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Arquitetura do território – Museu Cais das Artes – Paulo Mendes da Rocha e Metro, Vitória

A primeira e primordial arquitetura é a geografia

PAULO MENDES DA ROCHA

Na Enseada do Suá, numa extensa esplanada aterrada em frente ao canal que conforma a ilha de Vitória, surge o museu projetado por Paulo Mendes da Rocha ( 2016). Contendo uma área expositiva de 3 mil metros quadrados, mais um teatro com capacidade para 1300 espectadores, o conjunto arquitetônico projetado para o Cais das Artes integra uma área de expansão urbana que tem recebido investimentos nos últimos anos. O seu entorno imediato é caracterizado principalmente por residências unifamiliares de dois a três pavimentos, que aos poucos estão trocando o uso residencial por comercial.

O projeto compreende três volumes diferentes, um para cada programa. O programa do museu prevê um bloco de 150 metros de comprimento por 25 de largura, contendo uma área expositiva de 3 mil metros quadrados e será interligado ao segundo bloco da administração por passarelas. Na extremidade oposta, o teatro, um bloco quadrado de setenta metros quadrados cujo passeio térreo invade o mar. A previsão de inauguração é para o ano de 2016.

Com a ideia de permitir a visão da baía a partir da avenida de acesso ao museu, o arquiteto elevou o prédio em 11,5 metros do solo, criando uma praça no entorno, e sua implantação, como diz o arquiteto: “O museu está a oito metros da linha d’água e a vinte da calçada porque a esplanada do museu para o cais perderia sua força, ao passo que para a cidade ela cria um respiro numa avenida marcada por um alinhamento de prédios”. 1

Nos três volumes criados, a relação com o exterior é dada por pequenas aberturas desenhadas nas empenas de concreto. O museu fecha-se para dentro de si mesmo. Grandes esquadrias de vidro inclinadas são dispostas no espaçamento entre as lajes, trazendo uma “luz refletida” para seu interior. O programa do museu previa um “pavilhão de exposições” para arte contemporânea, pois não tem um acervo específico. Assim, o projeto alterna a distribuição das lajes internas pelos andares, procurando a criação de espaços de tamanhos variados próprios para a grande variedade de obras da arte contemporânea. As salas

de exposição abertas são acessadas através de rampas e escadas, trazendo o percurso do observador pela obra como parte de sua lógica expositiva.

1 Catherine Otondo, “Relações entre pensar e fazer na obra de Paulo Mendes da Rocha”, Tese apresentada na FAU-USP, São Paulo, fevereiro, 2013, pg 43.

“Vejo ainda duas outras coisas bem-sucedidas nessa arquitetura. Em primeiro lugar, a legibilidade do espaço. Em qualquer ponto do museu o visitante pode situar-se e localizar-se. Sabe-se sempre onde se está, dispondo-se de uma multiplicidade de ângulos. Em segundo lugar, a diversidade dos espaços. Praticamente não há duas salas idênticas”.2 As implantações dos projetos feitos por Paulo Mendes da Rocha mostram a

importância que o arquiteto dá à integração deles com o entorno do território onde serão implantados. Sua preocupação principal está no domínio do sítio – seja através da mudança da topografia, seja pela ação sobre os fluxos de circulação.

Seus sólidos soltos do chão ora estabelecem uma relação aberta com o terreno, sem barreiras, onde a arquitetura toca o chão apenas quando estritamente necessário, ora constroem um sentido de percurso redesenhando a circulação do entorno local. Os projetos se apropriam das condições urbanas preexistentes para construírem um novo espaço público, levando em consideração a escala do usuário, e sua experiência na cidade.

