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Pesquisa de campo x Pesquisa interna: vantagens e problemas

Erik Moltke cunhou em 1980, por ocasião do Primeiro Simpósio Internacional

sobre Runas e Inscrições Rúnicas (First International Symposium on Runes and Runic Inscriptions), os termos skrivebordsrunolog e feltrunolog, como adjetivos das diferentes

formas de estudo das runas. Eles podem ser traduzidos, respectivamente, como ―runólogo de mesa‖ e ―runólogo de campo‖, ou seja, em que espaço e condições o especialista das runas optou como sua principal forma de abordar os artefatos.

Para Raymond Ian Page, os runólogos de campo tendem a ver as inscrições em seu contexto epigráfico, considerando as condições materiais, o espaço, como o artista quis dispor a inscrição ou pontuá-la, a natureza das ferramentas, se o artista era de fato

letrado ou não, ou ainda marginalmente letrado, com erros de grafia. Por outro lado, os runólogos de mesa estão envolvos em problemas linguísticos e literários. De maneira crítica, ele era um ferrenho defensor da primeira perspectiva (1995: 8-9).

Runólogos da cepa de Erik Moltke e Sven Jansson, entre as décadas de 70 e 80, enfatizaram que as inscrições rúnicas são artefatos de campo e devem ser estudados de maneira contextual, a partir do método arqueológico e levando em conta a opinião de arqueólogos. Eles ainda criticaram aqueles que trabalhavam com fotos e ilustrações em vez da própria evidência.

Outros runólogos, a saber, como Klaus Düwel e Elmer Antonsen, filólogos especializados em línguas germânicas, tendiam aos estudos de escritório; apesar da divergência entre ambos, eles defendem que determinadas conclusões só podem ser alcançadas em trabalhos separados da atividade de campo, que pode condicionar demais e enviesar a observação do especialista das runas (ANTONSEN, 2000: 1-6).

A querela parece derivar, em última análise, da relevância cada vez maior da Arqueologia para o estudo das runas, que demoveu a Linguística de seu papel principal. Ao observar, por exemplo, o verbete runas do Guia para a História das Línguas

Germânicas do Norte (2002), a definição da runologia é a que segue:

A runologia é o estudo linguístico ou textual-filológico das runas e das inscrições rúnicas. A primeira tarefa do runólogo de campo [*sic] é examinar inscrições por autópsia e chegar à leitura mais certa possível [...] pois apenas assim o texto pode ser determinado (KNIRK, 2002: 645-646. O grifo é meu)134.

Ao prosseguir, James Knirk apontou a necessidade do insight linguístico e a imaginação necessária para formular questões e para a autocrítica. Para ele, a perspectiva interdisciplinar é necessária, mas ao que parece, de maneira auxiliar (2002: 646). A mesma conclusão foi alcançada por outro runólogo de mesa, Elmer Antonssen, que não descartou os campos auxiliares, mas não abriu mão do papel fundamental da Linguística na condução dos estudos rúnicos, pois apenas ela poderia sanear os problemas interpretativos que os eruditos calcados em outras ciências não poderiam alcançar (2002: 1-15).

134 ―Runology is the linguistic or text-philological study of runes and runic inscriptions. The primary task

of the field runologist is to examine inscriptions by autopsy and arrive at the most certain readings possible [...] for only then can the text be determined‖.

Page assumiu anos atrás que, de fato, por ocasião do Primeiro Simpósio, a nata da runologia estava presente e submeteu os jovens acadêmicos sob controle estrito: eles podiam comentar as apresentações, mas não havia espaço para a apresentação de trabalhos. Apenas no Segundo Simpósio, em Sigtuna, cinco anos depois, alguns dos novatos foram alçados ao status principal (2006: 457).

A partir dessas contribuições, além do avanço das intervenções da Arqueologia e de perspectivas teórico-metodológicas inovadoras e capazes de lançar novas luzes sobre as runas, até mesmo runólogos de mesa vincados na Linguística como Düwel perceberam as limitações explicativas desta última ciência-guia da runologia. Portanto, havia um establishment num primeiro momento que reforçava a situação ao paradigma tradicional. Este aos poucos foi transformado a partir de novas intervenções, das contradições, problemas e dinâmicas internas do saber runológico.

