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2.4 PROCESSO DE FRAMING E ANÁLISE DE FRAMES

2.4.1 Dos frames da vida cotidiana aos frames de ação coletiva

O conceito de frames de Goffman refere-se a esquemas de interpretação que permitem aos indivíduos selecionar, localizar, identificar e rotular ocorrências dentro do seu espaço vivido e do mundo em geral (SNOW, 2004). Goffman segue a tradição estabelecida por Willian James, que ―em vez de perguntar o que era a realidade, deu à questão um giro fenomenológico subversivo, com destaque para a pergunta: em que circunstâncias pensamos que as coisas são reais?‖ (GOFFMAN, 1986, p. 2). A resposta seria que o mais importante da realidade é nossa sensação de que algo é real, em contraste com o sentimento de que algumas coisas carecem dessa qualidade. Goffman, então, refaz a pergunta de James: em que condições é gerado esse sentimento de realidade?

Preocupado em identificar as estruturas básicas de organização da experiência e os princípios que governam as situações sociais, o autor chega ao conceito de frames. Desde uma perspectiva situacional, ele os define como maneiras pelas quais prevemos o que vai ocorrer

nas situações sociais e nos posicionamos nelas a partir destas previsões. A nova pergunta é: ―o que está acontecendo aqui?‖. A partir dela, o indivíduo identifica em que consiste a situação, quais os atores presentes no ―quadro‖ e onde ele está posicionado. Conforme a metáfora da moldura, os frames pontuam e especificam em nosso campo sensorial o que é relevante e o que é irrelevante, o que está "em enquadramento" e o que está fora de enquadramento em relação ao objeto de orientação. A base desses pressupostos são os frames interpretativos, constituídos por frames primários (frames ―naturais‖, relacionados à identificação de eventos), frames sociais (relacionados à identificação de ações) e frames secundários (sujeitos à ativação e interpretação em situações específicas).

Embora se distancie explicitamente da análise de estruturas sociais, a busca por princípios de organização da vida social levou alguns autores a classificarem a abordagem de frames de Goffman como uma variante do estruturalismo. Para George Gonos (1980), por exemplo, embora Goffman seja mais frequentemente tratado como interacionista simbólico, suas estruturas de interação propõem uma possibilidade de integração entre as estruturas mentais de Lévi-Strauss e as grandes estruturas dos marxistas estruturais franceses. Leitura similar é apresentada por Amparán:

O Eu se constitui porque existem códigos ou marcos (inseridos em um marco mais amplo da cultura) que estruturam a experiência social dos atores. [...] A partir disso, Goffman estabelece a ligação entre os marcos de significação mediante os quais, nos rituais de interação, se produz o encontro entre as microestruturas de significado que compõem a expressão da pessoa e as macroestruturas de significado que compõem a cultura. Assim, a realidade social é analisada como texto e os marcos que organizam a experiência e guiam a ação individual ou coletiva são decifrados. (AMPARÁN, 2006a, p. 16).

Expoentes da análise de frames de ação coletiva, os sociólogos norteamericanos Snow e Benford (2000) reafirmam o conceito de Goffman como quadros interpretativos que simplificam e condensam o mundo exterior, tornando os eventos ou ocorrências significativos e, portanto, servindo para organizar a experiência e orientar a ação. Esses autores, porém, não estão em busca de leis que governam a organização social ou de esquemas interpretativos fixos, e sim atentos às dinâmicas de formação de identidades coletivas. Contrastando com a visão – dominante até meados da década de 1980 –, que percebia os movimentos sociais como portadores de ideias e crenças prévias, eventos imprevistos ou ideologias existentes, os estudiosos dessa perspectiva estavam interessados na luta pela produção de sentido e pela geração de ideias mobilizadoras e contra-mobilizadoras. Assim, a perspectiva de framing

volta a atenção para a construção e (tentativas de) manutenção de significado por parte de ativistas e participantes de movimentos sociais, além de outros atores relevantes em cena, como contra-movimentos, elites, Estado, representantes de outras instâncias de autoridade, mídia e públicos interessados (SNOW, 2004, p. 384). Nesse sentido, ao se inserir no campo de estudos dos movimentos sociais, a noção de frame assume um sentido mais flexível e contingente – ―o conflito social e as disputas políticas são apresentadas como eminentemente simbólicas‖ (ALONSO, 2009, p. 78).

