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Novas perspectivas: pela transdisciplinaridade da runologia

Anders Andrén e Jörn Stæker, ao analisarem certas estelas rúnicas e o contexto social escandinavo da época, foram bastante inovadores ao reinterpretar certas composições pretensamente mitológicas como questões do cotidiano (ANDRÉN, 2000: 9-10; STÆKER: 363-368).

O principal trunfo do Stæker, porém, foi ―reler textos encarnados‖, i.e., considerar os textos em relação às imagens, como no caso da runestone U 29 (cf. imagens 28, 29 e 30). O imperativo 5A[Q]Qü (―Rað þu!‖ ou ―leia/resolva/interprete!‖) no início da sentença parece um tanto misteriosa ou até mesmo desconexa se analisada somente em texto, i.e., sem levar em consideração o monumento (ANDRÉN, 2000: 11).

Para mim, isso significa que não podemos ler a inscrição como um texto linear, mas interpretá-la em sua totalidade. Consequentemente, nós devemos levar em consideração que o texto é escrito no corpo de duas serpentes e, desta maneira, que o texto é entrelaçado em si próprio pelo entrançado dos dois corpos, suas pernas e caudas (ANDRÉN, 2000: 10)147.

Nas imagens 28, 29 e 30 constam os nomes e as palavras-chave na inscrição, assim como em todas as divisões de palavras. Uma tradução possível seria, seguindo a numeração ao lado da reconstrução na parte inferior:

[olho da serpente da esquerda, cinza] Leia/Resolva/Interprete! [Serpente da esquerda, cinza] Geirmund [1] tomou Geirlaug em sua virgindade. Então eles tiveram um filho [3] antes que ele [i.e., Geirmundr] afogasse. E então o filho morreu. Então ela tomou Guðríkr [4; como marido]. Ele [...] isso. Então eles tiveram crianças [5]. E uma garota viveu; ela foi chamada de [serpente da direita, branca] Inga [6]. Ragnfastr [7] de Snotastaðir a tomou [como esposa]. A seguir, ele morreu e, pouco após, o filho [8]. E a mãe [9; i.e., Inga] herdou de seu filho. Então ela teve Eiríkr [10]. Então ela morreu. Então Geirlaug [11] herdou de Inga [12], sua filha. [Abaixo da serpente da esquerda] O skald Torbjörn [13] gravou as runas (U 29)148.

Mais uma vez, este caso é interessante pela opção de inserir a palavra ―Rað þu‖ no olho do animal, conferindo ao monumento uma espécie de desafio aos transeuntes, assim como a ―chave‖ para compreensão no instrumento de visão da serpente: era

147

―To me, this means tha we should not just read the inscription as a linear text, but interpret it in its

totality. Consequently, we should take into consideration that the text is written on the body of two snakes, and that the text is intertwined in itself, by the plaiting of the two bodies, and their legs and tails‖.

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―Rað þu! GæiRmundr [f]ikk GæiRlaug møydomi i. Þa fingu þau sun, aðan hann drunknaði. En sunn

do siðan. Þa fikk ho[n] [Gu]ðrik. Ha[nn] ... þennsa. Þa fingu þau barn. En maR æin lifði; hon het [In]ga. Ha[na] fikk Ragnfastr i Snutastaðum. Þa varð hann dauðr ok sunn siðan. En moðiR kvam at sunaR arfi. Þa fikk hon Æirik. Þar varð hon dauð. Þar kvam GæiRlaug at arfi Ingu, dottur sinnaR. Þorbiorn Skald risti runaR‖.

preciso entender a composição de maneira integral, ou a mensagem não faria sentido. Deste modo, é difícil interpretar a estela rúnica U 29 sem levar em conta seu caráter ornamental, algo que foi descartado pela maior parte da runologia até poucos anos atrás. Anders Andrén justificou a dificuldade interpretativa contemporânea pelo estudo parcial realizado por cada disciplina científica. Um filólogo dificilmente iria além do texto puro, enquanto um historiador da arte tradicional reduziria a serpente ao caráter decorativo, sem qualquer significado extra. Historiadores e arqueólogos, por sua vez, provavelmente dedicariam seu tempo e estudo aos ornamentos e elementos figurativos (2000: 10).

