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2.4 PROCESSO DE FRAMING E ANÁLISE DE FRAMES

2.4.2 As “tarefas” centrais de framing

2.4.2.5 Articulação e alinhamento

Vimos que em Laclau e Mouffe (1986) a chave para a produção daquela ―unidade‖, que é o discurso está no conceito de articulação. Estes autores enfatizam, por meio disso, a relação entre as lógicas da diferença e da equivalência, que se referem à percepção do antagonismo e sua resolução contingente por meio da identidade, via práticas articulatórias. É fundamental na teoria do discurso, também, a ênfase no fato de que o conteúdo não pode ser interpretado de modo essencialista: se o sentido (o discurso) é posicional, não pode haver uma essência do sujeito. Esse não essencialismo não deve ser confundido com a ausência de um ―chão‖, de um contexto social e político concreto. As posições de sujeito não são alheias às condições sociais, mas essas mesmas condições precisam ser elaboradas (problematizadas) discursivamente, para se tornarem posições de sujeito.

A lógica da articulação e a identificação dessa contingência das identidades coletivas nos parecem comuns ao conceito de articulação da Teoria do Discurso e o de alinhamento da perspectiva de frames, exceto por um aspecto: a descrição do ―como‖. Em suas análises empíricas, a exemplo de A Razão Populista (2005), Laclau fala de ―lógicas‖, ―movimentos‖ e ―ideologias‖, mas não deixa claro como se dá o engajamento e a interpelação dos atores individuais nos processos políticos. Snow e Benford chamam a atenção para o risco de reificação dos movimentos sociais – armadilha que, no nosso entendimento, pode facilmente acontecer na teoria do discurso. É este ―como‖, este papel da agência e o nível mesossocial que a análise de frames, como recurso metodológico, pode acrescentar à teoria do discurso, na linha analítica a que nos propomos. Ainda que a unidade de análise não seja o indivíduo (mas sim o grupo), os autores destacam que a agência não pode ser perdida de vista. Ao mesmo tempo, aspectos emocionais, culturais e ideacionais (para evitar a ambiguidade do termo ―ideologia‖) precisam ser levados em consideração.

É irônico que, em muitos novos movimentos sociais e análises sociais construcionistas, a ação humana e a interação sejam retiradas do texto. Devemos ter em mente que essas coisas que chamamos de "movimentos sociais" e suas manifestações organizacionais são formadas por seres interativos, coatuando e reagindo (Benford 1993b; Buechler 1993; Hunt 1992). Os movimentos sociais não se envolvem em protestos, violência, concursos de frames e coisas do gênero; os seres humanos o fazem. (BENFORD, 1997, p. 418)

Na perspectiva de frames, articulação envolve a conexão e o alinhamento de eventos e experiências de modo que eles se mantenham juntos de forma relativamente unificada e atraente. O conceito de alinhamento remete à construção de vínculos entre os frames interpretativos dentro (entre líderes ou ativistas e entre facções) e fora do movimento (público, potenciais adeptos, potenciais aliados). Fatias do observado, experienciado e lembrado são montadas, agrupadas e embaladas em uma linha comum. A novidade do resultado, para Snow e Benford, está menos na originalidade ou novidade dos elementos ideacionais envolvidos e mais ―na maneira pela qual eles são empacotados e articulados, de modo que um novo ângulo de visão, ponto de vista e/ou interpretação é fornecido‖ (SNOW e BENFORD, 2000, p. 623). Vale observar que o que está em cheque, no alinhamento, não é bem a busca de um consenso. Se pensarmos conforme a lógica da equivalência, essa aparente unidade interna e sua abrangência se dão pelo estabelecimento de uma linha clara entre um ―nós‖ (quem somos, o que defendemos) e um eles (aqueles cujos posicionamentos ameaçam os nossos ou que são culpados ou responsáveis pela situação contra a qual lutamos). A questão é até onde essa linha vai – quem ela incorpora, quem ela exclui; o quanto ela é flexível, o quando é rígida.

Portanto, considerando esse esforço do processo de framing de gerar identidade e produzir uma ―unidade‖, um dos aspectos importantes é o grau de flexibilidade ou rigidez dos frames – o quanto são inclusivos ou excludentes, com maior ou menor potencial para incorporar demandas e temáticas diversas. Snow e Benford salientam que o escopo dos frames de ação coletiva associados à maioria dos movimentos é restrito aos interesses de um grupo específico ou a um conjunto particular de problemas relacionados, a exemplo das ―demandas democráticas‖ de que fala Laclau n‘A Razão Populista (2013). Alguns movimentos, porém, teriam escopos mais amplos, ―funcionando como um tipo de algoritmo mestre que colore e restringe as orientações e atividades de outros movimentos‖ (SNOW e BENFORD, 2000, p. 619). A esses referenciais mais amplos que terminam por abarcar as demandas de movimentos específicos ou derivar novas demandas ou movimentos, a perspectiva de frames chama de masterframes. Os masterframes conseguem articular experiências e eventos diversos, dando-lhes significado de forma mais ampla, menos particularista, mais inclusiva, permitindo a convergência de diferentes públicos e movimentos sociais. Usando o mesmo exemplo de Laclau (2013), a identificação de várias demandas unificadas em torno do significante vazio ―povo‖ (―demandas populistas‖) fariam dos valores associados ao populismo exemplos de masterframes. Exemplo mais claro é o frame dos