Deste modo, Düwel, ao comentar sobre a força deste campo para o estudo das runas, afirmou que

a terminologia inambígua linguística certamente ajuda a compressão [...] todavia, é preciso ter em mente que as antigas inscrições rúnicas baseiam-se numa cultura arcaica e oral, cujos hábitos de escrita são apenas parcialmente conhecidos. Os processos linguísticos de mudança são apenas parcialmente aparentes, e a partir de amplas áreas geográficas nas quais deveriam ter diferenças regionais (DÜWEL, 2002: 136)135.

Por outro lado, autores como Barnes James Knirk e Raymond Ian Page agiram na contracorrente. O primeiro, ao organizar o Terceiro Simpósio sobre Runas e

Inscrições Rúnicas em 1990 em Grindaheim, Noruega, deixou de lado a divisão entre

runólogos de mesa e de campo para promover simpósios temáticos. Todavia, o status amador da disputa entre os campos foi ressaltado por Page na conferência de encerramento do quinto simpósio sobre runas e inscrições rúnicas em Jellinge, 2000. Na ocasião, ele lembrou um comentário de Michael Barnes sobre o assunto:

Até os mais reverenciados nomes da disciplina [i.e., da runologia] parecem ter sido autodidatas - acadêmicos educados em campos relacionados que estavam dispostos ou interessados para ter uma meta [...] isso tem tido resultados desafortunados [...]: qualquer um que toma um gosto pelas runas e pela escrita rúnica lança-se ao negócio e proclama a si próprio como

135 ―unambiguous linguistic terminology certainly aids understanding[...] However, one must bear in

mind that the older runic inscriptions stem from an archaic, oral culture whose writing habits are only partially known. Linguistic processes of change are only sketchily apparent, and this across wide geographical areas in which there will have been regional diferences‖.

competente para pronunciar sobre o assunto ao próximo homem (BARNES, 2006: 458)136.

Nestes termos, a superação do autodidatismo e do empoderamento causado pela fragilidade da runologia poderia ser a criação de departamentos de runologia independentes para a formação de runólogos livres destes problemas (BARNES, 2006: 458). Este cenário, no entanto, ainda não ocorreu137.

Tal disputa rememora as concepções e reflexões sobre o conceito de campo e do

homo academicus de Pierre Bourdieu. O campo, assim, seria entendido como um

espaço marcado por relações de força, interesses e estratégias regidos por regras próprias, princípios e hierarquias; seria delimitado pelos conflitos e tensões produzidos pelas redes de relações e oposições dos atores sociais que fazem parte do próprio (BOURDIEU, 2003: 9; SILVA, 2003: 120; CHARTIER, 2002: 140).

O campo ainda é caracterizado por espaços sociais normatizados, criados e transformados pelas ações dos atores, que agem de maneira dinâmica na produção de desvios, novos espaços, normas, regras, princípios e hierarquias. Por fim, o campo só faz sentido a partir da observação relacional de seu jogo interno de oposições e distinções (BOURDIEU, 2003: 179).

O campo é, simultaneamente, um ―campo de forças‖ que constrange seus agentes circunscritos e um ―campo de lutas‖, no qual os agentes atuam para manter ou modificar sua estrutura (BOURDIEU, 1996: 50). As mudanças no status da runologia, desta feita, podem ser entendidas neste viés: os linguistas tentam a todo custo manter o papel preponderante, conquanto outros especialistas estejam alterando, pouco a pouco, a estrutura e os poderes internos do campo runológico.

Do homo academicus, é preciso lembrar o esforço de ―vigilância epistemológica‖ exercido pelo establishment intelectual, no qual há uma luta determinadora dos critérios de pertencimento e hierarquia que legitimam as conclusões e atos dos membros do campo (BOURDIEU, 2011: 32). O domínio exercido pelos estabelecidos frente aos novatos, i.e., menos institucionalizados, é uma tentativa de

136 ―Even the most revered names of the discipline seem to have been autodidacts - scholars educated in

related fields who were willing or keen to have a go [...] This has had unfortunate results [...] anyone who takes a fancy to runes and runic writing sets up in business and proclams himself as competent to pronounce on the subject as the next man‖.

137 Apesar do desenvolvimento de departamentos de runologia em instituições de pesquisa europeias não terem desenvolvido, é importante frisar algumas iniciativas institucionalizadas, como a linha de pesquisa em ―estudos runológicos‖ do mestrado em estudos islandeses da Universidade da Islândia, por exemplo.

monopólio do discurso legítimo sobre o mundo social (BOURDIEU, 2011: 102). Contudo, o prestígio dos estabelecidos cessa com o passar do tempo: os antigos dominadores aos poucos são levados, sem se dar conta e apesar de seus esforços, ao status de dominados, inclusive contribuindo para sua própria derrocada (BOURDIEU, 2011: 168-169).