Diferente dos frames da vida cotidiana de que trata Goffman, os frames de ação coletiva vão além da resposta à pergunta "o que está acontecendo aqui?". Eles têm, também, funções de focalização, articulação e transformação dos frames existentes, sendo, portanto, mais agenciais e contenciosos, no sentido de exigir uma ação que problematiza ou desafia as visões existentes ou dominantes da realidade (SNOW, 2004, p. 385). Além disso, o trabalho interpretativo dos frames de ação coletiva faz mais que organizar a experiência: eles atribuem significado e interpretam eventos e condições relevantes de modo a ativar adeptos, transformar espectadores em apoiadores e desmobilizar antagonistas – posições que, como veremos, são trabalho do próprio processo de framing. Portanto, assim como a ideologia em Althusser e o discurso em Laclau e Mouffe, os frames de ação coletiva também têm um caráter performativo, no sentido de interpelar os sujeitos a uma determinada ação, ao redefinir como injusta e imoral uma situação antes considerada tolerável, ou sublinhando a gravidade e injustiça de uma determinada condição social:

[...] os quadros também funcionam, talvez mais importante ainda, como mecanismos de articulação no sentido de unir os vários elementos pontuados da cena para um conjunto de significados em vez de outro, ou, na linguagem da narratividade, uma história em vez de outra é contada. Além disso, os

frames também podem desempenhar uma função transformadora no sentido

de alterar o significado do(s) objeto(s) de atenção e sua relação com o(s) ator(es), como na transformação ou reconfiguração de aspectos de sua biografia, os contextos de alguns movimentos ou a transformação de queixas ou infortúnios de rotina em injustiças ou demandas de mobilização no contexto da ação coletiva. (SNOW, 2004, p. 384)

Snow e Benford definem os frames de ação coletiva como conjuntos emergentes de crenças orientadas para a ação que dão significado às atividades do movimento social e legitimam suas campanhas. O gerúndio "framing" é usado pelos autores para enfatizar a dimensão processual, construtiva e negociada desse trabalho significante, que constitui uma das atividades regulares dos participantes do movimento social e seus líderes: ―os produtos

resultantes dessa atividade de framing na arena do movimento social são chamados de frames de ação coletiva" (SNOW, 2004, p. 384). O processo de framing denota um fenômeno de construção da realidade que é: a) ativo (algo vivo, dinâmico, em processo); b) implica agência (o que está em questão é o trabalho de organizações de movimentos sociais ou ativistas); e c) contencioso (envolve a ativação de quadros interpretativos já existentes, mas também pode desafiá-los) (SNOW e BENFORD, 2000, p.614).

A ideia de frame como uma ―resultante‖ dos processos de framing pode sugerir a imagem de algo acabado, estável, uma ―objetividade‖. Essa seria, a nosso ver, uma leitura injusta do trabalho de Snow e Benford, que insistem no caráter interativo, relacional e construcionista da formação de identidades coletivas. Se acrescentarmos a essas interpretações o conceito de hegemonia tal como apresentado por Laclau e Mouffe, torna-se mais evidente a ideia de quadros aparentemente estáveis e consolidados, mas cuja dominância pressupõe o ocultamento de outros conteúdos. Dada a imanência do antagonismo, essa objetividade é sempre contingente, momento de uma prática articulatória, substância de um processo contínuo de framing, e está sujeita a processos de deslocamento que, ao suscitar novas articulações, podem vir a alterá-la de modo mais ou menos evidente, de modo mais ou menos duradouro.

