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Capítulo II – A Continuidade do Caminho: A Natureza dos Elementos Transpessoais

5. Mitologia na Crise da Pessoa Humana

5.4. Ecologia do Ser: Para uma Transformação Mitológica

O ser humano encontra-se actualmente sem um real propósito de existência, sem sentido para viver e sem um modelo saudável para seguir, como já vimos no capítulo anterior. É evidente que o sistema está em profunda crise ecológica, diante de uma sociedade planetária corrompida, que se resume ao mercantilismo desenfreado através do controlo das médias e demais estruturas insustentáveis. Se a problemática desta questão está no ser humano e se a sua conduta é a causa-efeito do obscurantismo totalizado, logo a solução deve estar também na pessoa, “através dela e para além dela”, em que o Transpessoal se desenrolará num processo de mudança, todavia, para que esta transformação seja efectiva, como podemos ver na roda da transformação (cf. Anexo II) e da paz (cf. Anexo III) descrita por P. Weil, é evidente que é preciso que ocorra a cura do arquétipo deste ser humano ferido, “alienado”, iludido no maya, conceito este de origem sânscrita, que designa ilusão e que pode ser analisado como a fragmentação da realidade no colapso que se avizinha.

Actualmente, podemos pensar que a mitologia colectiva e a história da ecologia pessoal irão trazer uma luz para a barbárie que aterroriza a comunidade planetária. A iniciação, o mito e o ritual são actualmente nulos e vagos ou ainda banalizados por diversos sectores da sociedade, na ausência de modelos, tutores e mentores, que teriam a função de mostrar o ícone de um ser humano mais saudável, que não passou somente pelas fases do desenvolvimento, mas também se permitiu caminhar para um nível seguinte, mais evoluído, ainda não alcançado pela actual geração. Trata-se da emergência da experiência Transpessoal? L. Boff, através da figura viva de São Francisco, enuncia: “Em São Francisco o utópico se fez tópico, historizou- se o evento da doçura da confraternização de todas as coisas. Reconcilia-se a arqueologia íntima com a ecologia exterior mediante um mergulho abissal no mistério de Deus.”203

A humanidade em geral é incapaz de conceber e de personificar o arquétipo de um deus, de um herói, ou seja, de despertar um modelo saudável em direcção à supraconsciência; todavia,

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urge o nascimento desse novo arquétipo para o Ser extrair deuses e deusas que há no “interior” de cada pessoa, em contacto com Eros? Sendo este o único arquétipo mitológico que não estabelece uma representação com características na constituição da personalidade, possivelmente por esta ser demasiado humana e o arquétipo de Eros ser relativamente etérico, é suficiente, no que toca à natureza humana de uma maneira muito subtil, fazê-lo através do Amor? Da percepção extra-sensorial? Da Sincronicidade? Na sua simultaneidade e acontecimentos significativos. Do arquétipo central da personalidade, o Selbst? É preciso realizar ritos de passagem da pessoa, para que se torne transpessoal, em universos de trans- realidades sobrepostas, é preciso quebrar a dualidade, o “dois” para se chegar à unidade, para se encontrar o centro, do “um” encontra-se o “três”, o trans, a unidade-trinária.

Imaginemos um ‘Ser Transpessoal’ que desperta a sua ‘Supraconsciência’204 através do Eros como arquétipo vivo, sem o procurar com “projecções e transferências”, mas, muito mais profundamente, manifestando-o através da expressão do corpo, da alma e do espírito. A pessoa, individualmente, dentro da sua auto-transformação ou na integração de um casal, que através da sexualidade-espiritualidade alcança um estado de Bem Amada Presença.

