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Conversão, cristianização, hibridismo: um debate teórico aplicado aos casos man

A mudança de pertencimento de uma comunidade de crença para outra, o que convencionalmente é chamado de conversão, ocorre de maneiras e por razões diferentes: pode ser súbita ou gradual, voluntária ou coagida, de pequena ou grande escala. Pode ter sido motivada por missionários, por decisões instrumentais, atrações intelectuais ou espirituais. Apesar das mudanças, as distinções entre grupos muitas vezes podem ser problemáticas, vide a proximidade entre os modos de adoração e o compartilhamento de motivos artísticos e literários (KATZNELSON & RUBIN, 2013: 1).

De maneira geral, os conceitos a partir dos quais se trabalha a mudança de paradigmas religiosos entre indivíduos, comunidades e sociedades são amplamente empregados entre os estudiosos dos fenômenos da religião em diferentes épocas. Dos estudos voltados ao Medievo, termos como conversão, cristianização, islamização e

paganização têm sido discutidos por diferentes especialistas para diferentes recortes

temporais (MORRISON, 1992: 1-5; RAMBO, 1993: 170-171; BAINBRIDGE, 1997: 414-415; MULDON, 1997: 1; BEREND, 2007: 1-4; KATZNELSON & RUBIN, 2013: 1-30).

O mesmo pode ser dito para a Escandinávia medieval. De fato, a tradição de estudos deste gênero é longeva e muito extensa, utilizando diversos tipos de evidência para tentar explicar os motivos do abandono das práticas religiosas tradicionais para a adoção de novos parâmetros religiosos. A bibliografia a respeito quase sempre pauta o tema na perspectiva cristã, conquanto trabalhos a partir de outros vieses tenha recebido atenção nas últimas décadas (RADFORD, 2015: 2).

As pesquisas sobre tais perspectivas dedicam-se principalmente ao relacionamento entre religião e identidade. A conversão implica numa transformação ―de algo para algo novo‖ que não é nem sincrética nem absolutamente uma quebra, conquanto estas perspectivas sejam as mais empregadas (AUSTIN-BROOS, 1997: 1; KATZNELSON & RUBIN, 2013: 1).

Nestes termos, a opção pelo termo ―sincretismo‖ é interessante e ele parece ser amplo o bastante, adequando grupos aos processos de onda cultural e uma visão

cosmopolitana, bastante adequada no caso cristão de maneira geral. No entanto, a conversão vai além disso:

Converter-se é re-identificar, aprender, reordenar e reorientar. Isso envolve modos de transformação inter-relacionados que geralmente continuam com o termo e definem um curso consistente. Não apenas um mero sincretismo ou a conversão podem envolver uma simples e absoluta quebra com a vida social prévia (AUSTIN-BROOS, 1997: 2)55.

No bojo da questão, é preciso sugerir quais eram os parâmetros de conversão e

cristianização aplicados e aplicáveis ao contexto escandinavo, principalmente para o

período reconhecido como Era Viking (c.800-1100). Eu percebi que a utilização destes termos é empregada com frequência pelos antropólogos e historiadores, embora raramente seja conceituada ou tal empreendimento deixe muito a desejar.

Johnni Langer, por exemplo, definiu estas noções em nota:

Aqui diferenciamos conversão (que implica uma metanóia completa e absoluta, com o abandono radical de todas as crenças anteriores) e

cristianização (que é menos enfático e pode ser apenas a sobreposição

híbrida ou não de uma religião sobre outra) (2010: 143).

A perspectiva de Langer da conversão dispôs simultaneamente e paradoxalmente dois pontos de vista usados pelos historiadores: o mais antigo, da transformação instantânea ou completa divisão entre uma forma de vida anterior – como nos casos bíblico e teológico –, e o mais recente, que enxerga a conversão (e não a cristianização, como exposto pelo autor supracitado) como um evento ou mecanismo gradual, dinâmico e frequentemente incompleto na perspectiva processual (BAER, 2014: 26).

Alguns autores, como Stig Welinder, reconheceram a complexidade do termo

cristianização e optaram por uma leitura política do mesmo, a saber, como um processo

complexo que vai do batismo dos primeiros indivíduos até a instituição política e organizacional eclesiástica em uma determinada região (2003: 509-510).

Deste modo, o termo cristianização deve ser relativizado para além de seu uso corriqueiro, i.e., ―a rejeição de uma tradição religiosa a favor de outra‖ (MULDON, 1997: 1), posição corroborada por Katznelson & Rubin. Ao utilizar o termo conversão

55 ―To be converted is to reidentify, to learn, reorder, and reorient. It involves interrelated modes of

transformation that generally continue over time and define a consistent course. Not mere syncretism, neither can conversion involve a simple and absolute break with a previous social life‖.

para descrever uma gama de experiências religiosas, ocorre uma simplificação demasiada de seu significado. É impossível, ao comparar dois casos, que as experiências de Paulo de Tarso e de Constantino fossem idênticas, embora o termo empregado para descrevê-las seja o mesmo (MULDON, 1997: 1).

