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Arnórr jarlaskald (Arnórr, o skald dos jarlar, c.1011-1073)

1.4. Poetas conversos: o cristianismo na Escandinávia a partir poesia escáldica (sécs.

1.4.4. Arnórr jarlaskald (Arnórr, o skald dos jarlar, c.1011-1073)

John McKinnell apresentou anos atrás algumas considerações sobre as representações mitológicas pagãs na Escandinávia após o advento e consolidação do Cristianismo na região. Kennings (metáforas encapsuladas) e outras referências mitológicas presentes no século X foram quase completamente abandonadas no século seguinte, talvez num esforço de união ao novo princípio religioso vigente. Esse

76 ―Converts turn toward a new axis or set of ideals that motivates converts to transform themselves and

their environment. They reject or denounce their past and former beliefs and practices, or their indifference [...] labeling them wrong when compared with a different future on a new path that is conceived as being right‖.

conhecimento não desapareceu de forma absoluta, mas deixou de ser empregado de maneira corriqueira, sendo um recurso despendido com extrema cautela (2007: 33-48).

Havia também um conhecimento de tendências em uma mesma corte ou período (TOWNEND, 2011: 201-215), como evitar associações pagãs diante de reis e nobres eminentemente cristãos (TURVILLE-PETRE, 1968: 4) para provavelmente agradar estes e os demais ouvintes presentes nos salões aristocráticos escandinavos.

Vale ressaltar que durante o período de transição religiosa, não-cristãos e cristãos laicos continuavam alheios ao conteúdo direto dos textos litúrgicos, mas absorviam suas influências pela tradição oral, interpretação das homilias e pela iconografia. Não busco aqui afirmar o pressuposto da ―Bíblia dos iletrados‖ ou de uma aculturação pura e simples, mas considerar uma experiência difusa, nos termos de Pluskowski e Patrick, experimentada pelos escandinavos de acordo com o contexto cultural, regional e religioso da época, num fenômeno de transculturação. Esses poetas serviriam, portanto, como um dos possíveis índices do avanço da mensagem cristã com o passar do tempo.

Um bom exemplo é Arnórr jarlaskáld (Arnórr, o poeta dos jarlar, c.1011-1073), um versejador islandês em época assentado nas Órcades, que compôs os seguintes versos em c.1060: ―Miguel pesa o que parece ter sido feito errado, maduro com sabedoria, e tudo que é bom; então o soberano-do-elmo-do-sol [=Deus] direciona os homens para seu assento-de-julgamento‖ (Fragmentos, est. 1)77. O depoimento em questão demonstra que Arnórr estava familiarizado com a ψυχοστασία (psicostasia), ou seja, a função miguelina de pesar a alma de bons e maus após a morte.

Como bem notou Arned Nedkvitne, a penetração deste santo na Escandinávia pode ser identificada desde o final do século X. Neste ínterim, são Miguel foi invocado junto com Deus e Cristo, ou no contexto do Juízo final e da vida eterna, ou ainda em celebrações e banquetes para fins protetivos (2011: 172-173).

Ademais, a associação entre Deus e o Sol, presente na Escandinávia do século seguinte (cf. BIRRO, 2013: 160-200), não era evidente nas composições mais antigas (Eilífr e Skapt, por exemplo) e pode ser um sinal da influência cristã. As referências bíblicas a Jesus como Sol e fonte de luz abundam, além da passagem neotestamentária

77 ―Míkjáll vegr þats misgört þykkir, manvitsfróðr, ok allt et góða; tyggi skiptir síðan seggjum solar

de seus apóstolos como filhos da luz78. O Credo niceno-constantinopolitano (381), que faz parte da tradição da Igreja, menciona Cristo como ―Luz da Luz‖ (―θῶς ἐκ θωηός‖, ―lumen de lumine‖)(NICENO-CONSTANTINOPOLITAN CREED, 2003: 162)79

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Ao retomar Sighvatr, percebe-se ainda o sinal solar como um reconhecimento divino da morte desonrada do mártir, como Cormack ressaltou, um topos das vidas de santo e encontrada sobretudo no contexto das Ilhas Britânicas. É preciso também ressaltar mais uma vez o aspecto formal da poesia escáldica: a formação de kenningar alusivos a Deus, Cristo e santos, como no caso de Árnorr (soberano-do-elmo-do-sol) refletiria a posição de McKinnell e Baer simultaneamente, a saber, do abandono de referências mitológicas e da transformação religiosa em avançado curso nas cortes nórdicas em meados do século XI.

