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Eilífr Goðrúnarson (c.950-1000) e Skapti Þóroddsson (†c.1030)

1.4. Poetas conversos: o cristianismo na Escandinávia a partir poesia escáldica (sécs.

1.4.1. Eilífr Goðrúnarson (c.950-1000) e Skapti Þóroddsson (†c.1030)

Eilífr é um obscuro poeta escandinavo que serviu ao jarl Hákon de Hlaðir em Trøndelag, na região Centro-Oeste norueguesa. Há indícios que ele era um versejador

norueguês, uma vez que está ausente dos registros islandeses, ainda que não seja um ponto de vista definitivo (NORTH, ALLARD & GILLIES, 2014: 573; CLUNIES ROSS, 1993: 157).

Seu metonímico, Goðrúnarson (filho de Goðrún, nome feminino), evoca a ascensão social do mesmo sem um pai ou independente deste. Quase tudo que sabemos sobre ele é fruto da Edda de Snorri (c.1225). De fato, o único texto que menciona o trabalho e a poesia dele é o Skáldatal, um catálogo medieval de poetas da corte.

Dos dotes poéticos, ele era mais complexo do que seus contemporâneos ao usar

kenningar pautados em epigramas, além de uma leitura compositiva mais abstrata que

política (NORTH, ALLARD & GILLIES, 2014: 573). Eilífr parece não ter se convertido, apesar da meia-estrofe que compôs sobre os poderes do cristianismo: ―Eles dizem que ele se assenta no Sul [= Roma? Jerusalém?] sobre a fonte de Urð [= da norn]; Então o forte rei de Roma [=Deus] tem fortalecido a si próprio com a terra dos deuses‖ (Skj, A-1, 152 e Skj, B-1, 144).

Para Richard North, Joe Allard e Patricia Gillies, talvez Eilífr tenha aprendido algo sobre o cristianismo quando acompanhou o jarl Hákon na derrota dinamarquesa diante de Otto I em 976 (NORTH, ALLARD & GILLIES, 2014: 573). Com efeito, o contexto histórico do poeta era complexo: independentemente da questão religiosa, os nobres sofriam de enorme cupidez, eram insubmissos e brigões, e renitiam as pretensões de unificação (cf. BIRRO, 2013).

Resumidamente, Haraldr gráfeldr (Haraldr da capa cinza, † c. 970) ascendeu ao trono em c.961. O novo rei norueguês era cristão, assim como o último, Hákon góði. Apesar da influência cristã provinda do salão real, missionários anônimos e comerciantes, muitos homens do reino certamente mantiveram suas antigas crenças, como atesta a produção poética da época (ABRAM, 2011: 101).

Porém, o novo reinado foi efêmero. Haraldr eliminou o jarl Sigurðr e outros apoiadores do antigo monarca, motivo que levou a sua morte anos depois pela pressão militar e política imposta por Hákon Sigurðsson (c. 937-995), filho do antigo líder de Hlaðir. Ele herdou o título do pai, mas fugiu da fúria do monarca norueguês e buscou asilo na Dinamarca, onde tramou a morte de Haraldr junto com o rei dinamarquês (Haralds saga Gráfeldar, 1-28).

Com a ascensão do filho de Sigurðr para o posto de governante da Noruega, a iniciativa de expansão do cristianismo do rei Hákon góði foi cortada pela raiz. Após converter-se para agradar o rei Haraldr da Dinamarca e o imperador do Sacro império Otto II (980-1002) em 976, a tradição literária escandinava do século XIII atestou que Hákon Sigurðsson renunciou à fé em Cristo e manteve-se fiel a crença nos deuses nórdicos (Ólafs saga Tryggvasonar, 1-49).

Seja como for, as duas composições reconhecidas do poeta – um elogio ao deus Thórr e o helmingar (meia-estrofe), ambas do final do século X – sugerem um ambiente onde Cristo e a deidade não-cristã são dispostos como complementos divinos (ROSS, 1993: 157).

