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5 CORRUPÇÃO COMO INTERESSE SOCIÓLOGICO

5.5 O ENFOQUE CULTURAL

Este campo de estudos chama a atenção para as diferentes tradições, normas e padrões éticos que moldam as preferências morais dos indivíduos e seus posicionamentos acerca de papeis e instituições sociais, levando o agente público ou privado a burlar ou não as normas legais. Segundo Vannucci (2015, p. 10), o fator cultural tem sido abordado de diferentes maneiras na literatura sobre corrupção: custos morais na teoria econômica, normas

culturais em estudos comparativos, padrões profissionais ou setoriais em perspectivas construtivistas, restrições informais na teoria neoinstitucional.

A noção de ―custo moral‖ da teoria econômica é traduzida pelo autor como barreiras normativas – regras internalizadas e autoimputadas – que condicionam a decisão do ator de entrar ou não em um acordo corrupto. Tais barreiras são mais fortes conforme a identificação do agente com os valores e fins da organização pública (o bem público) e quanto mais coerentes forem essas regras em relação às dos seus círculos sociais. Quanto maior o custo moral de uma ação (sofrimento psíquico, desconforto ou culpa, sentimento de ―traição da confiança pública‖), menor a chance de o ator se envolver na prática corrupta, mesmo considerando que não será descoberto. Assim, a ideia de ―custo moral‖, que Vannucci prefere chamar de barreiras normativas ou restrições morais, revê a máxima de que a corrupção é um crime de cálculo, não de paixão. Na dinâmica das decisões, contam não apenas as restrições externas, mas fatores endógenos como considerações éticas, espírito público, civismo e ―sentido de Estado‖ entre os funcionários públicos e políticos.

A principal crítica a essa abordagem diz respeito à equiparação entre custo moral e custo material, como se o indivíduo fosse capaz de gerenciar os primeiros com a mesma racionalidade com que pesa os segundos. Ao centrar-se na racionalidade individual, a noção de custo moral negligencia a dimensão relacional e intersubjetiva da moralidade, que inclui o reconhecimento e o estigma. Para Vannuci (2015), uma ação só tem consequência moral quando o indivíduo considera as expectativas sociais dos seus grupos de referência, dentro de um quadro de comportamentos sociais valorizados ou, pelo contrário, estigmatizados. Isso significa, como dito antes, que, contra a decisão de se engajar em uma prática corrupta vogam não só as barreiras institucionais, mas também a ―moral pública‖ (o ethos que orienta o ―espírito público‖), que pode ser mais permissiva ou mais intolerante à corrupção. Além disso, faltaria à noção de custo moral esclarecer os mecanismos que podem alterar a lógica do ―cálculo moral‖ em diferentes culturas e subculturas, grupos, contextos sociais e períodos históricos, de modo a explicar diferentes respostas individuais a oportunidades semelhantes de corrupção.

Citando Pizzorno, Vannucci sublinha a importância dos ―mecanismos que permitem aos atores entrar e operar em redes de trocas corruptas, através de um processo de seleção e socialização que, além de transmitir ‗rotinas‘ e normas informais, também as molda ao longo do tempo‖ (VANNUCCI, 2015, p. 12). Disso decorre a preferência do autor pelo conceito de barreiras normativas. No âmbito da abordagem neoinstitucional, essa expressão contempla o

fato de que as preferências individuais são construídas no processo de socialização e transmissão intergeracional de normas, valores e princípios (VANNUCCI, 2015, p. 12-13). Quando um padrão normativo é internalizado e compartilhado por círculos sociais relevantes, as normas estão além de um ―cálculo‖ sobre as vantagens e desvantagens do seu cumprimento, fomentando (ou não) a ―aversão psicológica à traição da confiança pública‖. Dessa hipótese poder-se-ia depreender outra: a de que a corrupção ganha espaço em situações de frouxidão entre os vínculos sociais e condições de anomia (a partir, por exemplo, de uma crescente individualização e exaltação do privado, em detrimento do público e do coletivo). Bignotto (2008, p. 92) observa que, na tradição do republicanismo (em que é atribuída ao Estado a representação e mediação dos interesses comuns), a corrupção remete não apenas aos comportamentos desviantes de indivíduos, mas também à perda de referenciais que os levariam a agir em favor do interesse público:

Conservando a herança de Maquiavel, que via na corrupção a perda da liberdade política, e aquela de Rousseau, para quem a corrupção é a destruição da vontade soberana, é possível dizer que uma teoria republicana atual realça, em acordo com essas duas formulações, a ideia de que a corrupção é um processo que pode ser analisado a partir da destruição dos interesses públicos não apenas por atores individuais, mas também por partidos políticos e atores econômicos (BIGNOTO, 2008, p. 92).

Por outro lado, a expressão ―barreiras normativas‖ chama a atenção para a existência de normas que, em determinados contextos ou grupos, tornam a corrupção socialmente aceita. Não se trata de anomia, mas de um tipo específico de socialização e códigos de conduta que se inscrevem nas interações sociais.

A corrupção impacta, portanto, nas preferências e escolhas relacionadas à fronteira público-privado, afrouxando as barreiras morais, levando à banalização de sua prática, na medida em que o ator individual passa a utilizá-la como argumento ou justificativa interna para os seus próprios atos. Recorrendo a Hirschman, Vannucci (2015) faz menção ao impacto negativo do "mau exemplo" quando a corrupção se torna uma prática dominante, enfraquecendo os constrangimentos normativos e erodindo o senso público. Tais observações remontam a uma perspectiva cínica da política que, para Vannucci (2015) e Della Porta (1996), está associada a um fundamentalismo de mercado (―neoliberalismo amoral‖) centrado na lógica de maximização dos ganhos a todo custo, incompatível com a noção de ―público‖. Seguindo essa linha, Della Porta, ao analisar a corrupção na Itália, aponta o declínio da ideologia partidária e a ascensão do ―político de negócios‖ – para quem a política é um

comércio como outro qualquer – como fator do crescente aumento da corrupção naquele país.28

A congruência entre as normas jurídicas que regem a conduta dos agentes públicos e as normas informais que moldam a estrutura de valor dos grupos sociais - políticos, empresários, funcionários, profissionais, etc. - é, portanto, a variável-chave. A maior consistência entre eles faz com que os mecanismos de imposição de primeira instância (o sentimento internalizado de culpa, expresso por barreiras normativas) e de segunda instância (ostracismo, estigma social, etc.) sejam constrangedores. A ativação de círculos "virtuosos" ou "viciosos" [...] entre a responsabilidade estatal e social, por sua vez, influencia a força das barreiras normativas. Os conteúdos (divergentes) e o grau de institucionalização dos constrangimentos informais que regulam de fato a atividade do agente público - e os seus homólogos privados - entram em jogo. Mas as normas informais podem gerar uma estrutura de incentivos em ambos os sentidos. Eles podem apoiar regras legais contra a corrupção, bem como um conjunto alternativo de códigos de conduta não escritos e "valores" que o justifiquem e disciplinem. Longe do comportamento anômico, a corrupção emerge como endêmica, isto é, bem regulada. Este é precisamente o foco do paradigma neoinstitucional. (VANNUCCI, 2015, p. 12)