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3 CONSTRUÇÃO DO CORPUS

3.2 METODOLOGIA QUALITATIVA

O interesse no discurso, na dimensão processual e construtiva, na investigação tanto das dimensões visíveis quanto das faces latentes dos sujeitos coletivos em questão, indicou a utilização da metodologia qualitativa.

Segundo Bryman (2008), essa decisão metodológica remete: a) a uma visão indutiva da relação teoria e pesquisa, em que a produção da primeira está ligada à última e a análise está presente em todas as fases de elaboração do trabalho; b) a uma posição epistemológica interpretativista, que se traduz na tentativa de apreensão do mundo social através do exame das interpretações desse mundo pelos participantes da pesquisa; c) a uma posição ontológica construcionista, que percebe os fenômenos sociais como resultados das interações entre os indivíduos. Adaptando esses princípios para o nosso objeto de pesquisa, trata-se do esforço de estudar as ações coletivas em foco, analisando-as em suas peculiaridades culturais e históricas, sem perder de vista que o recorte empírico é um construto da analista em sua

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própria posição de sujeito e em sua rede de significados (MUTZENBERG, 2002, 2011; MELUCCI, 1996; POUPART, 2010; DENZIN, 2006).

Diferente do que ocorre com o método de survey, em torno do qual há relativo consenso paradigmático quanto a princípios e definições, definir o método qualitativo é uma tarefa mais complexa, dada a sua natureza multipadigmática:

A pesquisa qualitativa, como um conjunto de atividades interpretativas, não privilegia nenhuma única prática metodológica em relação a outra. É difícil definir claramente a pesquisa qualitativa como um terreno de discussão ou de discurso. Ela não possui uma teoria ou um paradigma nitidamente próprio. [...] Há múltiplos paradigmas teóricos que alegam empregar os métodos e as estratégias da pesquisa qualitativa, desde os estudos construtivistas aos culturais, passando pelo feminismo, pelo marxismo e pelos modelos étnicos de estudo. A pesquisa qualitativa é empregada em muitas disciplinas distintas. (DENZIN, 2006, p. 20)

A pesquisa qualitativa ressalta a natureza socialmente construída da realidade (a realidade social é vista como construção e atribuição social de significados – ênfase no caráter processual e na reflexão); a íntima relação entre o pesquisador e o que é estudado; e as limitações contextuais que influenciam a investigação.

Dessa forma, o contexto e a interação são elementos fundamentais. Do ponto de vista qualitativo, todo pesquisador fala a partir de uma determinada perspectiva de classe, de gênero, de raça, de cultura e de comunidade étnica. Esse pesquisador, situado em múltiplas culturas, aborda o mundo com um conjunto de ideias, um esquema (teoria, ontologia) que especifica uma série de questões (epistemologia) que ele então examina em aspectos específicos (metodologia, análise). Cada pesquisador fala a partir de uma comunidade interpretativa distinta que configura, em seu modo especial, os componentes multiculturais, marcados pelo ato da pesquisa.

Dentro da própria metodologia qualitativa, algumas técnicas como a observação (etnografia) já tiveram a pretensão de uma maior proximidade com a ―realidade objetiva‖ do que técnicas discursivas como entrevistas individuais e grupais. Por outro lado, segundo Denzin (2006), abordagens mais recentes acerca da metodologia qualitativa (como a teoria queer e o pós-estruturalismo) defendem que os sujeitos ou indivíduos dificilmente conseguem fornecer explicações completas de suas ações ou intenções; tudo o que podem oferecer são relatos ou histórias sobre o que fizeram e porque o fizeram. Para o autor,

Nenhum método é capaz de compreender todas as variações sutis na experiência humana contínua. Consequentemente, os pesquisadores qualitativos empregam efetivamente uma ampla variedade de métodos interpretativos interligados, sempre em busca de melhores formas de tornar mais compreensíveis os mundos da experiência que estudam. (DENZIN, 2006, p. 33)

O pesquisador qualitativo dispõe de diversos métodos para a coleta de materiais empíricos. Tais métodos vão da entrevista à observação direta, passando pela análise de artefatos, documentos e registros culturais e pelo uso de materiais visuais ou da experiência pessoal. Ele também pode empregar uma variedade de métodos diferentes de leitura e de análise das entrevistas ou dos textos culturais, incluindo as estratégias de análise do conteúdo, da narrativa e semióticas. No presente caso, foram utilizadas a análise de documentos e a entrevista em profundidade, esta última mesclada com a entrevista narrativa.