Apesar das parcas referências, Eilífr parece de fato ter permanecido pagão. O contato com o cristianismo a partir da referência suscitou diferentes versões interpretativas sobre o fenômeno: Rudolf Simek considerou que, pela relação fonológica e tipológica similar, trata-se de uma referência ao rio Jordão, ainda que nenhuma relação causal possa existir (2007: 342).

Anthony Faulkes assumiu um posicionamento diferente: ele enfatizou o caráter pagão do poeta, sem negar que o helmingar é uma composição avessa às crenças e ao outro trabalho de Eilífr. Dada a natureza dos versos, é possível que Cristo estivesse associado à fonte e tenha, na visão do poeta, substituído a referida norn na responsabilidade ou providência do destino dos homens (1995: 201).

Skapti Þóroddsson (†c.1030), por sua vez, tem um passado quase tão nebuloso quanto Eilífr. Conforme o Skáldatal, o primeiro também era um poeta da corte de Hákon, mas não há qualquer outra evidência sobre o assunto. Ele também foi um

lögsögmaðr57 entre 1004 e 1030 (NEDKVITNE, 2011: 173).

As referências ao poeta foram quase exclusivamente extraídas do Íslendingabók (Livro dos Islandeses, c.1130) de Ari fróði Þorgilsson (Ari Þorgilsson, o sábio, c. 1067- 1148), o primeiro cronista de destaque na história islandesa. Ele afirmou que Skapti foi o autor da quinta corte da ilha e de uma lei que impedia alguém indicar um terceiro como autor de um assassinato (Íslendingabók, VIII, 1930).

57 O lögsögumaðr era um recitador das leis que presidia o þingi (assembléia local) e o Alþingi (assembléia maior que reunia os representantes das assembléias locais). Este título foi introduzido na Islândia em 930 (BYOCK, 1993: 11).

Skapti provavelmente era um jovem quando os habitantes da Islândia assumiram o cristianismo como a religião local, em uma assembleia que estabeleceu, entre outras coisas, a exposição de crianças, o consumo de carne de cavalo e o culto privado das antigas crenças (Íslendingabók, VII, 1930)58.

Entrementes, a análise dos túmulos islandeses do período sugere um abandono abrupto do sepultamento nos moldes não-cristãos (VÉSTEINSSON, 2000: 36). O ritual do sepultamento tornara-se costumeiro por volta do ano mil, juntamente com a manutenção da ingestão de carne equina e o abandono de recém-nascidos. Esses fatos nos sugerem que, durante um breve espaço de tempo, a adoção do Cristianismo correu

pari passu à manutenção de outras práticas (BIRRO, 2013a: 22-37).

Apesar dos depoimentos controversos, a única composição de Skapti parece ter sido fruto de um ambiente plenamente cristão: ―O Lorde dos monges tem o maior poder. Deus tem o poder para fazer tudo. O poderoso Cristo criou todo mundo e ergueu seu salão em Roma‖59

.

A semelhança de conteúdo entre os versos de Eilífr e Skapti é interessante e diverge das fontes posteriores, que tentam acentuar em grande medida o papel dos reis missionários Óláfr Tryggvason e Óláfr Haraldsson como promotores da cristianização da Islândia e Noruega.

Em ambos os casos há o reconhecimento de Deus como um ente divino sulista e capaz de conquistar o controle de todo mundo, incluindo a esfera nórdica (NEDKVTINE, 2011: 172-173). No caso de Eilífr, a divergência entre o helmingar e a

Þórsdrápa torna o cenário ainda mais confuso para um estudioso da religião e do

contexto religioso da época.

Para superar essas dificuldades, retomarei o trabalho de Matthew Townend sobre um contexto próximo: ao comparar as diferentes tradições da Batalha de Ashington (1016), ou seja, tanto no viés inglês quanto dinamarquês, Townend percebeu que, dependendo do momento, as opiniões ora divergiam, ora se aproximavam, conforme o momento de redação e da audiência (TOWNEND, 2011: 201-210).

58 Para o debate dessa pretensa uniformização religiosa na Islândia da Era Viking tardia, ver: COSTA & BIRRO, 2010.

59 ―Máttr es munka dróttins | mestr; aflar goð flestu; | Kristr skóp ríkr ok reisti | Róms hǫll verǫld ala‖ (Skj I B, 291).

