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2.4 PROCESSO DE FRAMING E ANÁLISE DE FRAMES

2.4.4 Críticas à análise de frames

A perspectiva de framing tem contribuído significativamente para o campo dos movimentos sociais. Para Benford (2000, p. 411) ―ela moveu o campo para além do determinismo estrutural da mobilização de recursos e modelos de oportunidade política e para longe da psicologia duvidosa de abordagens de escolha racional‖, e tem inspirado análises que consideram as dimensões ideacionais, interpretativas, construtivistas e culturais da ação coletiva. A despeito dessas contribuições, e talvez pela pluralidade de perspectivas teóricas em que ela é adotada (sobretudo a teoria da mobilização de recursos), a análise de frames foi alvo de várias críticas, oriundas de correntes como a sociologia francesa com influências pragmatistas e estudiodos da análise do discurso (ACEVEDO, 2013, p. 2). Entre as principais, podemos listar: o conceito de frame como algo acabado, estático, descritivo, monolítico, ignorando distintas camadas de framing e a disputa entre frames dentro do próprio movimento; a reificação da cultura como conjunto de crenças compartilhadas ou como um kit de ferramentas onde os ativistas buscariam sentidos que coubessem em seus objetivos; a noção de espaço público como um mercado de demandas onde os líderes atuam estrategicamente, manipulando recursos simbólicos para angariar adeptos, nichos de públicos ou o grande público; a redução do frame às estratégias de recrutamento dos ativistas; uma perspectiva elitista dos movimentos, com ênfase nos papel das lideranças sobre os demais ativistas; a secundarização dos processos de interação que dão origem aos frames (reificação dos frames); o privilégio da agência (psicologismo) numa perspectiva instrumental e utilitarista, ignorando o papel da emoção; a simplificação excessiva da dimensão ideacional dos movimentos sociais. As respostas ou problematização de algumas dessas críticas, nos parece, já foram indiretamente apresentadas nos tópicos anteriores. Há, no entanto, algumas ponderações que merecem destaque.

Em primeiro lugar, alguns autores (SNOW E BENFORD, 2000; AMPARÁN, 2006; ACEVEDO, 20013; RABADÁN e MARIÑO, 2009) afirmam ter havido uma banalização do conceito de frame. Em suas análises da literatura sobre frames, Snow e Benford apontam uma tendência geral à simplificação excessiva, que trataria frames de ação coletiva e processos de framing no singular, como se houvesse apenas uma realidade e a construção da realidade seguisse uma direção única e exclusiva. Em vez disso, para Snow e Benford, os atores envolvidos no processo de framing trazem repertórios de frames socialmente construídos para suas interações, e cada participante pode aplicar um ou mais desses frames em cada situação

específica (BENFORD, 2000, p. 418). Saliente-se, além disso, o caráter continuamente negociado dessas elaborações simbólicas, enfatizado em diferentes graus nas abordagens teóricas, mas evidentes nas perspectivas de Melucci, Snow e Benford.

A simplificação exagerada da análise de frames é apontada não apenas ao conceito, mas em relação aos enlaces teóricos e aplicações metodológicas. Segundo Amparán (2006, p. 10), ―ao partir do particular para o geral, a análise de frames como método de investigação contribui estruturando e organizando a informação para a abordagem de qualquer tópico‖. Uma das consequências disto é um conjunto disperso de pesquisas em que o framing se converte em ―um conjunto de métodos de análise do discurso, por vezes incompatíveis, unidos por uma ligação em relação à abordagem de Goffman [...] ou pior, em uma etiqueta teórica, um passaporte usado para justificar superficialmente diversas análises‖ (RABADÁN e MARIÑO, 2009, p. 4).

O autor encontra contradições entre esta noção de frame (marco) e framing (enmarcamiento) com um olhar construcionista porque, se se pensa o frame como um recurso sobre o qual determinados atores exercem o controle, não se pode sustentar que o discurso da ação coletiva é contextual, público e que emerge em um processo de mobilização e ação. Neste sentido, Steinberg observa que uma ideia construcionista da realidade social e uma ideia de atores racionais que manipulam recursos culturais é incongruente ou incompatível: Estes problemas de agência podem ser sintomáticos do fato de que as espistemologias subjacentes a um olhar construcionista e as descrições de atores racionais do discurso da ação coletiva não são fáceis de conciliar. É problemático caracterizar os processos de framing dos movimentos sociais como um exercício de construção da realidade e dos sentidos genuínos de injustiça e identidade, e ao mesmo tempo considerar que os ativistas e organizadores dos movimentos sociais manipulam e alienam estrategicamente os frames para mobilizar o consenso. Isso pode criar um excesso de voluntarismo, que adoece a compreensão do discurso como um estoque de códigos e significados controversos que impõem limites às maneiras pelas quais as pessoas entendem e representam sua vida [...]. (ACEVEDO, 2013, p. 7)