―direitos‖ nos Estados Unidos, que se converteu na meta de vários movimentos: as feministas, os ambientalistas, as minorias étnicas, os homossexuais, entre outros (AMPARÁN, 2006, p. 23). Como veremos no capítulo sobre movimentos sociais ou grupos de protesto contra a corrupção no Brasil, esse processo de unificação pode não ser tão claro e linear, haja vista o papel da hegemonia e a disputa entre contraframes, dentro e fora do movimento, que podem ser ofuscados pelos frames hegemônicos.

Zuo e Benford [...], em suas análises de mobilização em relação aos processos do movimento democrático chinês, sugerem que os framings e reivindicações de estudantes mobilizadores foram fundados em uma mistura de ideias acerca de democracia e liberdade junto com as tradicionais ideologias culturais chinesas ou narrativas associadas com o confucionismo, o comunismo e o nacionalismo. Com a incorporação de traços de todas as três tradições culturais em frames de ação coletiva do movimento, os ativistas, de acordo com Zuo e Benford (1995: 139), foram não só capazes de ―ganhar a simpatia e o apoio ativo do público espectador‖, mas também de ―desviar qualquer tentativa do Estado de impugnar seu caráter coletivo, particularmente atribuições em relação ao seu patriotismo‖. (Snow, 2004, p. 401)

No entanto, quando um frame consegue esse nível de amplitude? Ou, refazendo a pergunta de Goffman: em que circunstâncias acreditamos e aderimos a uma determinada versão da realidade? A resposta remonta ao próprio conceito de framing – ao esforço de articulação entre eventos e experiências de modo a dar-lhes uma unidade narrativa coerente e ressoante. Coerente para quem? Entram aqui as dimensões cognitiva, cultural e política desses processos.

Quanto mais flexível e condizente com o mundo da vida dos participantes, seus valores e crenças (cultura), maior o poder de mobilização do frame. Mas sua capacidade de unificar (ou dividir) depende, antes de tudo, de eventos de deslocamento – precisamente os momentos em que: a) uma situação ou condição social, antes vista como tolerável, passa a ser percebida como injusta ou não tolerável; b) em torno desta situação constrói-se uma narrativa de causalidade que coloca em lados claramente opostos os prejudicados ou vítimas e os culpados ou responsáveis, interpelando os sujeitos a assumirem ―posições‖; e c) esta situação passa a ser vista não apenas como algo que urge mudança, mas passível de transformação através da identidade e da ação coletiva. Cada uma dessas etapas está relacionada à própria atividade de framing, que entendemos como prática articulatória: desde a identificação do problema, ao estabelecimento de antagonismos e identidades, passando pela avaliação (racional e emocional) de que o momento político permite e pede a ação conjunta, até a

motivação para a ação, a prática articulatória está presente. Trazendo para este processo as noções de antagonismo e hegemonia, e lembrando que eles só podem ser compreendidos de modo relacional, há que se considerar a confluência, na arena de atuação dos movimentos sociais, de diversos atores em disputa – outros movimentos sociais, mídia e autoridades. Ademais, a existência de contraframes significa, entre outros aspectos, que os frames emergentes disputam com outros cujas atribuições inibem e deslegitimam suas narrativas, prognósticos e argumentos em prol da mobilização. Essas considerações levam a uma última: quanto mais abrangente um frame – quanto mais larga uma cadeia de equivalência - mais diferenças e, portanto, mais tensões ela oculta.

Quatro processos básicos de alinhamento foram identificados e pesquisados pelos estudiosos dos frames de ação coletiva: ponteamento (frame bridging), amplificação, extensão, transformação e amplificação de crenças (SNOW e BENFORD, 2000, p. 624).