Nota-se, assim, no limiar entre os séculos X e XI, o conhecimento de assuntos cristãos por parte dos poetas da corte escandinavos, além da grande diferença num curto espaço de tempo. Ao comparar nosso primeiro depoente, Eilífr, com Hallfreðr e, em seguida, com Sighvatr e Árnorr, separados entre si por cerca de cem anos e frequentadores de salões régios vizinhos, a diferença nas composições poéticas e no trato com assuntos cristãos é muito evidente (BIRRO, 2013a: 6-21)80.

Arnórr, concomitante em vida com Sighvatr e tendo servido juntamente com este na corte de Knútr, apenas reforça este panorama e o ambiente de corte comum, propício a trocas, leituras coletivas dos poetas sobre a audiência e reações religiosas próximas dadas às condições da época.

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Este levantamento tenta ressaltar de maneira bastante breve os aspectos interacionais, formais, religiosos e cortesãos da Escandinávia nos séculos X e XI a partir das composições poéticas, ainda que a abordagem de outras evidências, como as fontes

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Lâmpada (2Sm 22:29); Grande luz (Mt. 4:16); Sol nascente (Lc. 1:78-79); Luz dos homens e verdadeira luz (Jo 1:4-9); Luz do mundo (Jo 8:12 e 9:5); ―Creiam na luz enquanto vocês a tem, para que se tornem filhos da luz [Jesus aos apóstolos]‖ (Jo 12:36); ―Deus é luz; nele não há treva alguma‖ (1Jo 1.5); Estrela da Manhã (Ap 22.16).

79 Σύμβολον ηῆς Πίζηεως ou Symbolum Nicaenum.

80 Ao que tudo indica, as transformações sócio-políticas na Escandinávia que promoveram a concentração de poder na figura de determinados reis ou grandes lideranças caminhou pari passu com as mudanças religiosas e culturais na região (BOLTON, 2009; BAGGE, 2014).

materiais, possam conferir um cenário mais abrangente e não apenas nos círculos aristocráticos.

Apesar dessa limitação inerente das evidências e do contexto, percebe-se, um paulatino avanço do reconhecimento de outra crença e da necessidade de integrá-la para atender uma audiência que passa a ser minimamente expressiva nos salões em que os

skald atuavam.

As composições de Hallfreðr, por sua vez, sugerem um cenário em que o cristianismo caminha para uma situação de intransigência em relação aos antigos rituais e crenças praticadas na Escandinávia. O poeta, porém, ainda demonstrou resistência, inconformidade e má compreensão frente aos novos princípios religiosos, conquanto a brandura e leniência possam ser sinais de que a aristocracia da corte tendia majoritariamente à fé cristã.

Sighvatr e Árnorr teriam passado por uma transformação religiosa ―completa‖ ou ―plena‖ nos termos de Baer, uma vez que foram privilegiados laicos. Ao menos o primeiro adotou o princípio de condenação dos adeptos das antigas crenças, como no poema sobre a situação sueca, mas infelizmente fora da ―jurisdição‖ de Óláfr, seu senhor81. Sighvatr, assim, devotava a si próprio para o que ele considerava uma versão depurada da fé (BAER, 2014: 34).

Do ponto de vista teórico, a escala proposta por Baer é de difícil distinção, uma vez que as etapas da conversão e cristianização não seguem explicitamente os pressupostos sugeridos pelo sociólogo. Ele assumiu, como exposto outrora, condições intermediárias (2014: 34-35), mas, não raro, os depoimentos recaem exatamente na interseção entre os limites sugeridos. Assim, lancei mão de outro panorama teórico a seguir para dar conta da realidade social e espacial simultaneamente, além de superar o desconforto causado para definir a condição religiosa da sociedade manx entre os séculos X e XI.

1.5. Cristianização e interações desiguais na paisagem político-religiosa manx: