprendizagens necessárias das crianças e dos jovens, que tampouco se esgota na parte explícita do projeto de socialização cultural nas escolas. É uma prática, expressão, da função socializadora e cultural que determinada instituição tem, que reagrupa em torno dele uma série de subsistemas ou práticas diversas, entre as quais se encontra a prática pedagógica desenvolvida em instituições escolares que comumente chamamos ensino. É uma prática que se expressa em comportamentos práticos diversos. O currículo, como projeto baseado num plano construído, ordenado, relaciona a conexão entre determinados princípios e uma realização dos mesmos, algo que se há de comprovar e que nessa expressão prática concretiza seu valor. É uma prática na qual se estabelece um diálogo, por assim dizer, entre agentes sociais, elementos técnicos, alunos que reagem frente a ele, professores que o modelam etc. (SÀCRISTAN, 1998, pp. 15-16)

Agora que estabeleci o que estou compreendendo como currículo, além de sinalizar também o que defino com práticas curriculares, passarei a me ater mais especificamente questão da constituição destas práticas curriculares como uma série de ações pedagógicas carregadas de efeitos da cultura. São elas o principal alvo que mirei para notar o funcionamento de uma pedagogia dos corpos atuando diluída na ação dxs docentes. Ainda retomarei vez ou outra as definições de currículo que organizei anteriormente apenas para não perder de vista a associação íntima que devemos fazer entre currículo, cultura e ação professoral.