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Sobre o processo de feitura das estelas rúnicas: algumas leituras

Para um dos mais célebres pesquisadores das lajes de pedra da Ilha de Man, o estudo das inscrições rúnicas era de pouca ajuda em termos de personagens históricos, mas fundamental para saber a origem dos gravadores e escultores das runas da ilha, além de indicar a fusão de escandinavos e celtas nesta tradição monumental

139 ―Un documento è un fatto. La battaglia un altro fatto (um‘infinità di altri fatti). I due non possono fare

uno [...] L‘uomo che opera è un fatto. E l‘uomo che racconta è un altro fatto [...] Ogni testimonianza testimonia soltanto di se stessa; del proprio momento; della propria origine; del proprio fine; e di nient‘altro‖.

(KERMODE, 1904: 90). Despender algum tempo sobre a primeira questão, ou seja, dos artistas envolvidos no processo de criação das cruzes de pedra, tal como do processo de criação delas, pode servir para iluminar a importância desse legado cultural e de seus agentes.

É possível discernir diferentes sensibilidades e técnicas na elaboração das

runestones. Para Clairborne Thompson, os casos dos monumentos U80 e U81 (cf.

imagens 10 e 11) são sintomáticos: embora sejam vizinhos, um foi aparentemente o trabalho de um mestre de grande habilidade, enquanto a outra foi um trabalho de um amador não concluído (1975: 91).

Na leitura de Thompson, a maioria das runestones de Uppland permanece onde foram erguidas. Elas são majoritariamente de granito, variando na coloração do cinza escuro ao vermelho claro. A textura também varia, desde superfícies mais lisas até mais grossas. Outras opções de rochas usadas para runestones são arenito, granito gnaisse e calcário. Infusões de feldspato e quartzo podem ter sido levadas em consideração na escolha das rochas (1975: 91-92).

Alguns autores sugeriram a versão clássica das runestones como granito cinza, enquanto Øpir, runógrafo autor de aproximadamente cinquenta monumentos com identificação, preferia o arenito (THOMPSON, 1975: 91-92). Porém, não era possível identificar na década de 70 um padrão mais amplo que vincule a escolha das pedras usadas em runestones com um recorte temporal específico, estilo individual do runógrafo ou circunstâncias geológicas específicas.

A maioria das rochas veio de pedreiras próximas, ainda que alguns casos – a

runestone U 414 é o mais notório – tenha sido importado. A mineração, o preparo e o

transporte envolvidos na elaboração dos monumentos certamente eram caros (THOMPSON, 1975: 92). Como apontou Williams, as runestones foram quase exclusivamente um apanágio dos proprietários de terras (2008: 286).

O trabalho de extração das rochas era inteiramente manual, com cinzel, machado e martelo principalmente, o que exigia um alto valor logo no início do processo de feitura do monumento. Esta característica fomentou um peculiar hábito, a saber, o reaproveitamento de runestones, muito provavelmente fruto de furtos e roubos. Há imprecações contra esses larápios espertos em algumas gravações, o que atesta a frequência relativa da prática. Também era comum utilizar lajes naturais e horizontais,

fruto de glaciações (U 80 e U 81, além da famosa Sö 101), ou pedregulhos naturalmente disponíveis (THOMPSON, 1975: 92-93).

Após a remoção dos grandes blocos das pedreiras, outro perito, especialista no corte do bloco bruto, moldava e ―alisava‖ a superfície a ser utilizada. A altura média dos cortes variava entre cinco e seis pés. O ―sucesso‖ da runestone, i.e., seu provável alcance social, variava conforme o ―modelo‖ desse corte (em arco, retangular, etc.) e do

design gravado na superfície (THOMPSON, 1975: 93).

A seguir, o mesmo artista – ou o runógrafo, ou ambos – escolhia(m) qual face seria gravada e alisava sua superfície com um machado e/ou martelo de pedra. Uma exceção era o uso dos monumentos em rituais ou oferendas votivas, quando o artista não ―alisava‖ as imperfeições, provavelmente de maneira consciente, para propiciar que algumas brechas naturais fossem usadas como receptáculos para os objetos votivos (THOMPSON, 1975: 94).

Com raras exceções, a gravação era feita com formão e malho. Para Clairborne Thompson, algo relevante, mas pouco enfatizado nos estudos sobre as estelas rúnicas, foi a inserção dos elementos ornamentais e figurativos antes da gravação das runas, como atestam alguns monumentos tachados por ele como ―incompletos‖ (U 728, U 801 e U1171; cf. imagem 12): nestes casos, formas zoomórficas foram gravadas nas rochas, mas não há glifos rúnicos (1975: 94).

A gravação desses elementos antes dos glifos pressupõe naturalmente a existência de um projeto ou rascunho prévio140, que poderia ser arranhado sobre a superfície rígida, riscado no chão ou a partir de outro suporte; a depender da experiência do artista, é possível sugerir até mesmo a existência de um projeto mental, fruto do aprendizado e de gravações pregressas. Seja como for, tal questão destaca a importância dos elementos figurativos e ornamentais para além do que foi apontado pelos os runólogos linguistas. A incisão dos glifos, a bem dizer, dependia de uma integração estrita entre o projeto prévio, que determinava a dimensão da sentença, do que poderia ser cinzelado ou não etc.