O ponteamento diz respeito aos enlaces que se estabelecem entre frames para difundi- los e transformá-los, criando nexo entre dois ou vários frames referentes a um problema particular, que embora idealmente congruentes, se encontram discursivamente desarticulados. Esta ponte entre frames une sentimentos de diferentes públicos em torno de injustiças, agravos e atribuições causais que até então não tinham base cognitiva e organizativa comum. Os autores, no entanto, deixam de fora um item importante: o antagonismo. Na perspectiva da teoria do discurso, essa agregação precisa ser compreendida à luz das diferenças que ela oculta ou evidencia e das cadeias de equivalência que ela suscita, gerando identidades sociais (ou posições de sujeito). Falando sobre a construção do significante ―povo‖ no populismo, Laclau afirma:

A primeira dimensão da fratura é que, em sua raiz, se dá a experiência de uma falta, uma lacuna que surgiu na continuidade harmoniosa do social. Há uma plenitude da comunidade que está ausente. Isto é decisivo: a construção do "povo" vai tentar dar um nome a essa plenitude ausente. Sem essa ruptura inicial de algo na ordem social – por menor que essa ruptura tenha sido inicialmente -, não há nenhuma possibilidade de antagonismo, de fronteira ou, em última instância, de ―povo‖. No entanto, esta experiência inicial não é apenas uma experiência de falta. A falta, como vimos, está ligada a uma demanda não atendida. Mas isso implica introduzir ao quadro a instância que não atendeu à demanda. Uma demanda sempre está dirigida a alguém. Portanto, enfrentamos desde o início com uma divisão dicotômica entre as demandas sociais não atendidas, por um lado, e um poder insensível a elas, por outro. (LACLAU, 2005, p. 113)

A amplificação de frames e crenças e a extensão de frames correspondem ao alargamento de valores ou de crenças de modo a incorporar, ainda que momentaneamente, as diferenças. Segundo Amparán, (2006, p. 19), o processo de amplificação de frame salienta algumas questões ou ideias em relação a outras, fornecendo um identificador conceitual para ligar vários eventos e princípios, dando relevo e simbolizando o frame maior de que o movimento é parte. Dessa forma, valores e crenças dos simpatizantes podem ser alinhados às ideias e demandas do movimento social. O termo ―crença‖ é usado na perspectiva de frames em sentido amplo – é tudo aquilo que o movimento acredita acerca do problema, causas, estereótipos sobre os antagonistas, percepções sobre as possibilidades de mudança, razões para a ação coletiva, conveniência de mobilizar-se. Tais crenças são comumente traduzidas pelos movimentos sociais em slogans como "Liberdade, fraternidade, igualdade", "Poder para o povo", ―Venceremos‖ ("We Shall Overcome"), ―Sem teto, não desamparado‖ ("Homeless, Not Helpless"), ―Deus está morto‖, ―Capitalistas são exploradores‖, ―Comunistas são maus‖, ―Negro é lindo‖ (AMPARÁN, 2006; SNOW e BENFORD, 2000).

A transformação de frames é abordada pelos autores em um sentido estritamente interno e estratégico: quando nem os interesses nem os valores do movimento social mostram-se congruentes com os seus participantes e seu público, a agregação torna-se frágil e surge uma necessidade de mudança ou reformulação, seja no diagnóstico, no prognóstico ou nos métodos utilizados. Pensamos, contudo, que esse tipo de questão ―interna‖ é particularmente sintomática de que, na disputa hegemônica, alguns discursos são momentaneamente vitoriosos, enquanto outros recrudescem. Para Snow e Benford, tanto a amplificação de frames e crenças quanto a transformação de frames têm relação com a ressonância dos frames e com constrangimentos políticos e culturais, além do estado do debate sobre o tema na esfera pública: ―em sua extensa pesquisa sobre o movimento pelos direitos civis, McAdam, McCarthy e Zald (1996) observaram como vários ‗públicos de referência‘, incluindo segregacionistas, a mídia, o público e o governo federal afetaram as atividades de framing do movimento‖ (SNOW e BENFORD, 2000, p. 630). O processo de alinhamento, portanto, não é unilateral – ação de líderes sobre uma base acrítica ou do movimento sobre um público passivo. Ele precisa ser compreendido na arena e no contexto político em que ocorre, observando-se os atores presentes e como eles se posicionam, os elementos que são ativados, as incorporações, exclusões e ocultamentos.

A ―eficácia‖ ou poder de mobilização dos framings propostos tem relação, para Snow e Benford, com sua credibilidade e ressonância relativa. A credibilidade é pensada como

