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2.4 PROCESSO DE FRAMING E ANÁLISE DE FRAMES

2.4.3 Frames, ideologia e processos discursivos

Discutindo de forma mais direta a relação entre processos de framing e processos discursivos, Snow (2004, p. 401) afirma que, além do contexto ou estoque cultural mais amplo (fronteiras locais, nacionais ou societárias), os processos de articulação e elaboração de frames podem ser facilitados ou restringidos pelos ―contextos discursivos‖ em que se

encontram. Nesse ponto, o autor introduz os conceitos de campo discursivo e oportunidades discursivas. Para entendê-los, porém, é necessário esclarecer o lugar e o conceito de ideologia na perspectiva de frames.

Voltemos por um momento a Laclau e Melucci. Como processo relacional, a formação de identidades coletivas está ligada a uma particular posição do ator no campo social – para Laclau, contingente; para Melucci, sistêmica –, carregando com ela a parcialidade, pluralidade e tensão daquela posição. Nessa perspectiva, ―frames podem ser definidos como a representação discursiva da ação coletiva organizada de acordo com a posição do ator no campo, e devem ser alocados dentro em uma teoria da ideologia‖ (Melucci, 1996, p. 348). Melucci define ideologia como ―um conjunto de frames simbólicos que atores coletivos usam para representar suas próprias ações para eles mesmos e para outros dentro de um sistema social de relações‖ (Melucci, 1996, p. 349). De forma mais ou menos articulada, ―a ideologia‖ define o próprio ator, identifica os adversários e define fins e objetivos pelos quais o movimento luta. Além disso, ela ―estabiliza um conjunto de relações entre estes elementos que servem, de um lado, para legitimar o ator, de outro, para negar qualquer identidade social do oponente‖ (Melucci, 1996, p. 349).

Quanto ao papel da ideologia, Melucci e Laclau estariam de acordo. Para ambos, a ideologia ultrapassa o conceito de falsa consciência; é mais do que mero reflexo de mecanismos ulteriores; tem a capacidade de ocultar a pluralidade de orientações e tensões que correspondem a diferentes componentes. No entanto, o pós-marxismo de Laclau o leva para longe da teoria da ideologia de Melucci. Neste, a ideologia carrega a tensão de posições de sujeito que são, em última instância, sistêmicas, ficando impressa no sujeito uma ―objetividade‖ algo sólida, enquanto Laclau insiste que essa mesma objetividade é, ela mesma, efeito de ocultamentos e suturas e, portanto, apenas ―aparentemente‖ objetiva. O papel da ideologia, em Laclau, confunde-se com o papel do mito, cujo ―trabalho‖ consiste em suturar o espaço deslocado através da constituição de um novo espaço de representação, uma nova objetividade. Assim, os sentidos fixados podem assumir o lugar de algo dado, ocultando a contingência dos sentidos hegemônicos, dando-os como essências: ―toda objetividade não é, portanto, senão um mito cristalizado‖ (LACLAU, 1993, p. 77):

[…] o sujeito, no sentido em que o entendemos neste texto, não pode ser objetivo: ele só se constitui nas bordas deslocadas da estrutura. Explorar o campo da emergência do sujeito nas sociedades contemporâneas equivale a explorar os vestígios que a contingência tem inscrito nas estruturas aparentemente objetivas das sociedades em que vivemos. (LACLAU, 1993, p. 77)

A perspectiva de Snow e Benford (2000), por sua vez, é criticada por uma relação imprecisa entre a perspectiva de frames e o conceito de ideologia. Segundo Oliver e Johnston (2000), essa relação é pouco clara e há uma tendência dos pesquisadores de usar frame e ideologia como sinônimos. Além disso, embora façam uso eventual do conceito, Snow e Benford não forneceriam uma justificativa para abandonar o termo ideologia. A despeito dessas críticas, em uma nota de rodapé, Snow e Beford pontuam:

A ideologia é geralmente retratada como um conjunto bastante amplo, coerente e relativamente durável de crenças que afeta a orientação não só na política, mas na vida cotidiana de forma mais geral. Esta concepção pressupõe se uma pessoa assina uma visão mais geral e neutra da ideologia (por exemplo, Geertz 1973) ou uma visão mais crítica em que a ideologia é vista como funcionando para sustentar estruturas de classe e relações de dominação existentes (por exemplo, Thompson 1984). Em ambos os casos, a referência é a um conjunto de crenças e valores razoavelmente penetrantes e integrados que têm considerável poder de permanência. Em contraste, os

frames de ação coletiva funcionam como amplificações inovadoras e

extensões de, ou antídotos para, ideologias existentes ou componentes delas. Consequentemente, a ideologia funciona tanto como um constrangimento quanto uma fonte (resource) em relação aos processos de framing e aos

frames de ação coletiva. (SNOW e BENFORD, 2000, p. 613)

Embora reconheçam a relevância da ideologia, os autores apresentam clara preocupação em destacar que ação dos movimentos e os frames de ação coletiva não são meras derivações de mecanismos ideológicos. A tradição que acentua o papel da ideologia na ação dos movimentos, segundo Snow (2004), deixa no vácuo o caráter da ideologia ou como ela afeta o fluxo e refluxo da atividade de movimento. Nessa linha mecanicista, a atividade do movimento social é vista como ideologicamente estruturada, os participantes como ideologicamente orientados ou subscrevendo o mesmo conjunto de crenças e ideias, e os frames de ação coletiva simplesmente derivados de uma ideologia ou estoque cultural existente. Desse mecanicismo são decorrentes alguns erros apontados pelo autor no estudo dos movimentos sociais: presumir que há neles maior coerência e integração ideológica do que muitas vezes existe; assumir maior correspondência entre ideologia e comportamento do que de fato ocorre; ver a atividade de framing relacionada ao movimento como meramente derivada da ideologia (SNOW, 2004, p. 399). Este último seria, a nosso ver, o equívoco de Melucci. Apesar do seu culturalismo e construtivismo, e embora sua visão sobre a atividade de framing seja notoriamente mais complexa, em última instância os frames são entendidos ora como sinônimo, ora como reflexo da ideologia.

Como vimos, framing é um processo contínuo em que os frames são continuamente articulados e elaborados. Tal articulação envolve a conexão e coordenação de eventos, experiências e ―vertentes de uma ou mais ideologias‖, de modo que elas se mantenham juntas de uma forma relativamente integrada e significativa. Aqui, vê-se um sentido da ideologia que se aproxima da noção de mito de Laclau, ao menos de sua função de ―sutura‖. Em outros sentidos, a ideologia é mencionada como contexto ou fonte da qual a atividade de framing bebe seus conteúdos, ou entendida de forma plural, como lentes que direcionam o olhar sobre o mundo, mascarando ou evidenciando, ofuscando ou iluminando aspectos da realidade e a forma como se alinham os interesses dos atores. Em Laclau, porém, esse ocultamento é o próprio trabalho do discurso.

Considere, por exemplo, os enquadramentos de líderes de movimentos historicamente proeminentes como Gandhi e Martin Luther King, bem como os demais participantes de base, como no caso do movimento democrático chinês de 1989. No caso de Gandhi, diz-se que seus princípios orientadores de ''satyagraha'' e ''ahimsa'', que evoluiu para o que pode ser interpretado como um masterframe mobilizador para grande parte do mundo, foram baseados em uma mistura de crenças derivadas do Hinduísmo, Budismo e Cristianismo, e seus mentores espirituais incluíam Jesus, Buda, Sócrates e sua mãe. Como observado em um esboço biográfico: "Enquanto estudava na Inglaterra para ser advogado, primeiro leu a Bíblia e o Bhagavad Gita", o que lhe deu "um chamado de clarim para a alma para empreender a batalha da justiça. Ensinou-o a renunciar aos desejos pessoais não pela retirada do mundo, mas pela devoção ao serviço de seu próximo. No Novo Testamento cristão, ele encontrou a agitação da resistência passiva nas palavras do Sermão da Montanha" (SNOW, 2004, p. 400).