Esta última discussão pode ser perfeitamente adequada ao contexto do estudo das runas. Os runólogos afinados com a Linguística, com o avanço da Arqueologia e outros campos do saber, passaram a ser criticados pelo uso de fotos e ilustrações no exercício laboral como algo que limitasse sua objetividade, além de transformar o monumento na totalidade a ser observada; estes, por outro lado, tentaram coagir e limitar os novos runólogos com argumentos linguísticos ou pela condição de estabelecidos.

Apesar desses esforços, as novas contribuições e leituras não podem ser simplesmente descartadas ou negadas, uma vez que já propiciaram contribuições efetivas e revitalizaram os enrijecimentos provocados pelo alinhamento linguístico da runologia de décadas atrás.

Entrementes, algumas tentativas de renovação foram feitas a partir da interface entre a Linguística, a Estatística e a Informática. Lennart Elmevik e Lena Peterson em 1989 organizaram a obra do projeto A cronologia das inscrições rúnicas da Era Viking (Vikingatide Runinskrifternas Kronologi), um dos primeiros casos de uso sistemático dos computadores para os estudos rúnicos. Eles usaram uma base de dados de inscrições e pesquisadores como Svante Lagman e Henrik Williams fizeram os primeiros apontamentos sobre runologia quantitativa com uso de computadores, seja na análise ortográfica ou em novas interpretações de inscrições rúnicas (1989: 7-12; 1989: 39-50).

Lina Peterson, ainda numa perspectiva bastante tradicional e apoiada na mesma base de dados, publicou em 1994 a obra Registros rúnicos suecos (Svenskt

runordsregister), onde dispõe uma lista das palavras presentas nas runestones (exceto

nomes próprios), seguidas pelo código do monumento onde elas foram encontradas (conforme o Rundata). Foram analisadas somente as runestones do período entre c.800- 1100 nos limites da Suécia. A justificativa para o trabalho frente à iniciativa do Sveriges

runinskrifter é apresentar as inscrições não presentes nessa coletânia ou ainda não

Assim, trata-se de um trabalho de síntese de diferentes trabalhos de publicação (1994 [2006]: 9-94).

Aproveitando a influência dos recursos tecnológicos ainda sob essa ótica, Bengt Sigurd e Johan Dahl apresentaram no artigo Rune: a computer program for

interpretation of runes stones (1997) um software que seria capaz de interpretar e

traduzir estelas rúnicas suecas do período entre 800-1100 para o sueco moderno. Como boa parte delas são baseadas na fórmula padrão (X ergueu essa rocha em memória de Y...), hipoteticamente o serviço teria um bom percentual de acerto (1997: 217-231). Contudo, o software, graças à ―lei da runodinâmica‖ e aos problemas metodológicos apresentados, foi pouco aceito pela comunidade científica.

Apesar dos esforços envidados supracitados, nota-se a dependência das outras áreas como ciências auxiliares a partir de explorações formulaicas, como no programa capaz de traduzir as inscrições, ou para auxiliar nas datações e cronologia, elementos fundamentais para desnudar os processos de transformação da língua, ou ainda para propiciar novas interpretações dos textos já traduzidos por análise combinatória, mas que levassem em conta princípios ortográficos ou linguísticos pré-determinados.

Sobre o trabalho direto ou não com o monumento como argumento legitimador do trabalho científico, é preciso considerar as condições de fotografia e acesso aos catálogos até os anos 90. Os computadores ainda eram pouco utilizados e a formação de banco de imagens digitais e abertos ao público ainda era um sonho a ser alcançado. A impressão dos catálogos em tamanho que proporcionasse o trabalho nos escritórios também deixava a desejar, assim como os custos de produção e o baixo interesse proporcionado pela pequena quantidade de especialistas e interessados nas runas.

Hoje, porém, o cenário é outro. As imagens podem ser reproduzidas em altíssima resolução por baixíssimo custo online; há recursos de análise de estrutura de superfície, modelagem tridimensional e fotografia aérea, por exemplo, gratuitos e acessíveis a partir de qualquer computador doméstico.