O mesmo pode ser dito sobre a ascendência de Knútr. Nos poemas escandinavos ou sob sua influência direta, os autores reforçavam o laço entre Sveinn e Knútr, pai e filho, respectivamente. Porém, ao observar as fontes de origem ou sob influência inglesa, ocorreram tentativas de associar Knútr aos reis anglo-saxões anteriores, como Edgar e Æthelred, para reforçar uma vinculação com a dinastia anglo-saxã anterior em vez de uma relação direta com a Dinamarca (TOWNEND, 2011: 212-215).

Em suma, Townend afirmou que Knútr tentava promover diferentes versões conforme o público-alvo da composição (2011: 210). Trata-se, nas palavras deste autor, de ―uma cultura de corte emergiu, que usou uma linguagem distintiva e uma forma de instrução distintiva, que gozou e desenhou sobre um corpus de trabalhos poéticos distinto, e que projetou e explorou uma visão distinta do passado recente‖ (2011: 215).

Creio que esta reflexão é válida, em primeiro lugar, para os casos de Eilífr e Skapti. Ambos viviam em ambientes de transformação e contato entre crenças, disputas entre monarcas, líderes e guerreiros; esta fase atravessou ainda períodos de assentamentos, ataques e invasões, além de rupturas bruscas após líderes serem derrotados por outros ávidos senhores de homens.

Dada as circunstâncias de vida dos skald, a saber, dependerem dos versos para o ganha-pão, era preciso igualmente se adequar ao novo contexto político e religioso da época. Em um período em que cada vez mais líderes são cristãos – dentre eles, Hákon

góði, Haraldr gráfeldr, por algum tempo Hákon Sigurðsson, Óláfr Tryggvason, Knútr inn ríki e Óláfr Haraldsson –, produzir composições tanto cristãs quanto não-cristãs

seria a garantia de obter as graças de um novo senhor, se necessário, ou do uso ponderado do poema conforme o quórum presente em uma assembleia.

Noutro plano, os depoimentos destes skald são úteis para arrefecer a tradição literária posterior, que enxergava esses monarcas e grandes homens em preto-e-branco, ao menos na perspectiva religiosa. Ao considerar a audiência – um dos fatores preponderantes na cultura de corte escandinava (ANDERSSON, 2008: 1-20) –, dispor de composições de conteúdo cristão significa que havia um público nórdico interessado e aberto a este tipo de mensagem.

Como homens que dependiam das graças de um doador de anéis (IA bēahgifa, AS bôggebo), o skald era um recebedor (ou portador) de anéis (AS bôgwini) em uma

relação pautada em certa ética: para manter os seus seguidores leais, o líder deveria distribuir presentes a partir dos tributos e espólios de guerra (GREEN, 1998: 67-68)60.

Nestes termos, as composições de Eilífr e Skapti dão indícios de contatos primevos de versejadores inclinados a agradar com o dom da poesia e o cristianismo. Como homens da corte preocupados com a audiência e o favor de ricos e poderosos, não seria prudente adotar metáforas encapsuladas ou aproximações com uma crença que indisporia seus ouvintes-provedores de status e riquezas.

Tal leitura corrobora com as pesquisas de Sæbjørg Walaker Nordeide sobre a

Era Viking como período de transformação religiosa na Escandinávia, conquanto as

relações com outras crenças tenham começado muito antes do que era normalmente aceito pela academia (2011).

Trabalhos deste tom, como defendidos por Benjamin Hudson (2005: 3-17) e, em certa medida, de Anders Winroth (2012), dão conta dos contatos prévios, muitas vezes anônimos, empreendidos por mercadores, missionários independentes e contatos culturais de natureza diversa. Não seria forçoso admitir que o cristianismo era reconhecido e considerado na esfera política nórdica ao menos a partir da última metade do século X, antes do estabelecimento formal e ―institucional‖ da Igreja (BAGGE, 2014).

Por fim, a parcimônia dos depoimentos ressaltados dificulta uma classificação estrita nos termos de Baer. Não é possível perceber uma aculturação, mas uma espécie de adesão ou hibridismo (estes últimos na perspectiva de Pluskowski e Patrick) tendendo ao sincretismo, talvez não por parte dos poetas, mas da audiência que recebia suas composições.