consonância cognitiva (consistência do frame, clareza dos argumentos, fidelidade à experiência empírica e legitimidade dos articuladores e autores das reivindicações); e a ressonância é associada a oportunidades ou constrangimentos políticos e culturais. A credibilidade dos frames dependeria da comensurabilidade da experiência, sua coerência com os esquemas de ação em que os atores experimentam o problema, e da fidelidade da narrativa à herança cultural dos atores. Segundo Amparán (2006), os processos de framing são mais exitosos na medida em que os frames gerados se aproximam de narrativas dessa herança cultural: seus mitos, histórias, contos populares. Pensada dessa forma, a relação entre frames e cultura e a questão da credibilidade dos frames soam ora neutras, alheias ao processo de articulação; ora reproduzem a imagem da cultura como uma ―caixa de ferramentas‖ à disposição dos ativistas. O papel dos meios de comunicação tradicionais (notadamente os noticiários, cujas manchetes tendem a ser tomadas como ―fatos‖ pelo grande público), é pouco problematizado, assim como a visibilidade que alguns frames (e mitos e valores relacionados), adquirem na esfera pública, favorecendo determinadas interpretações da realidade em detrimento de outras. Como aponta Amparán (2006, p. 26), ―dentro da duração de um ciclo de protestos pode ser uma constante que o Estado e os meios de comunicação de massa produzam ‗frames‘ interpretativos que tratam de tirar a legitimidade do masterframe gerado pelos movimentos sociais‖. É importante notar, ainda, que os meios de comunicação podem pautar os próprios movimentos, ao mesmo tempo em que são pautados por eles em momentos de grande visibilidade (daí a importância das noções de visibilidade e latência de Melucci). Como veremos, a internet e as redes sociais on-line têm estado, no Brasil, no fluxo e contrafluxo dessa construção do que é ―real‖ e ―crível‖, com uma proliferação de canais que buscam mostrar ―o que não aparece na TV‖, ―o que a grande mídia não mostra‖.6

Quanto à ressonância de frames e masterframes, Snow e Benford afirmam que a ela pode estar associada ao surgimento, manutenção e declínio de ciclos de protesto, estes últimos entendidos como ―sequências escalonadas de ação coletiva com maior intensidade e frequência do que o normal, que se estendem através de setores e regiões da sociedade‖

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Mesquita (2016, p. 79), estudando como o engajamento político dos cidadãos é afetado pela exposição à mídia, afirma que ―algumas das perspectivas sobre o impacto da mídia sobre democracia aponta para um cinismo crescente da imprensa em lidar com as questões públicas, levando ao rebaixamento da política e dos políticos em geral (Patterson, 1998; Cappella e Jamieson, 1997). Por outro lado, estudos baseados em surveys indicam que a exposição à mídia noticiosa está associada a atitudes mais democráticas e a maior confiança no regime (Norris, 2000; Newton, 1999). Outras orientações políticas relativas aos próprios cidadãos como atores políticos apresentam associações diferentes a depender do tipo de mídia quanto ao conteúdo (Livingstone e Markham 2008; Eveland e Scheufele, 2000; Corrigall-Brown e Wilkes, 2014). Independentemente da perspectiva adotada sobre o assunto, as informações sobre as instituições democráticas nos meios de comunicação é um elemento à disposição dos cidadãos para formar suas opiniões, para além das experiências concretas que possam ter.‖

(AMPARÁN, 2006, p. 24). Um contexto político pode tornar determinado discurso mais ou menos ao apto ao sucesso, aumentando seu poder de ressonância. A potência de mobilização do masterframe, por sua vez, determinará a forma e o alcance temporal desses ciclos. Através dos mecanismos de alinhamento, esse potencial pode ser incrementado para o que o masterframe se torne mais ressoante na sociedade. Mas, na medida em que o potencial de um frame depende de sua capacidade de ressonância, uma mudança no clima político e cultural pode reduzir sua força e consequentemente gerar o declínio do ciclo de protesto.

Essa concepção, em princípio, parece não levar em consideração a dimensão hegemônica dos masterframes, as tensões que eles ocultam e a relação de antagonismo que os define. No entanto, fiéis à perspectiva construcionista e atentos às críticas sofridas pela teoria do processo político, Snow e Benford salientam que a própria noção de oportunidade política está sujeita à interpretação. Para que se torne ―oportunidade‖, ela precisa ser discursivamente articulada, ainda que essa tentativa de elaboração possa escapar aos sujeitos e tomar rumos não imaginados.

[...] os proponentes dessas perspectivas (mobilização de recursos e do processo político) não só privilegiaram inicialmente esses fatores, como também não conseguiram avaliar até que ponto condições materiais como a privação econômica ou o desemprego são, elas próprias, sujeitas à interpretação diferencial e, portanto, não constituem ou geram automaticamente queixas mobilizadoras (SNOW, 2004, p. 383).

Para os autores da perspectiva de frames, como para Melucci, embora as estruturas de oportunidades políticas possam restringir ou facilitar os processos de framing de ação coletiva, seu grau ou extensão raramente é uma ―entidade estrutural‖ clara e de fácil leitura. Antes, sua existência e abertura estão sujeitas ao debate e interpretação e podem ser enquadradas pelos atores. O enquadramento das oportunidades políticas seria, aliás, um componente central dos frames de ação coletiva.