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3. Leonardo Boff e Pierre Weil O Encontro de Dois Autores Neo-Junguianos

3.1. Arquétipos da natureza humana e funções da psique

Encontramos em L. Boff o desenvolvimento do conceito junguiano de arquétipo quando destaca as figuras arquetípicas intimamente ligadas à ecologia humana no que respeita à sua natureza simbólica e mitológica, que tem ainda uma profunda ligação com a espiritualidade. Considerando a categoria Archetypus, cuja transliteração para a língua grega é Arkhétypou, Jung, como primeiros modelos ou estruturas, apresenta ainda Arché = Princípio, que nos leva a fazer uma reflexão sobre a arqueologia do corpo-alma, arqueologia esta que desvenda o padrão primordial da natureza humana, a origem que a faz existir, vincular e plasmar na realidade cognoscível. Sabe-se através da Psicologia Analítica que estas formas e padrões arquetípicos da psique precisam de ser nutridos e cultivados com energia vital para que os mesmos possam ser integrados na consciência. Entretanto, pode-se afirmar que este processo depende de outra estrutura, a chamada “bússola da psique”, descritas por C. G. Jung constituída pelas quatro funções psíquicas f.p. estão sempre a actuar para que a consciência experiencie de maneira plena a manifestação “extrínseca” e “intrínseca” de seu Ser.

No seu discurso crítico, P. Weil aponta estas f.p. como representantes de um processo de subdivisões da psique, correspondente à sua fragmentação, que, segundo ele, é mais um exemplo da fantasia da separatividade, em que, em sentido oposto, teríamos a visão do Ser na sua totalidade, referindo-se ao holos, existência infinita. Mas como compreender a vasta complexidade da consciência humana nos seus diversos estados da alma, se não classificarmos e criarmos correspondências para os seus distintos entendimentos?

As f.p. remodelam-percepcionam e conduzem esses arquétipos repletos de muitíssima carga instintiva, emocional, que, juntamente com símbolos inconscientes, podem ganhar um forte poder de transformação na vida da pessoa humana. É nos bastidores, por detrás das cortinas do teatro da

vida, que o grande cenário cénico é criado para ser lançado para o outro lado, é nesta dança de duas realidades que nos aproximamos de uma concepção platónica, pois ‘o mundo das ideias’, e aquilo que está acima desta esfera, isto é, dos elementos transpessoais da consciência da natureza humana, cujo conteúdo é etérico, através da essência subtil, é a quintessência que modela os atributos que serão plasmados na realidade deste mundo cognoscível.

O que distingue, então, figuras arquetípicas “internas”, por exemplo, quando se trata da árvore, da flor ou de um sábio, das suas próprias presenças visíveis no mundo “exterior”? No inconsciente, no seu estado de ecologia interna, este arquétipo distingue-se pela sua capacidade de integração da personalidade com a natureza, pelo poder de transformação que exerce na natureza humana e, sobretudo, pela sua importância de unificação ao criar uma ponte entre estes dois mundos. “As coisas todas estão em nós como imagens, símbolos e valores. O sol, a água, o caminho, as plantas e os animais vivem em nós como figuras carregadas de emoção e como arquétipos.”56

O padrão arquetípico que é preenchido por energia psíquica estabelece uma interacção anímica com a natureza humana e, por esta razão, a pessoa poderá personificar em si mesma a experiência de qualquer elemento, reino ou estado da natureza e com isso ter uma manifestação no seu “interior” ainda maior do que o fenómeno natural propriamente dito na sua forma “exterior”.

Na tradição xamânica da Sibéria e da Americana do Norte, a figura totémica do animal para os antigos ritos de passagem tinha um poder de acção maior do que o próprio animal em si, dado que o xamã interage com estas duas realidades e estabelece um equilíbrio entre o simbólico e o diabólico.

Poderão as funções psíquicas ser condutoras dos elementos essenciais, dos símbolos e figuras do imaginário para uma melhor constituição arquetípica, mitológica e, por fim, chegar a colaborar na prática vivencial da história da pessoa humana?

L. Boff, ao referir-se especificamente a estas questões, destaca que “a ecologia da mente procura recuperar o núcleo valorativo-emocional do ser humano em face da natureza”. Podemos observar a importância que este autor dá à dimensão totalizadora da natureza. Contudo, ainda mais importante do que esta unidade integral é confirmar aqui o que de facto promove a integração da natureza humana quando se relaciona com a ecologia da mente:

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“Ela procura reforçar as energias psíquicas positivas do ser humano para poder enfrentar com sucesso o peso da existência e as contradições da nossa cultura dualista, machista e consumista. Ela favorece o desenvolvimento da dimensão mágica e xamânica de nossa psique. O xamã que habita em cada um de nós entra em sintonia não apenas com as forças da razão, mas com as forças do universo que se fazem presentes em nós mediante os nossos impulsos, visões, intuições, sonhos e pela criatividade.”57

Este é o início para resolver a problematização levantada pela última questão supra colocada. Já percebemos claramente que as funções psíquicas estão ininterruptamente relacionadas com a dimensão arquetípica no inconsciente humano, mas importa notar que, actualmente, e do ponto de vista mundano e relacional, estas experiências por norma não ocorrem na vida das pessoas.

Talvez seja porque na modernidade não haja condições ‘iniciáticas’ que estabeleçam um canal de acesso entre estes dois mundos, da natureza humana à supra-humana, do nível pessoal ao transpessoal, parece que estes caminhos virtuosos foram perdidos, escondidos ou esquecidos na mente, percursos estes que no passado desencadeavam valores primordiais e eram representados e vividos profundamente de forma simbólica e real, absorvendo transversalmente a natureza da mente humana em contacto com o ambiente e a sociedade.

Mas como construir nas estradas do hoje um caminho cuja ética contemple a priori a natureza dos elementos, sem nenhuma pretensão humana? L. Boff provalmente responderia que está na ‘mística e na espiritualidade’58 a possibilidade de cultivar um espaço interior onde o poder não tem domínio nem acção, razão ou intenção, assim seria na mais profunda capacidade de amar que o coração promoveria a expansão para um estado de consciência ampliada.

Encontramos em P. Weil este problema através de um movimento de evolução e de desenvolvimento humano que passa pela metamorfose. O autor retrata uma parábola do humano que está retido numa crisálida em transformação com a presença de um ciclo vicioso de apego, medo e culpa, mas, num determinado momento, ocorre uma ressonância, a eminência de um salto, que se dá através de uma crise existencial ‘espontânea ou induzida’ que faz com que a pessoa passe por um profundo autoconhecimento que irá favorecer a autotranscendência, rompendo o paradigma vigente e criando um novo espaço na sua vida e consciência; não se trata de entrar somente no campo da razão ou da emoção, mas sim da junção de ambas, de uma integração, para o que poderá refletir também no equilíbrio das funções psíquicas?

Será para este autor na união entre o hemisfério esquerdo e o hemisfério direito, e neste despertar do arquétipo da borboleta, que estará a possibilidade do nascimento dos mutantes,

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Ibidem, p. 39.

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conceito introduzido por P. Weil e muito bem explicitado quando se refere às pessoas que estão despertas e prontas a enfrentar uma nova realidade vigente, isto é, um ser humano sensível, consciente, não separado da natureza, mas sim integralmente ligado a tudo o que existe no seu interior-exterior, do visível ao invisível no pleno holocontinuum.