Uma evidência complementar da elaboração primária do design antes do texto são as estelas U 686 e U 792 (cf. imagens 13, 14, 15 e 16), que apresentam um texto

140 Um possível rascunho é perceptível pela incisão superficial sobre a rocha, como no caso de uma das faces da estela rúnica U 884 (cf. imagens 17, 18 e 19). Thompson, porém, afirmou ainda que a incisão superficial poderia não ser apenas um caso de rascunho, mas de falta de talento do artista (1975: 96).

comprimido ou que extrapola para a parte ―livre‖ da rocha, não obedecendo ao contorno estabelecido a priori (THOMPSON, 1975: 94-95). Como é possível perceber, os erros estavam ao alcance desses artistas. Assim, os runógrafos poderiam usar algumas técnicas para corrigir falhas, como ampliar a perfuração caso tivesse gravado um glifo errado ou imperfeitamente, ou ainda abandonar o glifo pela metade (THOMPSON, 1975: 95). A produção, nestes termos, era projetada provavelmente para atender necessidades do encomendador e/ou os anseios estilísticos do(s) artista(s).

Vale a pena mencionar que a variação das linhas não era fruto tão somente da habilidade do runógrafo, mas da ferramenta empregada. É possível identificar a utilização de ao menos dois tipos de cinzéis: um de extremidade estreita, para a gravação dos glifos, e outro de extremidade arredondada e larga, para os elementos ornamentais, figurativos e para as linhas que delimitavam os glifos das formas serpentiformes (THOMPSON, 1975: 96-97).

Sobre o quesito da autoria, aquele que encomendava o monumento e o cinzelamento tinha pouca influência na composição para além das informações factuais (nomes, locais, etc.). A tarefa não era realizada, certamente, por homens ordinários, ainda que tenham existido amadores, ―aprendizes‖ e ―profissionais‖ (THOMPSON, 1975: 100-101).

Thompson acredita que aprendizes poderiam fazer trabalhos planejados por seus mestres, como nas estelas U 896 e U 940: o uso do verbo raða (―arranjar‖) em ambos os casos confere tal significado (cf. imagem 20). Haveria, assim, uma pré-concepção da obra, seguida com maior ou menor acurácia pelo ―aprendiz‖ selecionado para a tarefa (1975: 101).

Os trabalhos assinados por dois autores não apontam diferentes tarefas para cada um, ainda que Thompson tenha sugerido que um deles era o ―mestre‖ do outro, normalmente o mais famoso da dupla. Este raciocínio aponta para a possibilidade de ao menos dois níveis ou instrumento para o aperfeiçoamento dos ―aprendizes‖; um grupo deles era considerado hábil o bastante para dividir o formão e os cinzéis com o ―mestre‖, ou aprenderia etapa por etapa ao acompanhar um ―profissional‖ (1975: 101).

O outro nível de ―aprendiz‖ e método de aprendizado, por sua vez, compreendia a lapidação das rochas sozinho a partir de um ―projeto‖ pré-concebido pelo mestre in

indicasse como deveria ser feita oralmente, enquanto o ―aprendiz‖ dava forma ao esboço mental oralizado (THOMPSON, 1975: 101-102).

Thompson também refutou a possibilidade da existência de ―escolas‖ ou oficinas (workshops). Primeiro porque os testemunhos escritos são raros: a U 1161 seria um dos poucos exemplos, onde Balli e Froystaein são descritos como aprendizes de Lifstaein141. Em segundo lugar, nem sempre o ―pupilo‖ herdava os elementos mais marcantes do mestre, como no último caso, pois Lifstaein adotou algumas opções ortográficas não seguidas por Balli. Também há casos em que artistas não pertencentes a uma possível ―escola‖ disponham padrões artísticos similares. Em suma, Thompson sugeriu o perigo do uso deliberado do termo ―escola‖, pois apresenta mais problemas que soluções (1975: 101-102).

As diferentes leituras (nível do runógrafo ou ―método de ensino‖) implicam em relações antagônicas com os runógrafos ―aprendizes‖. Caso o pesquisador opte pela leitura de nível, a abordagem considera a qualidade dos trabalhos por um viés estético. Neste reforço entre aprendizes e profissionais, Thompson defendeu uma escala de ―talento‖ bastante subjetiva e complexa. Ao considerar as perspectivas de representação da época, algo considerado hoje como grosseiro e primitivo pode ter sido, no final da

Era Viking e mais além, um trabalho de refinamento e deleite.

Além disso, é preciso considerar neste modelo hipotético que o ―aprendiz‖ que dá forma ao trabalho do ―mestre‖ sozinho estaria numa condição melhor do que um hipotético ―aprendiz‖ que trabalhava junto do ―mestre‖, ou seja, que dependia de acompanhamento para não cometer erros graves.

Por outro lado, ao considerar a perspectiva do ―método de ensino‖, um ―aprendiz‖ era certamente prestigiado pelo ―mestre‖ ao dividir uma produção com este, enquanto outro ―aprendiz‖ hipotético não era considerado hábil o suficiente para assinar junto com seu ―tutor‖.