No entanto, como no passado, parte-se do elemento textual para entender os elementos figurativos e ornamentais. A ideia de conferir significado ao texto conforme a imagem é interessante e deve certamente ser empreendida. Os conceitos forjados por Andrén, ―contexto discursivo integrado‖ e ―associação‖, são mais bem explicados, ainda que de maneira implícita, em outra obra:

a materialidade do texto tem também sido considerada em um caminho mais fundamental por alguns arqueólogos [...] como documentos, ou expressões culturais o caráter de artefato do texto é debatido [...] os textos são ‗melhores‘ que os artefatos ao expressar certos fenômenos, ou vice-versa? (ANDRÉN, 1998: 148)149.

Andrén prosseguiu com seu argumento ao explicar as vantangens e desvantagens entre a cultura material e o texto por seus referenciais diferentes e estrutura diversa. O texto, nestes termos, é linear, bidimensional e apresenta um número claro de signos definidos em posições definidas. Por representar o falado, é preciso preservar a linearidade. O texto seria, em suma, uma representação da língua falada, embora a representação da ―realidade‖ a partir da linguagem seja menos direta (1998: 148-149).

Artefatos em geral, por outro lado, têm a materialidade como ponto forte, com forma e posição no espaço. São objetos tridimensionais, não lineares e compostos de diferentes signos sem posições fixas, uma vez que não foram criados em uma relação direta com o falado. A decifração da cultura material raramente ocorre no mesmo nível semântico dos textos. Esses indícios, grosso modo, dispõem simultaneamente de funções práticas e representacionais. Contudo, alguma informação adicional é

149 ―The materiality of text has also been considered in a more fundamental way by some archaeologists

[...] As documents, or as cultural expressions, the character of artifact and text is debated [...] are texts ‗better‘ than artifacts at expressing certain phenomena, or vice versa?‖

frequentemente necessária para atribuir sentido à cultura material (ANDRÉN, 1998: 149).

Para suprimir essa dificuldade, Andrén propôs o contexto discursivo, ou seja, ―nem a cultura material ou as fontes escritas existiram independentemente uma da outra ou de outras formas da expressão humana. Elas tomaram parte de situações complexas que também incluem, por exemplo, imagens, gestos e performances orais‖ (ANDRÉN, 1998: 149-150)150.

O conceito de associação (ou correlação), por sua vez, significa conectar tempo, local, forma e conteúdo de artefatos e textos que aparentemente não tem relação entre si (ANDRÉN, 1998: 167). A breve análise da estela rúnica U 29 a partir desse viés seria um bom exemplo de entrelaçamento entre escrita e imagem, capaz de considerar elementos até então evocados como puramente estéticos como parte integrante e fundamental da compreensão do monumento. Estes elementos estariam envolvidos ainda em outros mecanismos, como rituais, sepultamento, morte etc. Tal perspectiva não seria nem mesmo considerada por uma geração anterior de runólogos.

Antes de representar um aporte teórico-metodológico explícito, a proposta de Anders Andrén sugere muito mais uma abordagem ou forma de aproximação das estelas rúnicas e lajes de pedra; de fato, a ideia defendida reforça a especificidade de cada composição como parte do esforço de criatividade do artista, além de mecanismos de interação texto-imagens ou de interpretação imagética diferentes do tradicionalmente assumido pelos acadêmicos contemporâneos.

Em suma, o pesquisador deve não apenas adotar a postura conservadora, mas pensar ―fora da caixa‖, fugindo de esquemas metodológicos e interpretativos rígidos, como no caso das tipologias e etapas, perspectiva usual entre o final do século XIX até meados do século XX. Tal mudança transparece uma tendência dos estudos mais recentes das presentações em estelas rúnicas e lajes de pedra escandinavas151.

