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2 CURRÍCULO, CULTURA E RELAÇÕES DE PODER: CRUZAMENTOS E

2.4 AS PRÁTICAS CURRICULARES: ALGUMAS ESPECIFICAÇÕES

Para que o objetivo deste capítulo seja cumprido, qual seja rastrear o encadeamento percebido entre currículo, cultura e relações de poder promovendo a captura e formação de gênero nas práticas curriculares, sigo especificando alguns conceitos e o funcionamento de determinados mecanismos envolvidos na pedagogização do gênero e da sexualidade normativa. Como sempre, desde o início deste trabalho, procuro tornar a intersecção com a cultura uma faceta permanentemente sublinhada.

Quer dizer, é evidente que não pode existir uma pedagogia desculturalizada, a pedagogia é um terreno institucional, formal, político onde a cultura se inscreve passando a significar o conjunto de experiências a serem vividas pelos estudantes sob a orientação da escola, logo as práticas curriculares das quais estaremos falando aqui estão envolvidas,

inevitavelmente, em redes de poder conectadas a processos de significação e disputa, que implica na construção do próprio currículo.

Nessa perspectiva, creio que agora fique claro como estou percebendo as práticas curriculares, elas podem ser dentro do trabalho pedagógico um conjunto de gestos tão fáceis de realizar quando difíceis de entender. Elas são decisões pedagógicas que dão conta de atender

necessidades vinculadas ao cumprimento de uma plataforma cultural, salvo algumas

rachaduras, atendem ao modelo hegemônico mesmo sem sessar as tensões no interior de sua efetivação.

Elas são despidas de neutralidade, são como escolhas que se fazem em um vasto leque de possibilidades, elas expressão uma visão de mundo, uma expectativa de sociedade. Elas corporificam “verdades”, mas também escapam delas, e possuem uma posição estratégica porque interpelam indivíduos, tornam visíveis ou põem em suspeição determinados possibilidade de subjetividades, deste modo são, acima de tudo, produtoras de experiência subjetivas e intersubjetivas dando antes suporte a uma experiência individual possível do corpo, do gênero e da sexualidade.

As práticas curriculares são efetivadas na prática pedagógica em função das condições subjetivas e objetivas presentes. Não é por menos que elas podem nos atingir em níveis diversos, pois são forças subjetivadoras que atuam poderosamente produzindo efeitos profundos e duradouros. Um fator importante que não podemos deixar de lembrar, é sua capacidade em absorver o sistema de costumes de uma sociedade em que se desenvolvem, o que as torna quase sempre compartilhada coletivamente, gerando entre outras consequências uma blindagem bastante reforçada, pela experiência partilhada que tende a sustentá-las, comprimindo a irrupção de suas próprias contravenções.

Vejamos aqui uma breve reflexão a respeito dessa capacidade que atribuímos agora a pouco. Ela será explorada mais profundas no capítulo seguinte, mas no momento no serve para termos uma percepção não só das contingencias das práticas curriculares como da centralidade da cultura na sua estrutura. No que concerne a identidade de gênero, a atitude básica mais óbvia é transmitir ações e encaminhamentos sugeridos, no caso da educação infantil pelos Referencias Curriculares Nacional para educação infantil (RCNEI). Mas como especulei até aqui, esse não é um mecanismo de transferência automática e a práticas que se desenvolvem podem vir a seguir outras direções.

Na sessão intitulada “Expressão da sexualidade”, o documento do Ministério da Educação (RCNEI) que data de 1998 destaca: “Dentre as questões relacionadas à sexualidade, as relações de gênero ocupam um lugar central. Há um vínculo básico entre o gênero de uma pessoa e suas características biológicas, que a definem como do sexo feminino ou masculino” (RCNEI, volume II, p. 19).