De maneira geral, a noção de conversão tem sido empregada ora para ilustrar situações que abarcam apenas um indivíduo, ora circunstâncias que envolvem grupos. Nesse ínterim, James Muldon empregou o termo conversão (conversion) para ilustrar os casos de Paulo de Tarso e Constantino, e conversão comunal ou conversão popular (communal conversion) para o mesmo fenômeno expresso em grupos (MULDON, 1997: 2-4).

Karl Morrison considerou a palavra conversão como uma metáfora, vide que a obscuridade e a incomunicabilidade da experiência conhecida metaforicamente como conversão. Sendo assim, a evidência histórica escrita é apenas uma ―ficção poética‖ do fenômeno religioso. Embora a conversão seja uma experiência individual, ela é reconhecida e tem significado apenas como um artefato histórico, produzido a partir de vários estágios de transmissão e do contexto das sociedades e das tradições as quais está inserida (MORRISON, 1992: 1-5).

Paralelamente, Lewis Rambo considerou que a conversão apresenta padrões gerais, apesar das experiências individuais e coletivas diversas e dos modos de interação diferenciados. Este erudito defendeu que ―a experiência humana é, por definição, moldada pelo meio; há uma dialética constante entre a experiência humana e o ambiente da pessoa‖ (1993: 170-171).

Por outro lado, os estudos mais recentes têm demonstrado os múltiplos significados da conversão e a natureza negociada do compromisso com a Cristandade (BEREND, 2007: 4). ―Na mesma medida, a definição moderna de Cristandade para o período sob investigação precisa estar baseada na compreensão medieval do que constituía um cristão, para evitar o anacronismo‖ (BEREND, 2007: 4-5).

Destarte, estas questões rememoram o debate dos anos oitenta e noventa entre John Van Engen e Jean-Claude Schmitt acerca da Idade Média Cristã. Em suma, o segundo contestou vigorosamente a ―lenda da Idade Média Cristã‖, e sugeriu que a sociedade medieval era composta por uma minúscula elite clerical e uma massa de

pessoas que viviam na cultura folclórica, como observado por antropólogos nos países subdesenvolvidos em nosso tempo (1998: 376-387).

Van Egen, por outro lado, rejeitou a concepção da Idade Média em duas culturas distintas, i.e., uma clerical e letrada, outra oral e costumeira. Ele afirmou que a maioria absoluta dos homens comuns no medievo não tinha acesso direto às normas escritas da cultura cristã. Assim, a verdadeira questão repousava no grau de Cristianismo frente à cultura oral nos rituais, na arte, na literatura e na cosmologia (1986: 519-552).

A divergência entre os dois é fruto não só das diferenças teórico-metodológicas entre as escolas francesa e americana, mas também entre os indícios utilizados: Schmitt deu preferência para as evidências da cultura popular, oral e costumeira, enquanto Van Engen debruçou sobre os documentos clericais da cultura escrita.

Vale ressaltar que o americano não rejeitou a importância da cultura popular, mas acredita num amálgama muito profundo entre esta e a prática cristã. O francês, por sua vez, enxergou a cultura popular como uma manifestação de como os rituais cristãos foram secularizados ou ao menos despidos de sua santidade.

Para sistematizar as oposições é possível traçar uma separação entre conversão e

cristianização. Ao seguir as tendências supracitadas, observa-se a inclinação de alguns

pelo uso do primeiro termo como uma experiência individual, enquanto o segundo está voltado para a sociedade. Desse modo, Kilbride forjou algumas comparações conforme a tabela a seguir:

A Cristianização preocupa-se com as formas A Conversão ocupa-se da fé

A Cristianização é um processo de longa duração A Conversão é um evento singular e único A Cristianização é um fenômeno social A Conversão é um fenômeno individual Os alvos da Cristianização são as estruturas de

reprodução social, como a família, o Estado, a comunidade local, a prática social

O alvo da Conversão é o indivíduo removido ou independente de seu contexto social A Cristianização está situada numa estrutura de

poder e dependência

A Conversão é independente ou ao menos isolado das estruturas de poder e dependência A Cristianização é construída

antropologicamente

A Conversão é construída psicologicamente, não sendo tratada pela Antropologia

Tabela 1: Quadro comparativo entre os conceitos de cristianização e conversão proposto por Kilbride.

Nota-se que a ênfase do autor repousa no primeiro termo. Fonte: Kilbride (2000, adaptado).