Seja como for, a natureza diversificada e complexa das informações, atestadas ou não, do heroi volsungo em questão ou de congêneres que circularam na Escandinávia

150 ―Neither material culture nor written sources have existed independently of each other or of other

forms of human expression. They have been part of complex situationts that have also comprised, for example, images, gestures, and oral performances‖.

151 Kristina Jennbert, por exemplo, sugeriu que algumas representações de cavalos de oito patas, tradicionalmente assumidas como o cavalo odínico Sleipnir, poderiam ser, na verdade, tentativas de representar um equino em movimento (2011: 152-153).

dos séculos X ao XII depende, desta feita, de um acurado excrutínio. É preciso considerar, para além da sugestão de Andrén, que um dos principais veículos de transmissão dessas estórias era a oralidade, e está circunscrevia a improvisação. Mesmo com a posterior cristalização dessas tradições em textos, permaneciam níveis de oralidades mistas, que admitem, no ato de transmissão, mecanismos de percepção orais, auditivos e visuais (ZUMTHOR, 1993: 15-20).

Assim, nestes complexos mecanismos de transmissões de memórias, informações e tradições, é muito mais provável que tenham persistido tradições diversas e, certamente, não unívocas, como o caso de outras lendas sugere (ZUMTHOR, 1993: 35-46). Desta feita, a intenção aqui circunscrita ao elemento da oralidade também inclui a teoria da figurabilidade de Didi-Huberman, a ―exploração sistemática num espectro total de constrangimentos e liberdades, em suma de possibilidade ou de poderes figurativos‖, capaz de abarcar os excessos, heterodoxias e desvios (1994: 160).

Num âmbito diferente, mas interessante, inovador e infelizmente de uso restrito, Laila Kitzler Åhfeldt empregou o método conhecido como Análise de Estrutura de

Superfície (Surface Structure Analysis) com scanner a laser e a análise estatística para

investigar as runestones atribuídas a Öpir, um pretenso ―mestre das runas‖ de Uppland, na Suécia central.

Esta técnica é cara, pois dependente do acesso direto aos monumentos, de uma equipe diversificada e qualificada, de equipamentos refinados e precisos, sem mencionar do tempo da análise. Porém, os resultados são vantajosos, uma vez que é possível identificar na esfera microscópica e analítica quantos artistas estiveram engajados nesta ou naquela composição. Ao considerar o toque único de cada artista, o software desenvolvido identifica o grau de perfuração usado pelo formão. O caráter individual, médio de cada peça e de cada parte da composição pode ser analisado separadamente. Desta forma, o trabalho de Åhfeldt supre uma lacuna deixada por Thompson, impedido de superar suas próprias hipóteses por limitações tecnológicas.

Åhfeldt pôde descobrir, assim, uma distinção entre runógrafos (redatores de runas) e gravadores de ornamentos. Das onze composições atribuidas a Öpir analisadas neste estudo, é possível que tenham sido empregados quatro runógrafos (um auxiliar e gravador cuidadoso ou R1, um mestre produtivo ou R2, um auxiliar iniciante ou R3, e um quarto auxiliar ou R4) e quatro gravadores de ornamentos (um mestre ou O1, um

gravador de ―máscaras‖ ou O2, um gravador amador ou O3 e um gravador provincial ou O4) (ÅHFELDT, 2001: 151-153).

Uma limitação do método seria a possibilidade da composição dispor de poucos artistas, mas de várias técnicas de gravação (maior ou menor força, uso de formões diferentes ou de martelos diferentes, etc.). Seja como for, a quantidade de possíveis envolvidos sugere ao menos quatro especialistas para produzir apenas onze peças, em um universo de milhares de monumentos (ÅHFELDT, 2001: 153-155).

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A Análise de Estrutura de Superfície infelizmente ainda não foi aplicada para todas as estelas rúnicas pela grande quantidade de artefatos, por questões técnicas e principalmente financeiras; No entanto, a nova abordagem manifesta um importante mecanismo para tentar identificar ao menos quantos homens estavam envolvidos no processo de feitura das runestones e, acima de tudo, a quem serviam. É possível presumir de maneira mais ou menos geral que o artista não agia sozinho ao esculpir o monumento, diferentemente da teoria vigente desde meados da década de 70.

