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Arquitetura do gesto – Fundação Iberê Camargo,Porto Alegre, Álvaro Siza

Um bloco incipiente do qual emergem braços cataclísmicos estendendo-se pelo tórax de uma forma grávida

KENNETH FRAMPTON

Em 1998 a Fundação Iberê Camargo tendo à frente o apoio financeiro do grupo Gerdau, inicia o processo de seleção entre dez arquitetos estrangeiros, para apresentar um projeto para a nova sede que abrigaria as mais de 4 mil obras do pintor Iberê Camargo (1914-94). O vencedor do concurso foi o português Álvaro Siza ( Pritzker,1992) com o projeto de um museu vertical, algo próximo do embate entre a montanha e a baía do rio Guaíba.

Em uma escarpa de pouco mais de 8 mil metros quadrados, resultado de um corte na rocha, feito pela antiga pedreira instalada no local, e com apenas um quarto de área plana, o primeiro projeto de Álvaro Siza no Brasil, situa-se numa área pouco adensada da cidade, distante sete quilômetros da área central e margeado por uma grande avenida de trânsito rápido. Resultado de uma parceria entre o governo de Santa Catarina, que cedeu o lote, e o Grupo Gerdau, que financiou a obra, o museu, concluído em 2008 tem área de 8.600 metros quadrados, em uma grande estrutura monolítica de concreto branco, que “esconde” os pilares e as vigas da construção. Ao longo da fachada principal, a forma livre dos “braços” das rampas estabelece um contraponto com o maciço principal. No museu temos o térreo e mais três pavimentos que abrigam as 9 salas de exposição que se articulam ao longo de um grande átrio central.

A circulação é formada por rampas que ora percorrem a parede curva no interior do prédio e ora se projetam para fora, estabelecendo um jogo entre o aberto e o fechado. Como as rampas internas vencem apenas metade da altura de cada nível, o arquiteto teve que encontrar uma solução para vencer o pé-direito duplo das galerias. Assim acabou por estender as rampas para fora do prédio para poder atingir todo o percurso. Siza projeta nas rampas pequenas aberturas pontuais que se abrem para a vista da cidade.

De modo semelhante ao Guggenheim nova-iorquino, Siza projetou o Iberê Camargo com a ideia da visitação em percurso descendente, na qual o visitante, ao chegar, sobe de elevador até o último andar e de lá desce pelas rampas, percorrendo as salas de exposição. O arquiteto aponta as diferenças entre o seu projeto e o do norte-americano Frank Lloyd Wright:

Fig. 135, Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre, 2008, Álvaro Siza

“A diferença entre ambos é que, no Museu Iberê Camargo, as rampas são independentes dos pisos onde se dão as exposições. No museu gaúcho, por exemplo, uma rampa se ““desprende”” e contorna o edifício, retornando para o interior, como um tubo” (...) A ideia de fazer um circuito contínuo de rampas surgiu a partir da forma orgânica do museu (...) as formas do edifício, inicialmente ortogonais, evoluíram para curvas devido às escarpas do local”.1

Se as salas expositivas pelo seu tamanho e disposição se adequam perfeitamente à proposta museológica das obras do pintor Iberê Camargo, as rampas, mais do que sua função de circulação interna, possibilitam ao observador um passeio pelo interior do prédio, com a experimentação sensorial do espaço permitindo múltiplos e variados pontos de vista.

O edifício se organiza como um sistema de espaços que busca a ideia de percurso e incorpora, alternadamente, o passeio pelas áreas de exposição, que se desenvolvem regulares, no plano. O projeto do museu atende às demandas museológicas atuais, onde o espaço das salas de exposição é neutro e de tamanho adequados às obras expostas.

Completam o programa no subsolo: estacionamento, administração, biblioteca, auditório, reserva técnica e centro de documentação e pesquisa com biblioteca

especializada.

Em projetos do arquiteto da década de 1990, Siza já trazia muitas questões

desenvolvidas nesse museu, como a distribuição das galerias de exposição a partir de um grande átrio central, assim como a hierarquização do programa levando para o subsolo áreas como escritórios, auditório e biblioteca.

O Centro de Arte Contemporânea da Galícia, em Santiago da Compostela (1988-93), Espanha, e o Museu de Arte Contemporânea de Serralves (1991-9), em Portugal, apesar de escalas diferentes teêm a mesma forma de abordagem, onde a escala do usuário parece ser a principal preocupação do arquiteto. Se no primeiro caso, o museu projetado no centro histórico da cidade de Compostela respeita a altura dos prédios do entorno conversando diretamente com o usuário que o visita, no Serralves, o conjunto todo implantado dentro de um jardim se abre para um espaço de vivência que integra o museu com esse entono imediato.