Ainda conforme Kilbride, o termo ―sincretismo‖ é extremamente problemático porque pressupõe um compromisso entre dois estados básicos (cristianismo e paganismo) e nega a fluidez entre os dois (2000: 8). Para o autor, ―Assim como é claro que o dia é longo, o Cristianismo da Primeira Idade Média era fluido. Ele não era claramente definido‖ (2000: 9).

As narrativas medievais tradicionais, por sua vez, sob a ótica do cristianismo, tendem ao argumento post hoc da conversão. Assim, o erudito sugeriu uma análise mais precisa dos mecanismos de cristianização em vez do ponto de vista teológico de época, fortemente influenciado por ambientes religiosos (2000: 12).

Todavia, como apontam as homilias e penitenciais concomitantes ao período de transformação religiosa na Escandinávia, esses mecanismos são de longa duração: a Igreja entendia que a ―cristianização‖ da sociedade perduraria até o Dia do Juízo (THOMPSON, 2012: 32).

Sobre o ―hibridismo‖, Aleksander Pluskowski e Philippa Patrick revalidaram o termo sobre outras bases, i.e., para se referir a qualquer situação intermediária entre os dois paradigmas contrastantes, sem ignorar, contudo, as variedades de paradigmas ―pagãos‖ e ―cristãos‖ identificáveis a partir da cultura material (2003: 30-31).

Embora as críticas de Kilbride sejam interessantes para refletir sobre as bases dos conceitos usados na transição entre religiosas, elas não são perspectivas majoritárias entre os estudiosos da Idade Média, seja como um todo, seja apenas na esfera dos estudos sobre a Escandinávia.

Dentre outras possibilidades de estudo, seria possível adotar a abordagem de John Lofland e Rodney Stark (1965) sobre as teorias da conversão. Eles sugeriram sete momentos desse fenômeno: 1) tensão (discrepância sentida entre um estado ideal e a realidade); 2) tipo de perspectiva problema-solução (identificação das mazelas e busca por soluções); 3) procura (por uma afiliação religiosa mais satisfatória); 4) ponto de inflexão (ruptura pós-tensional e o ato de abraçar algo diferente); 5) laços cúlticos afetivos (relação com um ou mais conversos a partir de laços pré-existentes ou novos); 6) laços afetivos extracúlticos (com a família, amigos, etc., a partir de retóricas que neutralizem os conflitos); 7) interação total (quando o converso interage diariamente, forjando laços físicos e mentais com a comunidade)(1965: 862-875).

Como um desdobramento deste trabalho, anos depois John Lofland e Norman Skonovd (1981) desenvolveram a teoria dos motivos da conversão: 1) Intelectual (busca privada anterior à participação em uma atividade organizada ou ritual que promove mais uma iluminação do que um êxtase); 2) Mística (de subjetividade intensa, breve duração, rapidez inicial, com ―alucinações‖ auditivas e/ou visuais e com mudança comportamental); 3) Experimental (progressão de estados mentais e predominantemente

cognitiva, movida muitas vezes pela curiosidade); 4) Afetiva (ligação emocional ou afetiva por parte do praticante e, obviamente, fruto da participação nos rituais); 5)

Revivalista (profunda experiência individual e emotiva em meio à turba); 6) Coercitiva

(espécie de lavagem cerebral a partir de pressões externas, prolongadas e intensas. Retirada a pressão, o indivíduo pode retornar ao estado religioso anterior) (1980: 373- 385).

Ainda que as etapas de Lofland & Skonovd sejam aplicáveis para o contexto escandinavo, elas demandariam uma análise pormenorizada de diferentes casos de conversão. Deste modo, partirei inicialmente da perspectiva teórico-metodológica de Marc David Baer sobre a conversão, uma versão simplificada e aperfeiçoada da anterior. Para ele, há quatro possibilidades observáveis em termos de progressão temporal: 1) aculturação ou transformação religiosa que acompanha a incorporação num império ou sistema socioeconômico conquistador; 2) adesão ou hibridismo, quando pessoas ou grupos adotam novas crenças e práticas sem abandonar as antigas formas; 3) sincretismo, ou seja, quando os conversos reconciliam e fundem antigas e novas crenças e práticas para criar uma nova síntese religiosa; 4) por fim, a

transformação, situação em que o converso tenta substituir totalmente a antiga crença

pela nova (BAER, 2014: 26-37), acompanhada pela galopante transformação espacial e da paisagem mediante a instalação de templos, um passo sine qua non da conversão completa (BAER, 2014: 35).

Tanto nos trabalhos de Lofland quanto em Baer são admitidas situações intermédias, em que os momentos da conversão podem ser fundidos, a descrição da conversão pode assumir duas ou mais categorias explicativas e o papel das redes sociais deve ser levado em consideração (STARK & BAINBRIDGE, 1980: 1376-1395; BAER, 2014: 34-35).