Experiência que podemos ver no projeto do MuBE – Museu Brasileiro de Escultura (1986-97), localizado em São Paulo. Situado em terreno de dimensões reduzidas para a implantação de um museu, o projeto ainda enfrentou a imposição de exigências restritivas relativas aos recuos e gabaritos de altura na área. Em vez de criar uma construção

convencional, ocupando e congestionando toda a área disponível, o arquiteto optou por posicionar os espaços de exposição abaixo do solo, tirando partido da topografia original do terreno com desnível de aproximadamente cinco metros e liberando assim toda a superfície, para transformá-la em uma praça ao ar livre. Há uma única construção no nível da praça; um grande “pórtico” de concreto armado de doze por sessenta metros de vão livre, apoiado nas extremidades do lote, perpendicular à avenida Europa. Eliminar o prédio do corpo principal do conjunto rompe o estatuto funcional do projeto arquitetônico e confere à obra uma dimensão simbólica, como diz Solot:

“O contraste entre a monumentalidade da esplanada da praça, atravessada pela viga, e a escala intimista do interior do museu e seu acesso, provoca um efeito surpresa, inverso ao das obras em que a dimensão reduzida do local de entrada contrapõe-se a um interior grande e monumental, a exemplo das catedrais”.3

As áreas de exposição de planta livre permitem que sejam dispostas de acordo com as necessidades expositivas. O diferencial dessa proposta inusitada da grande praça aberta para a cidade ou, como descreveu Hugo Segawa “uma gentileza urbana penetrável”, acabou desvirtuada, com o local sendo totalmente fechado com grades.

2 Abilio Guerra, O oitavo dia da criação, Vitruvius, 11 nov 2000, Disponìvel em www.editora.cosacnaify.com.br acessado em 20/12/2015

3 Denise C. Solot. A paixão do início na arquitetura de Paulo Mendes da Rocha,. 3° Seminário DOCOMOMO Brasil, São Paulo, 1999, pg.7

Fig. 125MuBE- Museu Brasileiro da Escultura, São Paulo, 1997

Para Sophia Teles, essa obra “desenha a paisagem na paisagem” e se caracteriza no modo singular pelo qual estabelece relações entre natureza e técnica, espaço e matéria, objeto construído e superfície do terreno. Para compreender o modo como o arquiteto opera essa relação entre objeto e terreno, a autora destaca a importância da leitura do corte transversal do museu, com a extensão da rua para o espaço interior, afirmando que a implantação de seus projetos no terreno se dá pela manipulação do desenho em corte, e não pela planta. 4

Para David Sperling, o arquiteto usa o processo de criação de seus espaços como a busca de um território contínuo que perpassa os limites dos campos da arte, da arquitetura e da cidade, inter-relacionando-os e expandindo-os através da criação de estratégias

projetuais inovadoras. Um grande pórtico ou um gesto escultural funciona como um “marco referencial”, indicando aos visitantes a obra e também a cidade.5

O modo de articular sua arquitetura com o espaço urbano é uma possibilidade de agir sobre o existente enxergando novas possibilidades funcionais e revela uma leitura contemporânea da importância do desenho das quadras e dos gabaritos de altura do entorno.

Na Pinacoteca de São Paulo (1988-9), o projeto surgiu a partir da necessidade da reforma do prédio de três pavimentos, projetado por Ramos de Azevedo, na região central de São Paulo, para a instalação de um museu de arte brasileira adaptado aos padrões museológicos internacionais. A proposta prevê uma mudança radical na orientação do edifício neoclássico: rotaciona o seu eixo de circulação principal, transferindo a entrada da avenida Tiradentes para a Praça da Luz. Estabelece nessa atitude uma nova relação entre o museu e a Estação da Luz, solucionando ainda o inconveniente estrangulamento da antiga entrada do prédio.

Com essa mudança, foi necessário reinventar as circulações do edifício, para o qual foram criadas passarelas metálicas que atravessam os pátios laterais, criando um eixo longitudinal do edifício a partir de sua nova entrada. O prédio ganha ainda novas coberturas translúcidas sob os pátios, valorizando a arquitetura existente.

Em outro projeto do arquiteto, não construído, podemos ver a precisa leitura do sítio onde está implantado. Trata-se do complexo Praça dos Museus da USP, composto do Museu de Arqueologia e Etnologia, Museu de Zoologia, Edifício Expositivo e Edifício Atividades Culturais.