Ressalto que nem todos os monumentos foram produzidos por encomenda do mesmo patrono. Tudo leva a crer que um aristocrata ou rico proprietário tinha conhecimento da cruz ou estela erguida por outro noutro ponto da região. Forjou-se, assim, uma espécie de disputa que reforçava não apenas a memória parental, mas moldava a paisagem local em uma espécie de ―mapa político‖, com referências diversas e que, em certa medida, poderiam disputar entre si tradições diversas, conforme o contexto de cada monumento.

Além disso, esta dinâmica que envolve os agentes e seu impacto sócio-cultural parece fundamental para compreender a relevância monumental de estelas rúnicas e lajes de pedra, tal como seu impacto na comunidade a qual estavam inseridas; estes grupos certamente foram formados por grupos menores, homens e mulheres com convicções religiosas, tradições e formas de ver o mundo diferenciadas entre si. Entrementes, como supracitado, os monumentos em questão podem ter servido simultaneamente para evocar estórias, lendas e mitos divergentes face a tentativas de cristalização figurativas e memoriais com dimensões políticas, religiosas e espaciais.

É preciso tratar estes monumentos, portanto, como memórias encarnadas152, que materializavam ideias e intenções diferentes para grupos diferentes, como a aristocracia que encomendava os monumentos, a comunidade laica que transitava, os homens da Igreja, os adeptos das antigas crenças, nativos e recém-chegados, i.e., um público diverso que se relacionava com os monumentos de maneira distinta. Ao retomar aquele contexto, concomitante com o avanço do Cristianismo na Escandinávia e as propostas de centralização política em diversas regiões do Atlântico Norte, é preciso admitir que os governantes precisavam dispor de mecanismos capazes de atingir o maior público possível (BIRRO, 2013: 51-67).

O sincretismo presente na Ilha de Man, ocupada e sob influência irlandesa, anglo-saxônica e escandinava, certamente requeria uma ―linguagem política‖ por parte dos governantes e líderes capaz de atender diferentes públicos e anseios. O mesmo poderia ser dito da Suécia, em relação ao avanço da cristianização e da produção massiva de estelas rúnicas no mesmo período (LAGER, 2003: 497-508).

Ao pensar nas regiões vizinhas, em condições similares, nota-se que aproximações transdisciplinares, demonstraram ainda que certas high crosses153 irlandesas incluem elementos formais e iconográficos fundamentais para a construção de identidades coletivas das comunidades circundantes (WILLIAMS, 2000, passim). É provável que a mesma premissa tenha valido para a Ilha de Man, como será tratado oportunamente154.

152 Apesar de útil enquanto reflexão e ponto de partida metodológico, o termo ―textos encarnados‖ de Andrén (2000: 7-32), presente no artigo re-reading embodied texts - an interpretation of rune-stones, colocou o elemento textual em evidência no processo de análise das runestones, embora, como constatou Thompson (1975: 94), os elementos ornamentais e figurativos fossem gravados antes das inscrições rúnicas.

153 O termo high crosses (lit. ―cruzes altas‖) é empregado para monumentos esculpidos e ornamentados em formato cruciforme no contexto das Ilhas Britânicas durante a Primeira Idade Média. Usualmente a trave horizontal é curta, enquanto a trave vertical é comprida. Todavia, cruzes esculpidas nos mesmos termos, mas dentro de lajes de pedra também são encontradas. Nestes casos, a bibliografia diverge em chamá-las de high cross ou cross slab, termo de minha preferência que optei por traduzir como laje de pedra. Os principais motivos ornamentais utilizados pelos artistas são animais, antropomórficos, vegetais e abstratos. Esses monumentos podem alcancar 6,5m (Monasterboice, Co. Louth), mas em média alcançam entre 3 a 5m (EDWARDS, 2006: 915-919). Para mais informações, cf. KARKOV; RYAN; FARRELL, 1997.

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