***

Nos termos de Morrison e a partir da parcimônia de registros deixados, vislumbrar qual o estado subjetivo dos homens e mulheres escandinavos que habitavam a ilha é difícil, tanto ao tentar uma leitura do viés não-cristão quanto a partir da fé cristã. As fontes materiais, deste modo, devem ser observadas com acuidade, como alertou

Kilbride, no intuito de evitar interpretações grosseiras e/ou utilitaristas, uma vez que, para Pluskowski & Patrick, há uma miríade de paradigmas religiosos possíveis nesses fragmentos do passado e não é possível definir um termo comum entre essas variadas experiências religiosas.

Seria possível admitir uma conversão comunal de acordo com o preconizado por Muldon e também a partir da experiência dialética defendida por Rambo: a dialética entre os habitantes anteriores da ilha e o cristianismo já presente, a referência aos casamentos entre nativos e escandinavos, a ocupação relativamente dispersa, assim como dos monumentos erguidos, sejam eles túmulos, cruzes ou paróquias.

O caráter negociado da cristandade é interessante nesse contexto, uma vez que diferentes representações que acompanham a cruz, um símbolo eminentemente cristão, mas que recebeu adornos com relevos de prováveis personagens semilegendários, deidades não-cristãs, homens da Igreja e anjos, sem aparente ambiguidade.

Ainda sobre a agência religiosa, Baer elencou a transformação da paisagem como situação necessária para a plena transformação da sociedade. Ainda que o cristianismo da época tenha sido fluido e a tarefa da cristianização fosse encarada de maneira perpétua, os monumentos, como cruzes e templos, servem como um índice do grau de compromisso dos insulares, fossem eles anteriores aos escandinavos ou recém- chegados.

As keeills (ermidas/paróquias) são contemporâneas das cruzes, como Moore constatou em recentes estudos. Por extensão, ambas seriam duas formas de expressar a fé e manipular a paisagem em tons cristãos. Há várias sobreposições de cruzes e paróquias, como é possível notar no mapa. Um dos raros casos é Malew, em tons diametralmente opostos, mas de tons inconclusivos. Nas demais partes da ilha, o aspecto interacional, ao menos sob o viés religioso, parece ter preponderado.

A conversão em curto prazo também deve ter sido o mote manx. O rápido abandono das práticas funerárias com bens tumulares é um parâmetro também da

transformação religiosa, isto é, quando os convertidos

voltam-se para um novo eixo ou padrão de ideais que motivam os conversos a transformar a si próprios e seu ambiente. Eles rejeitam ou denunciam seu passado, crenças e práticas antigas, ou sua indiferença [...], rotulando-os

como errados quando comparados com um futuro diferente em um novo caminho que é concebido como o certo (BAER, 2014: 33-34)56.

Nestes termos, mesmo que os habitantes da ilha não estivessem completamente afeitos aos mistérios do cristianismo, a adoção de novas formas tumulares seria outro indício de rápida, intensa e derradeira alteração do paradigma religioso por parte dos escandinavos que adotaram a Ilha de Man como novo lar: ―quando as massas mudam de religião, isso ocorre numa escala ampla, como se todos os novos crentes e aqueles que compelem sua religião requeresse, espaços onde a recém-fundada fé pode ser articulada e demonstrada‖ (BAER, 2014: 35).

As inscrições rúnicas encontradas em algumas das cruzes, por sua vez, devem ser incluídas nessa linha de pensamento, vide a adoção do substantivo kross, herdado do contato com os cristãos das ilhas. No continente, os gravadores das inscrições memoriais quase sempre optavam por outro substantivo, steinn (rocha, pedra) (JESCH, 2001: 36).

Assim, ao menos na esfera da religião, considero pouco provável que o soerguimento das keeills manx tenham sido reações pelo tumulto das incursões escandinavas. A possível diferença política entre Sul e Norte pode e deve realmente ter existido e também pode ter servido como motivador dos monumentos – como apresentarei no decorrer da pesquisa, é uma possibilidade bastante plausível –, e talvez este seja o viés adequado e possível de aproximação com as possíveis representações de Sigurðr Fáfnisbani na ilha.

Ensejar este panorama teórico, que será reaplicado em outros momentos do trabalho, abre também um canal de reflexão para as magras referências escáldicas sobre Sigurðr compostas nesta mesma época, elaboradas por poetas que circulavam nos salões da Europa Setentrional, incluindo, em algums casos, os salões das Ilhas Britânicas.

1.4. Poetas conversos: o cristianismo na Escandinávia a partir poesia escáldica