4 Ver Sophia da Silva Telles. Museu Brasileiro da Escultura. AU – Arquitetura & Urbanismo, São Paulo, n°17, 1990 5 David Sperling, Museu Brasileiro da Escultura, utopia de um território contínuo, disponível em http://www.vitruvius.

Fig.127,128,129, Praça dos museus da USP, São Paulo, 2005, Paulo Mendes da Rocha

Num terreno de grandes dimensões e topografia acidentada, a ideia principal do arquiteto foi criar um grande eixo de circulação, aéreo, que ordena os fluxos dos diferentes museus. Essa “rua aérea” tem comprimento total de 242metros e interliga o conjunto de museus através de passarelas individuais.

O complexo não serve apenas como ponte entre duas áreas isoladas do campus universitário, mas como ligação entre a potencialidade do lugar e a estratégia do seu uso funcional.

Em 2008, Mendes da Rocha é convidado pela Prefeitura de Lisboa para o projeto de um museu com um programa bem específico: o acervo dos coches da Coroa portuguesa. O terreno do museu, localizado num enclave urbano, tem 12 mil metros quadrados de área, com o entorno imediato formado por casas de baixo gabarito. O projeto com dois volumes – o pavilhão do museu e um edifício administrativo – foram interligados por passagens aéreas. A implantação dos volumes no terreno é pensada de modo estratégico. O pavilhão principal, onde está o acervo dos coches, ocupa a porção frontal do terreno, com 142 metros de comprimento e 48 de profundidade, sendo elevado do chão a 4,5 metros de altura.

Ana Vaz Milheiros comenta sobre a falta de lugares públicos semelhantes a essa nova praça criada pelo museu, característica tão comum em nossa arquitetura moderna, mas que em Lisboa inexiste, pois a maioria das construções é fechada no térreo:

“A implantação dos Coches é muito correta, compreende a sucessão de praças e jardins da área, mas principalmente cria algo inteiramente novo.(...) O museu de Paulo tem aquela grande massa, um discurso unitário, mas é parte do entorno. Ele conhece bem Lisboa, percebe como fomos construindo, ao logo do tempo, edifícios atrás dos muros. E como o museu devolveu-nos essa visão de arquitetura dos trópicos.” 6

O espaço interior do museu divide-se em dois salões de pé-direito duplo separados por uma faixa central, onde estão todas as instalações técnicas de manutenção, sala de exposições temporárias e circulações verticais. O interior dos salões de exposição é um espaço hermético, branco e com poucas entradas de luz natural. Dentro da mesma lógica que utilizou no museu Cais das Artes, o arquiteto utiliza-se de rampas nas passagens de um andar para outro, muitas delas projetadas para fora do corpo principal do prédio que o arquiteto chama de “cristaleira”, pois a princípio seriam todas de vidro, mas acabaram sendo fechadas por placas de cimento.

Fig. 130,131, Museu do Coches, Portugal, Paulo Mendes da Rocha, 2009

Fig. 132,133,134, Museu do Coches, Portugal, Paulo Mendes da Rocha, 2009

Os pilares das empenas laterais formam um grande “esqueleto” onde um cubo de concreto no seu interior (rosa) abriga os programas administrativos e o auditório. Ele não toca as extremidades do volume maior, nem na sua cobertura (onde há um espelho d’água), criando um jogo de cheios e vazios.

Na simplificação na organização espacial de sua arquitetura, Mendes da Rocha oferece um contraponto ao entorno muitas vezes caótico da cidade. Suas intervenções são específicas para cada lugar, a partir da leitura do existente, e os projetos reiteram sua visão de mundo onde o território prevalece sobre a cidade e o coletivo sobre o individual. Esse poder de adaptação e reconstrução dos sentidos confere à arquitetura de Mendes da Rocha uma singularidade especial: a refundação do território.

Arquitetura do gesto – Fundação Iberê