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Capítulo II – A Continuidade do Caminho: A Natureza dos Elementos Transpessoais

5. Mitologia na Crise da Pessoa Humana

5.3. Uma Possível Integração Arquetípica

O filósofo L. Boff, ao descrever a co-relação entre as diversas categorias que envolvem o rito- mística e mito-arquétipo, aproxima-se muito do que afirma o seu contemporâneo, o autor junguiano J. Campbell, que ilustra a condição humana na síntese do mito:

“Existe uma lenda pigméia do menino que encontra na floresta um pássaro de belo canto e leva-o para casa. Ele pede ao pai que traga alimento para o pássaro, mas este lhe diz que não pretende alimentar um simples pássaro, e mata-o. A lenda diz que o homem matou o pássaro, com o pássaro matou a música e com a música matou-se a si mesmo. Caiu morto, completamente morto e morto permaneceu para sempre.”198

A primeira impressão que temos ao ler esta citação do mito no contexto da presente dissertação é a de que a condição humana já não tem mais esperança. Outra análise que pode ser feita é a de que o velho não mudará e de que é preciso fazer a passagem daquilo que já não serve mais. Para tal, o menino teria de cuidar de si mesmo e do seu pássaro (da sua inspiração e da sua arte) e conseguir o alimento, que a figura paterna negou.

Muitas vezes, o desenvolvimento “adulto” nega a pureza e a espontaneidade da infância, o que revela que a castração está muito presente na sociedade. Agora, o menino faz o caminho do retorno – depois de ter sido negado pelo pai, volta para a floresta, para o elemento do arquetípico da terra, reencontra-se com a mãe, que é a nutridora, é nesta fase que ele terá a fonte de alimento para o pássaro, para que as “suas assas cresçam e possam voar”, o elemento ar, a f.p. o pensamento. Mas o caminho da floresta é longo, perigoso, frio, sombrio, a floresta e a natureza são “perigosa[s] é má[s]”. É esta a história que sempre foi contada às crianças, é este o arquétipo que está no inconsciente colectivo e passa de geração em geração ao potencializar os medos e as culpas.

E o menino, ao seguir o seu rumo, porque não tem mais o modelo para o destino, terá de contar com a sua sabedoria “interior”, agora a única coisa que lhe resta é o seu pássaro, que é o ícone que lhe pulsa o coração, é a morada do elemento água, a f.p. sentimento, é o vector que proporciona para si próprio o brilho no sorriso dos olhos. Assim, aponta o olhar para o horizonte na busca do raio de sol que abre o caminho do amanhã. É na floresta, na árvore, no símbolo do elemento terra, onde desperta a f.p. sensação e onde o menino cresce na companhia do pássaro, da natureza e do símbolo da beleza com a música. Razão pela qual o masculino ferido é curado – é lá, no arquétipo da floresta, com o símbolo da árvore da vida,

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nas dez Sephiroth199, que o pássaro vive e renasce no elemento fogo, a f.p. intuição, que é a androginia psíquica. Aquele que canta é a beleza; na cabala judaica a beleza é representada pelo sexto ramo, tiphareth, equivalente ao conhecimento védico ao sexto chacra anahata ou à estrela de David, ao signo de Salomão com os dois pólos, aos arquétipos do masculino trigrama acima e do feminino em união trigrama abaixo, (como dois triângulos que se sobrepõem unidos formando a estrela), água e fogo, sol e lua fundem-se num mesmo símbolo. A partir do Mito deste menino, pode-se pensar no renascimento de um novo símbolo para a humanidade. O menino está muito próximo do arquétipo de Hórus, que nasce do amor de Isís e Osíris, dois irmãos que concebem o deus pássaro-falcão, um pleno equilíbrio do sol e da lua, para a libertação das trevas do mal da ignorância. P. Weil, na sua tese de doutoramento, supra citada, transfigura toda a história da humanidade num cruzamento dos significados mitémicos das diversas sociedades no simbolismo étnico-cultural, sendo a sua principal base teórica a de C. G. Jung, que, num dos seus títulos200, fala da importância do ritual na identificação com um deus ou herói para que ocorra a identificação do menino para a sua transformação. Nesta dissertação, escolhemos a categoria do mentor, que é o conselheiro da acção, que, por conduta prática à nova ética, que em termos junguianos está relacionado com a figura do Sábio, é aquele que transmuta os elementos na sua alquimia humana profunda, neste caso, do próprio ambiente nas relações intra e interpessoais, é aquele que, por exemplo, conduz os outros à passagem, ao celebrar ritos mitológicos201.