Na perspectiva de Snow e Benford (2000), frames de ação coletiva são constituídos por dois conjuntos de características. O primeiro diz respeito à função de orientação da ação (action-oriented function), a partir da qual os autores definem três tarefas centrais de framing (core framing tasks): framing de diagnóstico, framing de prognóstico e framing de motivação para a ação. E o segundo refere-se aos processos interativos e discursivos através dos quais essas tarefas são realizadas (SNOW e BENFORD, 2000, p. 615).

Ao perseguir essas principais tarefas de framing, os atores do movimento ajudam a interrelacionar problemas de "mobilização para o consenso" e "mobilização para a ação" (Klandermans 1984). Simplificando, o primeiro facilita o acordo, enquanto o segundo promove a ação, mobilizando as pessoas da sacada para as barricadas (SNOW e BENFORD, 2000, p.615).

Os framings de diagnóstico dizem respeito à identificação de uma condição ou situação problemática que precisaria de mudança, além das atribuições de causas e responsáveis por essa situação; os framings de prognóstico referem-se às proposições de caminhos ou arranjos alternativos para resolver a problemática percebida; e os framings de motivaçãopropõem motivos para a participação, ou seja, interpretações que instigam outros a

se engajarem na ação e provocar mudanças. Marina Adler (2012) menciona, ainda, os framings prefigurativos, que remontam ao futuro almejado pelo movimento social – suas expectativas, seus projetos de futuro, sua utopia.

Essas ―tarefas‖ são realizadas através de alguns processos interativos e discursivos básicos fortemente relacionados (AMPARÁN, 2006a; SNOW e BENFORD, 2000):

Pontuação: o processo de framing assinala e ordena os objetos da realidade exterior, produzindo orientações de atribuição e de articulação. Por meio dessa função, os frames permitem que os atores percebam uma condição social ou uma série de eventos como justo ou injusto, moral ou imoral, tolerável ou não. Essa dimensão, que diz respeito à problematização de um dado aspecto da realidade social, é fundamental para a legitimidade e adesão de outros a demandas, reinvindicações ou projetos do movimento.

Atribuição: esta função faz a ligação entre a problemática identificada pelo movimento e uma lógica de causalidade específica, em que fatores, culpados ou responsáveis são distinguidos (atribuição diagnóstica). Ao mesmo tempo, concebe soluções e ações específicas para acabar com a situação de injustiça (atribuição de prognóstico).

Articulação: por fim, e fundamental, esta função permite aos atores articular e alinhar um amplo conjunto de eventos e experiências, de modo que as narrativas de pontuação e atribuição possam ter sentido, tenham legitimidade e gerem identidade. Esta função é, no nosso entendimento, a própria atividade de framing, e tem forte relação com o conceito de articulação de Laclau e Mouffe – a identificação de antagonismos e a construção de cadeias equivalenciais.

[...] nenhum conteúdo particular tem inscrito, em sua especificidade ôntica, o seu significado dentro de uma formação discursiva. Tudo depende do sistema de articulações diferenciais e equivalenciais dentro do qual está situado. Um significante como "trabalhadores", por exemplo, pode, em certas configurações discursivas, esgotar-se em um significado particularista, setorial, enquanto em outros discursos - o peronista, por exemplo - pode converter-se na denominação por excelência do "povo". O que deve ser observado é que esta mobilidade também implica uma possibilidade de importância central para entender o modo como operam as variações populistas. Sabemos, pela nossa análise prévia, que o populismo supõe a divisão do cenário social em dois campos. Este divisão pressupõe [...] a presença de alguns significantes privilegiados que condensam em torno de si mesmos a significação de todo um campo antagônico (o "regime", os "oligarcas", o "grupo dominante" etc., para o inimigo; o "povo", a "nação‖, a "maioria silenciosa", etc., para os oprimidos – quais destes significantes vão adquirir este papel articulador dependerá, obviamente, de uma contextualização histórica) (LACLAU, 2005, p. 114).

Discutiremos a seguir essas tarefas básicas de framing, para então nos aprofundar nos processos interativos e discursivos de articulação e alinhamento.