À primeira vista já é possível perceber que sexo, sexualidade e gênero estão associadas de modo que conduz a uma interpretação linear, como se estivessem coladas umas às outras. Essa pretensa “coerência” apresentada no texto mostra-se bastante limitada, no mínimo maldispostas gerando uma grande confusão de conceitos em nome da simplificação. Mas vamos adiante, logo na sessão seguinte intitulada “Identidade de gênero” o texto apresenta uma evolução, vejamos:

No que concerne a identidade de gênero, a atitude básica é transmitir, ações e encaminhamentos, valores de igualdade e respeito entre as pessoas de sexos diferentes e permitir que a criança brinque com as possibilidades relacionadas tanto ao papel de homem como ao da mulher. Isso exige uma atenção constante por parte do professor, para que não sejam reproduzidos, nas relações com as crianças, padrões estereotipados quanto aos papéis do homem e da mulher, como, por exemplo, que à mulher cabe cuidar da casa e dos filhos e que ao homem cabe o sustento da família e a tomada de decisões, ou que homem não chora e que mulher não briga (RCNEI, Volume II, p. 41).

Nessa outra parte, o texto, que foi apontado pelxs professorxs entrevistadxs como sendo o principal documento por onde orientam seus planejamentos e sua prática12, apesar de na época sugerir uma abertura à flexibilização, esbarra nos últimos acontecimentos que desencadearam pressões que se agravaram acentuadamente e culminou na retirada da expressão de gênero e orientação sexual dos conteúdos do Plano Nacional de Educação, bem como dos planos municipais, distrital e estaduais. Essa é uma constatação recente que certamente impactará as decisões dos professores de educação infantil. Entretanto, já antes desses movimentos o próprio texto do RCNEI mencionava logo após as citações acima que “a observação e sensibilidade do professor são ingredientes fundamentais para identificar as diferentes situações e ter clareza quanto aos encaminhamentos a serem dados” (RCNEI, Volume II, p. 42).

12 Embora as diretrizes curriculares nacionais para educação infantil tenham sido aprovadas desde 2010, todxs xs

entrevistadxs fizeram menção somente ao RCNEI como documento em que se norteavam, inclusive

mencionaram ainda que costumam se basear também na versão municipal, os Referenciais Curriculares para educação infantil da rede Municipal de Natal, documento que data de 2008.

É nesse ponto que gostaria de destacar o alcance que pode ter o sistema de costume que mencionamos nas práticas curriculares, ao deixar a cargo da sensibilidade do professor as oportunidades e as formas para discutir questões de gênero e sexualidade ainda mais quando associadas a referencias tão simplistas presentes nos tais referenciais que citamos. Elas podem implícita ou explicitamente corporificar noções particulares nas práticas curriculares de que falamos neste trabalho.: “O nexo íntimo e estreito entre educação e identidade social, entre escolarização e subjetividade, é assegurado precisamente pelas experiências cognitivas e afetivas corporificadas no currículo” (SILVA, 1996, p. 184).

Fica sublinhado que são discursos curriculares entendidos aqui também como práticas, são performances políticas em nível estrutural. Elas propiciam a circulação e o consumo de significados no espaço escolar e contribuem, intensamente, para reprodução e produção de culturas, de identidades sociais e culturais.

Não podemos esquecer que também são processadas dentro de um recorte espaço- temporal. As transformações na atmosfera cultural, os embates políticos, as mudanças sociais, as posições epistemológicas emanam ressonâncias que alteram a forma da razão pedagógica dessas práticas de que tratamos.

Até aqui creio ter deixado explicito o afastamento definitivo da compreensão estritamente formalista e cientificista do currículo, operando com referencial de autores pós- estruturalista, extraindo deste campo, a ideia de que uma prática curricular pode ser encontrada no saber dos sujeitos praticantes do currículo, tecida a partir de redes de saberes e experiências envolvidas na atribuição de significados. Isso significa dizer que na execução do trabalho docente ocorre constantemente uma (de)formação curricular alimentada por aqueles aspectos que os professores e professoras analisam como desejáveis ou indesejáveis.

É bom que se deixe claro que não se trata de defender que as práticas curriculares direcionadas ao campo de gênero e sexualidade sejam expotaneistas, pois sabemos da abrangência e complexidade em que são tecidas, mas que também não são mera especificação em um documento pois ampliam-se em intercâmbios e interações realizadas pelas professores e professoras face a situações que não são, por exemplo solucionada por meio técnicos, mas exigem ser pensadas pelo seu caráter ético, moral e político.