Qual a leitura é admissível? Considero um posicionamento absoluto como exagero. Os dados fragmentados e uma análise a olho nu sobre esses homens não possibilita uma conclusão. Seja como for, o desnudamento das hipóteses é interessante

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No §BP/BQ, ―Ambos [pai e filho] foram queimados, e Balli [e] Freystein, da companhia de Hlífsteinn, gravaram‖. Outra possível tradução seria ―Ambos [pai e filho] foram queimados, e Balli [e] Freystein [e] Hlífsteinn [gravaram?]‘ (―§BP BaðiR fæðrgaR brunnu, en [þæi]R Balli, Frøystæinn, lið Lifstæin[s

ristu]‖. ―§BQ BaðiR fæðrgaR brunnu, en [þæiR] Balli, Frøystæinn, lið Lifstæinn‖). Aqui, adotei

ao considerar novos e diferentes indícios que ofereçam uma leitura divergente dessas matrizes.

A partir dessas discussões, alguns autores tem sugerido a associação entre ―mestres‖ e ―aprendizes‖ em termos de ―escolas‖. No entanto, para Thompson, há raros indícios neste sentido (U 1161 graças ao verbo lið); outro ponto contra tal leitura é que nem sempre o suposto ―aprendiz‖ herdava o estilo do ―mestre‖. Visto que o problema era indissolúvel em época, Thompson preferiu não usar o termo ―escola‖, uma vez que pode provocar erros interpretativos e que há limitações inerentes no conhecimento das relações entre ―mestre‖ e ―aprendiz‖.

A questão dos ―mestres‖ e ―aprendizes‖ também desdobra a identificação dos trabalhos não autografados. Neste quesito, é difícil identificar o desvio como individualidade. Ao considerar o aspecto da formulação da sentença, o risco é assumir algo como inerente a um ―autor‖ ou autoria que seja de propriedade comum. De todo modo, como seria possível entender a autoria no contexto elencado? Essa questão continua intransponível e passível de interpretações variadas.

A reação das ferramentas frente aos diferentes tipos e graus de dureza das rochas precisa ser igualmente considerada nessas ponderações. Como apontado outrora, a utilização do monumento num ritual ou como ponto de oferendas, por exemplo, poderia exigir uma superfície mais grossa; consequentemente, a precisão das incisões seria limitada e menos exata.

Dentre os elementos capazes de identificar autoria, Thompson apostou nos padrões ortográficos, mais específicos e, na visão do autor, menos arriscadamente como propriedade comum de uma comunidade de runógrafos. O design do monumento seria o segundo elemento capaz de ajudar o runólogo a identificar um possível ―autor‖. Um terceiro fator, mas que também pode ser enganador, era a forma de grafar as runas, uma vez que havia vários padrões conforme a região e o desejo do encomendador (1975: 103-105).

Apesar de considerar essas perspectivas, muitos especialistas erraram ao formular associações entre ―autores‖ de diferentes runestones. Em alguns casos, até trabalhos autografados apresentam variações consideráveis (U 29 e U 532 de Þorbiorn

mostra-se difícil para elucidar a tarefa de elencar quem é o ―autor‖ (ou ―autores‖) desses monumentos.

Thompson afirmou, neste sentido, que ―nenhuma evidência pode ser descartada quando a evidência fala a favor ou contra uma atribuição. É o peso acumulado das evidências de todas as perspectivas runográficas que devem ser levadas em consideração‖ (1975: 104). Ao que tudo indica, a melhor opção na década de 70 era trabalhar com graus relativos de certeza nas atribuições.

Outro problema em decorrência desta análise está na hipervalorização do texto em relação à imagem. Ao apontar que algumas runestones dispunham de elementos ornamentais e figurativos mas não tinham textos, Thompson reforçou a preeminência do texto sobre a imagem. Neste ínterim, não haveria sentido a existência do monumento sem o texto, que seria o elemento central e motivador da peça. Contudo, há vários exemplos de monumentos aparentemente concluídos e complexos e que não apresentam inscrições. Eles seriam menos importantes que os monumentos com inscrições? Como aplicar as possibilidades interpretativas nestes casos?

Outro motivo que reforça o papel da escrita sobre os elementos figurativos e ornamentais são o título da pesquisa e o conceito norteador dos trabalhos. Ao considerar a runografia, mesmo que além da questão ortográfica e observando características que diferenciam diferentes ―gravadores‖, inclusive imagética e estética, tem-se em mente e destaque o sufixo -run, ou seja, dos glifos. Sem eles os monumentos são tachados como incompletos ou frutos do amadorismo de um artista inábil.

No bojo da questão, as teses doutorais de Henrik Williams e de Svante Lagman, ambas da década de 90, refutam a possibilidade de datação das estelas rúnicas em termos linguísticos. De fato, não há apenas fatores cronológicos que devem ser levados em consideração, mas também regionais que implicavam no uso dos glifos (LAGMAN, 1990; WILLIAMS, 1990).

2.5. Entre “céticos” e “românticos”: as funções das estelas rúnicas escandinavas