Da aculturação, não é perceptível uma transformação da língua, apenas parcialmente das leis (caso islandês), alimentar (manutenção da ingestão de carne equina), bebida, roupas, arquitetura e arte. Não se nota uma mudança cultural a partir de uma incorporação imperial que promove uma fusão de modos de vida; ademais, as condições para o uso da violência simbólica e física ainda não eram plenas. De fato,

60 A necessidade contínua de riquezas proveniente dos butins justifica o aspecto endêmico da guerra na Europa Setentrional medieval. Além disso, a fidelidade dos homens era obtida através de presentes valiosos, como aneis e braceles de ouro e prata. Por esta razão, os poetas escandinavos aludiram seus benfeitores como generosos (doadores de anéis) e/ou ricos (potenciais doadores de anéis).

uma ―conversão por assimilação‖, a partir destes indícios, ainda não é provável (BAER, 2014: 26-28).

Neste ponto, considerando a experiência manx, optei por leitura

transculturalista. Como informou Ortiz,

o vocábulo transculturação expressa melhor o processo de transição de uma cultura para outra, porque este processo não consiste somente em adquirir uma cultura diferente, o que, a rigor, significa o vocábulo anglo-saxão

acculturation; porém, o processo implica também, necessariamente, na perda,

no desenraizamento de uma cultura anterior, o que se poderia chamar de uma desculturação parcial. Além do disso, significa a criação consequente de novos fenômenos culturais, que se poderiam denominar neo-culturação (1983: 90)61.

Não se observa também uma ―metanóia completa‖ ou transformação, mas um uso instrumental e necessário de elementos religiosos que ainda não são dominantes, mas já relevantes, em determinada comunidade, grupo ou sociedade. Percebe-se uma experiência diferenciada, nos termos de Rambo, e um compromisso negociado, conforme Berend. Outrossim, como afirmou Baer,

o fato de muitos desses trazerem a fé a outros que apenas recentemente cristianizaram-se ou islamizaram-se não foi uma garantia de transformação das pessoas que foram convertidas. Os conversos a outra religião não podem ou nem sempre querem rejeitar ou se afastar completamente de crenças e práticas anteriores, mas, por sua vez, continuam a engajar-se em algumas delas privadamente apesar da pública transformação religiosa (2014: 29)62.

O caso islandês, mais documentado que a situação de Hlaðir, reforça essas condições, vide a manutenção de certas práticas públicas e privadas. Mas tudo indica que a influência cristã na Islândia era um pouco maior, ao menos por parte do poeta, a partir da helmingar composta, um sinal de que o avanço do cristianismo na Europa Setentrional era irregular em termos geográficos, coletivos e individuais.

61

―el vocablo transculturación expresa mejor las diferentes fases del proceso transitivo de una cultura a

otra, porque éste no consiste solamente en adquirir una distinta cultura, que es lo que en rigor indica la voz angloamericana acculturation, sino que el proceso implica también necesariamente la pérdide o desarraigo de una cultura precedente, lo que pudiera decirse una parcial desculturación, y, además, significa la consiguiente creación de nuevos fenómenos culturales que pudieran denominarse de neoculturación‖.

62 ―The fact that many of those bringing the faith to others had themselves only recently been

Christianized or Islamized was no guarantee of transformation of the people they were converting. Converts to another religion cannot or do not always wish to completely reject or break away from former beliefs and practices but instead continue to engage in some of them privately and despite publicly changing religion. There may be an adaptation or modification of the former and new ways of life, perhaps encouraged by the converter or mediator as a temporary means of ensuring religious transformation‖.

Seja como for, a fronteira entre os princípios religiosos ainda era tênue, as novas formas e rituais de adoração foram complementares, não substitutivas: o avanço do cristianismo era um trabalho instável em progresso com fronteiras indeterminadas (BAER, 2014: 29).

1.4.2. Hallfreðr Óttarson vandræðaskáld (Hallfreðr Óttarson, o poeta problemático,