Esta questão aponta diretamente para o hibridismo da nossa opção teórico- metodológica, no que concerne à conciliação entre a perspectiva de frames, relacionista e construtivista; e a teoria pós-estruturalista de Laclau e Mouffe (1986). A nosso ver, tais perspectivas só são inconciliáveis se a noção de frames for compreendida em um sentido restrito, que os percebe como algo estático e acabado, restringe o processo de framing à racionalidade estratégica e ignora os contextos discursivos em que esses processos ocorrem. De outra forma, as dimensões da contingência, do antagonismo e da hegemonia da teoria do

discurso não só se conciliam como complexificam a análise de frames. Por fim, à construção social da realidade, cara ao construcionismo, o pós-estruturalismo acrescenta uma dialética da desconstrução e a impossibilidade de identificar limites rígidos entre significados – exceto na medida em que a rigidez dessas fronteiras é simbólica e politicamente estabelecida para preencher o vazio de tal impossibilidade. Quanto à polêmica sobre a ―manipulação‖ dos frames pelos ativistas, pensamos que a existência de uma dimensão estratégica não subsume o fato de que essas tentativas de controle (e de sutura) escapam à ação coletiva. Como veremos em nossa análise empírica, o movimento é transpassado por outros sentidos no contexto em que está inserido. A construção do significado, ao final, não é ―propriedade intelectual‖ de nenhum dos grupos na arena dos conflitos, tampouco um conteúdo reificado que age sozinho ou através de entidades coletivas em si mesmas. Os mobilizadores não são, para a análise de frames de Snow, Benford, e menos ainda se incluímos Melucci, dotados de uma racionalidade pura, esse tipo ideal que tem suscitado tantos ruídos nas análises dos movimentos sociais. Cabe salientar, ainda, que a análise de frames não tem por fim identificar, hierarquizar ou classificar os significados bons e maus, entre sentidos ―genuínos‖ ou não de justiça. Importa, sim, descobrir quais os sentidos hegemônicos, quais as cadeias equivalenciais estabelecidas, quais as diferenças que elas coadunam e à custa de quais ocultamentos se dá a visibilidade.

Algumas das críticas à análise de frames surgem, como se vê, em consequência de sua ligação estreita com a teoria da mobilização de recursos e, por conseguinte, à acusação de que a agência é abordada estritamente como racionalidade estratégica. Disso decorre outra questão: a negligência das emoções. Como Melucci indica em seus escritos, o estudo dos movimentos sociais não podem desconsiderar o papel que os fatores afetivos desempenham na participação e na mobilização. A despeito disso, Benford (2000) avalia que as emoções têm sido largamente ignoradas no estudo da ação coletiva. Segundo o autor, os adeptos da mobilização de recursos, ao se contrapor ao que entendiam como tradição coletiva de comportamento, restringiram-se a uma visão cognitivista e racionalista dos sujeitos (BENFORD, 2000, p. 419).

Também decorrente da ênfase na racionalidade estratégica (ou, no caso de Melucci, na ideologia), surge a acusação de que a análise de frames parte de uma visão elitista sobre os movimentos, privilegiando o papel de líderes ou formadores de opinião em contraposição a ativistas ou públicos acríticos. Esta crítica atinge diretamente nosso estudo, na medida em que foram entrevistados apenas líderes ou porta-vozes dos grupos/movimentos pesquisados. Como veremos, a afirmação de que os movimentos sociais recentes que atuam na internet são

caracterizados por lideranças horizontais é posta à prova quando nos debruçamos sobre o estudo desses movimentos no Brasil. Embora pudesse ser interessante ouvir os ―seguidores‖ e adeptos dos grupos em suas páginas on-line e os participantes dos eventos físicos (nas ruas) promovidos por eles, para as questões aqui colocadas os administradores das páginas, líderes ou porta-vozes precisariam necessariamente ser ouvidos (voltaremos a essa questão no capítulo sobre ativismo on-line e, evidentemente, na análise de dados). No que concerne à crítica, mais uma vez é preciso enfatizar a interação e negociação contínua que caracteriza a ideia de framing, além de enxergá-la como tentativas de sutura, de dar unidade ao social. É nesse contexto que deve ser compreendida a ―função‖ de orientação da ação dos frames ou, como gostamos de dizer, da dimensão performativa do discurso. Na medida em que o processo de framing (a prática articulatória) cria identidade, ela também pode produzir motivações para a mobilização que vão desde interesses específicos a emoções (raiva, revolta, indignação, etc.) e valores morais. Estes e outros conteúdos não podem ser ditos a priori, mas identificados em cada caso a partir de análises históricas e estudos empíricos.