Para Kenneth Frampton, o trabalho de Siza marca uma arquitetura essencialmente moderna, porém mais contextual, que considera as características da topografia local e a paisagem urbana como elementos fundamentais no ato de projetar:

“Ele fundamentou seus edifícios na configuração de uma topografia específica e na refinada textura da malha local (...) ajustadas à paisagem urbana, (...) e sua deferência

é mantida para com os materiais locais, o artesanato e as sutilezas da luz local (...)sem cair no sentimentalismo de excluir a forma racional e a técnica moderna(...) no qual ele nunca perdeu a fé”2

Na mesma linha, Segre comenta o processo projetual do arquiteto:

“Siza pertence ao pequeno grupo de arquitetos herdeiros do movimento moderno (...) que se libertaram da rigidez compositiva racionalista e conservaram uma linguagem baseada na geometria abstrata, definida pela inter-relação entre a expressão lírica pessoal, as necessidades funcionais e a lógica estrutural” 3

Ana Vaz Milheiro defende que o processo projetivo do arquiteto realiza-se por uma “canibalização” aleatória da cultura arquitetônica do local onde implanta seus projetos, com a captura das referências que de alguma forma o sensibilizam, e completa identificando o Museu Ibere Camargo, como essa síntese:

“Ora, o lugar não seria apenas a parte física da coisa: a pedreira, o lote estreito, a via marginal ao lago Guaíba-ex-libris paisagístico de uma cidade interior, mas antes a particularidade da arquitetura brasileira e uma espécie de informalidade que o projeto ostenta como um fato novo na sua arquitetura” 4

Para Figueira, o projeto do museu de Siza é uma reiteração do seu repertório: “mais lúdica (...) assumindo por vezes quase o caráter de um ““jogo”” (...) a obra de Siza também é paradoxalmente mais unitária, diria até ““ideal”” porque é uma reiteração permanente do seu universo”.5

A ocupação rarefeita do entorno, longe da área consolidada da cidade, bem como o uso do edifício, também favorecem a realização de uma arquitetura de maior liberdade formal e compositiva. Como diz Siza:

“Nos museus de arte contemporânea o problema é cada vez mais o da organização das exposições temporárias. (...) O problema dos museus não é criar um cenário para obras específicas, mas espaços que permitam diferentes utilizações; é preciso flexibilidade e

2 Kenneth Frampton, História crítica da arquitetura moderna. São Paulo, Martins Fontes, 1997, pg 385

3 Roberto Segre, Metáforas Corporais, in Kiefer, Flavio (org.). Fundação Iberê Camargo, Álvaro Siza. São Paulo: Cosac & Naify, 2008.

4 Ana Vaz Milheiros, Porto Alegre, in A minha casa é um avião. Lisboa, Relógio d’agua, 2007, pg. 100-101.

5 Jorge Figueira, Um mundo Coral, apud, in Kiefer, Flavio ( org.). Fundação Iberê Carmargo, São Paulo, Cosac Naify, 2008

Fig. 138,139,140,141, Centro de Arte Contemporânea da Galícia, Santiago da Compostela, Espanha, 1993; Museu de Arte Contemporânea de Serralves, Portugal, 1999, Álvaro Siza.

uma certa neutralidade. Mas não a neutralidade desejada por alguns conservadores, que é uma não-arquitetura, ou um vazio. Penso que um museu deve possuir o seu caráter próprio e manter as ligações com o meio a que pertence”.6

O Museu Iberê Camargo é singular em relação ao seu projeto arquitetônico. De um lote difícil, estreito e margeado por uma grande avenida, surgiu um projeto de força, de incisão. O prolongamento do gesto em rampas, imita o movimento humano, algo como pintar em movimentos circulares no ar. Seu dramatismo tosco da plasticidade externa se esvai na incrível experiência sensorial interna, onde um estado de suspensão entre a condição interior e exterior provoca surpresa no olhar.

A superfície branca, neutra, reflete o jogo formal de luz e sombra. Um jogo que não se dá exclusivamente no campo do necessário ou do espetacular, mas naquele outro, mais amplo, que marca sua paisagem na cidade.

6 Citado em , C. Café, Álvaro Siza & Rem Koolhas: a transformação do “lugar” na arquitetura contemporânea. Brasília: FAC, 2011, pg. 81