A noção de ―contexto discursivo‖, apresentada por Snow (2004), acrescenta pouco à noção de framing apresentada acima. Ela se refere aos contextos mais amplos em que os processos de framing estão envolvidos e incorporados. Para os culturalistas, trata-se de ―campos discursivos‖; para os estruturalistas são ―estruturas de oportunidade discursiva‖ (SNOW, 2004, p. 401-402). Os campos dircursivos confundem-se com a própria definição do contexto político. Eles emergem ou evoluem no curso da discussão e debate sobre questões e eventos contestados e abrangem não apenas elementos culturais de relevância potencial (estruturas primárias, crenças, valores, ideologias, mitos e narrativas), mas também conjuntos atores cujos interesses estão mais ou menos alinhados com os temas e contestações e que, portanto, também atuam sobre esses o curso do framing. Esses conjuntos de atores incluem o próprio movimento social em questão, contramovimentos, os alvos da ação ou mudança, os meios de comunicação e o público em geral (potenciais aderentes, potenciais antagonistas,

espectadores) (SNOW, 2004, p. 402). O conceito de estrutura de oportunidade discursiva é ainda mais amplo, mas não muito distinto. Refere-se à avaliação de que a forma, o curso e a história dos processos de framing (entendidos como ―enquadramentos discursivos‖) são influenciados não apenas pelos eventos, cultura, e interlocutores que os constituem, mas, sobretudo, pelo contexto político em que eles ocorrem (SNOW, 2004, p. 403).

A avaliação de Diani do sucesso eleitoral do populismo da Liga do Norte na Itália em comparação com um número de grupos concorrentes na mesma região no início dos anos 90 sugere uma ligação entre diferentes configurações de estrutura de oportunidade política e diferentes

masterframes, implicando uma espécie de afinidade eletiva entre os dois.

Embora a comparação de Koopman e Statham (1999) do sucesso relativo da extrema-direita alemã em contraste com o seu equivalente italiano não indique um ajuste tão nítido entre os framings propostos e a oportunidade política, os resultados sugerem que o maior impacto da direita alemã sobre a política oficial foi em parte devido a uma estrutura de oportunidade discursiva mais propícia. De maneira similar, o estudo comparativo de Ferree et al sobre o discurso do aborto na Alemanha e nos Estados Unidos [...] mostra como as diferenças nos frames de aborto nos dois países podem ser explicadas em parte pelas diferenças em suas respectivas estruturas de oportunidade discursiva. (SNOW, 2004, p. 403)

O contexto político, portanto, é tanto arena quanto alvo dos processos de framing ou processos discursivos. O conceito de ressonância e sua relação com a credibilidade da narrativa, sua fidelidade à experiência empírica e sua coerência cultural são evidência de que esse processo não é algo estático e linear, mas contestado, negociado. Isso significa que ―os ativistas não são capazes de construir e impor qualquer versão de realidade que gostariam; em vez disso, há uma variedade de desafios enfrentados por todos aqueles que se envolvem em atividades de framing de movimento‖ (SNOW e BENFORD, 2000, p 625). Todos os atores na arena de ação coletiva engajados nessa ―obra de construção da realidade‖ estão envolvidos na política da significação. Os movimentos sociais estão situados naquilo que Habermas (1984) chamou de esfera pública. Nela estão os opositores, os espectadores, a mídia, os outros movimentos. O que a teoria do discurso salienta, porém, é que quando um movimento se identifica como um ―eu‖ e aos demais como ―os outros‖ na esfera pública, o trabalho discursivo já foi iniciado.