O mentor está distante do sacerdote, pois este não passou pela experiência prática, está mais próximo do arquétipo do xamã, é o ser que conhece profundamente a natureza de todas as coisas, não só por estar próximo dela, mas por estar na condição de pertencer à “entidade” Gaia, em si mesma, ali representada, como um canal, portal de acesso ao cosmos, que o xamã, ao invocar elementos e arquétipos de animais sagrados, de poder e cura, que personifica conteúdos vivenciais de fortes emoções, conduz a si mesmo e irradia os outros a um (EAC)

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Na Cabala judaic, refere-se às dez emanações de Ain Soph. 200

C. G. Jung, (2007, p.132). 201

Ibidem, p.25. “A mitologia lhes ensina o que está por trás da literatura e das artes, ensina sobre a sua própria vida. É um assunto vasto, excitante, um alimento vital. A mitologia tem muito a ver com os estágios da vida, as cerimônias de iniciação, quando você passa da infância para as responsabilidades do adulto, da condição de solteiro para a de casado. Todos esses rituais são ritos mitológicos. Todos têm a ver com o novo papel que você passa a desempenhar, com o processo de atirar fora o que é velho para voltar com o novo, assumindo uma função responsável”.

Estado Ampliado de Consciência, de maior lucidez e de compreensão na finalidade da integração de todos os sistemas vivos.

Ao aproveitar esta conduta natural, utilizar-se-á a presença de elementos vivos do imaginário ao trazer uma nova ética para o planeta, que se poderiam personificar como modelos genuínos para a sociedade, valores humanos expressos nas virtudes destes heróis. Tal como na mitologia helénica, hindu ou egípcia, esta triangulação inter-civilizacional mostra- nos que os respectivos deuses têm uma profunda proximidade transcultural na manifestação da personalidade humana.

Do mesmo modo em que é criada a rede neural no inconsciente colectivo no que ao seu processo imaginário nos seus diversos sistemas diz respeito, o ser humano amplia a psique para além do pensamento, trazendo para a realidade uma linguagem supraconsciente no processo da ecologia interna – a evolução da educação humana constitui os seus talentos através do processo da linguagem transpessoal.

Com o mesmo propósito, C. G Jung anteriormente definiu o conceito de imaginação activa, trata-se de imagens desenvolvidas pelo inconsciente, obtendo uma visão mais ampla da realidade: expansão da consciência a estimular a ordem mental superior. Actualmente, que imagem ou símbolo servirá de totem para a aldeia global actual? A comunidade planetária poderá resgatar um elemento reorganizador dos seus sistemas vitais, uma mitologia que, na prática dos nossos dias, esteja presente em todas as culturas, sendo aplicada em histórias diferentes para que possa ecoar no inconsciente humano e despertar arquétipos que transformem a mentalidade humana.

Para que o ser humano possa integrar a sua estrutura mais profunda terá de trazer para a comunidade planetária este totem, “animais arquetípicos”, “deuses”, “mitos e heróis”, elementos e símbolos para se tornar alguém menos mundano e profano e se aproximar mais do sagrado… do ethos? Expressão das virtudes e princípios éticos que tragam inspiração e possam impulsionar o humano para uma nova maneira de viver e habitar a terra estabelecendo relações “intra e interpessoais”. Encontramos, neste sentido, o que defende o pensador Leonardo Boff: “Tais pessoas se transformam em símbolos poderosos, quer dizer, mitos, capazes de cristalizar energias colectivas, falar ao profundo das pessoas e mobilizar multidões.”202

Qual será o destino do homo-sapiens-sapiens? Perante a encruzilhada, que caminho a escolher? O homo-technicus ou homo-elementum? Estará nas estradas do hoje a escolha

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estratégica dos povos? Se parcelas diferenciadas da humanidade tomarem posições contrárias, poderá a humanidade comungar propósitos tão distintos? Existirão directrizes adaptadas para elaborar estas correntes ou a transformação seria o prenúncio de uma catástrofe? Apresentar- se-ão técnicas e novas tecnologias que respeitem e estejam fundamentalmente integradas na vitalidade dos elementos da natureza?