Considerando esta pessoa, ou esses dois Seres, quando aprofundarem o mesmo estado de um padrão arquetípico, liberá-lo-ão para que as suas personalidades possam fluir na vibração desse arquétipo e ir através dele, para um processo alquímico de auto-exploração psíquica. Ao manifestar a natureza supra-humana, estariam estes Seres em estado transpessoal próximo de uma androginia psíquica, indo ao encontro do que Jung afirmava a respeito de Anima ünd Animus. Ter-se-ia a integração de complementaridade plena destas categorias no relacionamento de duas pessoas ou num único Ser? O feminino-masculino no Uno ou no múltiplo?

Sendo assim, qual a linguagem do mito que se poderá estabelecer para que desperte a luz diante desta barbárie? De que valores o novo arquétipo da natureza humana precisa para constituir uma personalidade mais madura?

Urge a evolução do Ser, talvez aquilo que se apresenta como necessário hoje para a humanidade na sua crise de existência seja um ser sagrado no resgate da sua espiritualidade, ou seja, indo ao encontro do Selbst. Seria a transdisciplinaridade um fenómeno emergente para o despertar da consciência na natureza humana? Pode a experiência mística promover um estado de expansão que eleve a pessoa a um novo arquétipo para a contemporaneidade?

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Cf. Conceitos utilizados pelo psicólogo Roberto Assagioli. Supraconsciência tem aqui o carácter de “ascender ou descender” conteúdos de vivência transpessoal ao atingir uma manifestação plena.

O humano, após fazer a passagem deste mundo para a concessão de uma nova realidade, entra num processo de iniciação do ser no seu reconhecimento interior, mais do que inicia a acção em direcção a um caminho, de forma a ultrapassar o mundo dual e diabólico, isto é, “exterior”, de um suposto mal relativo. Poderá sair deste processo e criar a sua realidade “trans-bólica”, ou seja, transbordar, isto é, ultrapassar a borda que delimita o espaço de actuação, a construção dos processos mnemónicos da linguagem que destina a energia para a manutenção “dual”, vertendo estas imagens para “fora do cálice”. Entornando-as, é neste momento que ocorre a passagem no seu próprio elemento e que se cria uma nova realidade, é, pois, neste momento que a pessoa tem acesso ao Graal, que o prova, que o experimenta e que o retém, como o símbolo do cálice e do feminino. Ocorre uma metamorfose do ritual mitológico e surge o nascimento de um novo arquétipo, até então não experienciado pela natureza humana, que agora deixa de ser “diabólica” para ser “transnatural”, “transpessoal”! O equilíbrio entre-mundos atemporais poderá trazer uma maior equidade bio-psico-sócio- cultural para as diversas comunidades bióticas no planeta?

A Pessoa, após a “grande iniciação”, ao dar o salto, a mais alta passagem, deixará de viver somente na sua própria dimensão da alma, Anima, para integrar uma outra natureza, a do espírito, Animus. A psique, então, não precisará de ir ao encontro do arquétipo de Eros, pois já estarão ambos integrados, fundidos no mesmo Ser, a androginia simbiótica: masculino e feminino, alma e espírito, deus e deusa, sol e lua, terra e céu… Unida pelo etérico – a quintessência –, através da linguagem do inconsciente ontogenético, a pessoa humana manifestada na categoria de pontifex205 estabelecerá a rede de comunicação de “comunhão interna”, o conhecimento transdisciplinar, uma vez que, para ir “além” do diálogo inter- religioso, é preciso fazer-se luz no trans-religioso, ultrapassar o discurso dogmático das religiões e chegar ao transcultural. A personore, a voz que sai da máscara, cria um poder no pensamento de acção e interage com os elementos dando-lhes vida e capacidade para serem agentes de mudança. A categoria de persona ultrapassa aqui o conceito junguiano e a própria etimologia da palavra que nos remete para o teatro grego. Falamos aqui da interferência da persona cósmica com as demais personas na constituição da Pessoa Humana.

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Do latim, Pontifex Maximus, o sumo-sacerdote, descrito aqui como um arquétipo de transformação e integração da personalidade humana. Estado de consciência alcançável a todos aqueles que se permitirem atingir a libertação “deste mundo para o grande mundo”.