Lançar mão desses argumentos não condiz, nestes termos, ao estado tecnológico e de acesso aos monumentos aqui evocados, conquanto a tendência a priorizar o texto exija um esforço adicional por parte do pesquisador de além-mar. Ademais, trabalhar diretamente com o monumento não supera a subjetividade do observador ou do testemunho.

Quanto ao testemunho, o comentário de Philippe Ariès me parece bastante apropriado:

O testemunho é, ao mesmo tempo, uma existência pessoal ligada intimamente às grandes correntes da História e um momento da História apreendido em sua relação com uma existência particular [...] o testemunho é um ato propriamente histórico. Ele ignora a objetividade fria do cientista que conta e explica. Ele se situa no encontro de uma vida particular e interior, irredutível a alguma média, rebelde a toda generalização e às pressões coletivas do mundo social (ARIÈS, 2013: 111-112).

Também é preciso lembrar que a Runologia e a História nem sempre compartilham as regras e fundamentos epistemológicos do Direito, uma vez que a impossibilidade de inferir o real não é a pergunta ideal para ambos os casos (GINZBURG, 2006: 211-232). A meu ver, o conhecimento das limitações da objetividade do suporte teórico-metodológico, das disputas de poder dentro do campo e das representações usadas são muito mais úteis que a discussão sobre a objetividade do trabalho frente a frente ao monumento rúnico ou não, mais afeita a meados do século XX.

Outrossim, alguns especialistas ainda estão apegados ao fetiche do monumento e sua objetividade inata. Anne Gerritsen & Giorgio Riello, por exemplo, atestaram a importância dos bancos de dados de imagens ao trabalhar com a cultura material, uma vez que o acesso aos objetos e monumentos é restrito. ―Deve ser observado, no entanto, que o acesso online para imagens digitais é uma das ferramentas disponíveis aos pesquisadores e não substituiu o engajamento com os artefatos materiais‖ (2015: 27)138

. Parece óbvio que o trabalho direto com o indício aumenta as possibilidades de objetividade e maior alcance de análise do pesquisador. Todavia, ao considerar a querela entre os runólogos de campo e os runólogos de mesa, seria temerário deixar de lado as contribuições dos últimos ou elevar os primeiros sem ponderar sobre as condições e limitações de seus campos de atuação.

Parece mais frutífero, então, assumir tanto as limitações do observador quanto do observado e os múltiplos canais de subjetividade que são projetados sobre qualquer pesquisa científica. Caso contrário, o status do monumento é elevado a um grau de objetividade falso que torna o pesquisador incapaz de falhar,

138 ―It should be observed, however, that online access to digital images is one of the tools available to

como se o documento pudesse exprimir alguma coisa de diferente de si mesmo [...] Um documento é um fato. A batalha é um outro fato (ou uma infinidade de outros fatos). Os dois não podem fazer um [...] O homem que opera é um fato. E o homem que relata é um outro fato [...] Todo testemunho é testemunho apenas de si mesmo; do próprio momento, da própria origem, do próprio fim, e de nada mais (SERRA, 1974: 285-286)139.

Ao projetar essas reflexões ao campo da runologia, percebe-se que diferentes pesquisadores dos últimos 25 anos tentaram assentar opções interpretativas interdisciplinares sobre as runas. Estes olhares, sejam eles conservadores ou inovadores, envolvem usos, abusos, produção, manutenção e ressignificação desses monumentos e do próprio campo, o estabelecimento de um novo establishment, de novos paradigmas e de novos desafios, como o debate sobre as funções das runas no passado conforme os posicionamentos intelectuais e pessoais dos pesquisadores.

No meu horizonte de preocupações, preferi investir meus esforços em uma postura mediadora, que leva em consideração as vantagens da aproximação de campo e de escritório. Como os monumentos alvo dessa pesquisa não se encontram no mesmo local e não é possível, a partir apenas do contato com os artefatos, recobrar plenamente suas condições nos séculos X e XI, o debate apresentado serve como alerta sobre as limitações e possibilidades que as cruzes de Sigurðr oferecem.

Por isso, tentei complementar as fontes materiais com toda bagagem teórica necessária para constituir uma hipótese plausível, aliada de comparações com regiões vizinhas espaço e temporalmente, acompanhada da crítica das fontes e bibliográfica. Também assumo em uma tentativa de leitura ampla e multinível, que leva em consideração as interações, usos, abusos e reflexões sobre essas cruzes e lajes de pedra, no intuito de propor um arcabouço teórico-metodológico adequado e renovado.