É importante lembrar que a pesquisa qualitativa não se orienta pela lógica estatística da representatividade e, portanto, da generalização (BRYMAN, 2008, p. 392). Mais que em outros formatos já legitimados no universo acadêmico (como trabalhos empíricos baseados em métodos estandardizados), a pesquisa qualitativa vê-se impelida a justificar eventuais pretensões de generalização e discutir quais as formas de controle de vieses autoconfirmatórios (CANO, 2012). O critério de representatividade na pesquisa qualitativa parte do pressuposto de que, guardadas as peculiaridades individuais, os sujeitos em seus grupos sociais (definidos conforme o tema e objetivos da pesquisa) tendem a compartilhar referenciais, marcos interpretativos da realidade, critérios de julgamento e valoração, entre outros elementos simbólicos e culturais que têm relação com suas práticas e atitudes.9 Assim, do ponto de vista empírico, se há alguma lógica de representatividade e generalização, ela está restrita aos segmentos contemplados no estudo. Dito isto, no método qualitativo o número de entrevistados ou de casos não tem regras pré-definidas e depende, em geral, da necessidade de segmentação e da saturação das informações durante o trabalho de campo. Além disso, mais que propiciar dados que possam ser generalizados para o todo, pesquisas qualitativas muitas vezes fazem o caminho oposto: servem para confrontar teorias sobre o todo a partir do identificado nas ―partes‖ (grupos sociais investigados).

Observar e elucidar relações associadas à formação de identidades coletivas e a dinâmica dessas relações no ciberespaço exige o esforço de experimentar, desenvolver e

9 Apesar da ênfase no que é compartilhado, são outputs da pesquisa qualitativa tanto o que é ―comum‖ quanto o

adequar ferramentas conceituais e metodológicas que deem conta de sua complexidade e fluidez. Considerando esse aspecto, o estudo adotou um caráter exploratório, deixando a investigação aberta à adequação das hipóteses iniciais e ao surgimento de outras durante a investigação. Do planejamento à análise, as decisões metodológicas buscaram levar em conta as especificidades do ambiente virtual ou, nos termos de Marcuschi (2004), do ―discurso eletrônico‖ – da ação e da linguagem mediadas por computador.

Embora pudesse ser interessante a análise do conteúdo das redes sociais on-line dos grupos/movimentos em questão, microblogs e sites (posts, banners, etc.), nossa proposta foi ouvir os sujeitos pesquisados de forma direta, recorrendo ao recurso qualitativo da entrevista, utilizando a internet tanto como ferramenta (meio, canal) quanto ambiente do trabalho de campo (espaço de articulação dos atores sociais). Ainda assim, a utilização da internet tanto como campo quanto ferramenta de pesquisa imprime uma feição etnográfica ao estudo, na medida em que pressupõe a imersão no universo da pesquisa e a aproximação com os sujeitos investigados (CARDOSO, 2004). Essa dimensão etnográfica (que não constitui o corpo do estudo, mas contribui para o seu enriquecimento) se deu por visitas sistemáticas às páginas das redes sociais e sites dos grupos selecionados para a pesquisa, e pelo acompanhamento do seu ―dia a dia‖ on-line. Nesse exercício, foram coletados materiais que contribuem para caracterizar as linhas centrais do discurso dos grupos/movimentos, seus interlocutores e suas redes, como posts, banners, charges e outros. Estes, porém, serão eventualmente utilizados apenas como apoio e ilustrações.