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Tal como analisou Sherry Ortner (2011), as “revoluções na teoria Antro- pológica” se deram a partir da década de 1960, quando os aspectos políti- cos e éticos da pesquisa antropológica entre as populações nativas se tor- naram de grande importância para o campo da antropologia. Esta nova

2 Dados disponíveis em: https://www.iuaes.org/history.html. Acesso em 04/11/2018. 3 Os congressos mundiais já aconteceram nos seguintes países: 1934 Londres, Reino Unido;

1938 Copenhague, Dinamarca; 1948 Bruxelas, Bélgica; 1952 Viena, Áustria; 1956 Filadélfia, EUA; 1960 Paris, França; 1964 Moscou, Rússia; 1968 Tóquio, Japão; 1973 Chicago, EUA; 1978 Delhi, Índia; 1983 Quebec e Vancouver, Canadá; 1988 Zagreb, Croácia; 1993 Cidade do Mé- xico, México; 1998 Williamsburg, EUA; 2003 Florença, Itália; 2009 Kunming, China; 2013 Manchester, Reino Unido; 2018 Florianópolis, Brasil; 2023 Bhubaneswar, Índia.

4 As comissões atuais da IUAES são: Agingand the Aged (Agingand the Life Course); Anthropology and Education; Anthropology and the Environment; Anthropology, Public Policy and Development Practice; Anthropology of HIV & Aids; Anthropology of Children, Youth and Childhood; Anthropology of Food and Nutrition; Anthropology of Mathematics; Anthropology of the MiddleEast; Anthropology of Music, Sound and Bodily Performative Practices; Anthropology of Risk and Disaster; Anthropology of Sports; Anthropology of Tourism; Anthropology of Women; Anthropology, Peace and Human Rights; Bioethics; Documentation; Enterprise Anthropology; Ethnic Relations Global Transformations and Marxian Anthropology; Human Rights; Indigenous Knowledge and Sustainable Development; Intangible Cultural Heritage; Legal Pluralism; Linguistic Anthropology; Marginalization and Global Apartheid; Medical Anthropology and Epidemiology; Migration; Museums and Cultural Heritage; Nomadic Peoples; Primatology; Theoretical Anthropology; Urban Anthropology; Urgent Anthropological Research; Visual Anthropology.

perspectiva, que é profundamente influenciada pelos projetos de simetri- zação da disciplina, esteve claramente presente nesta edição do congresso da IUAES no continente Sul-Americano.

No bojo destas “revoluções” observa-se também o movimento de reconhecimento das múltiplas antropologias produzidas no planeta, deno- minadas por Gustavo Lins Ribeiro e Arturo Escobar (2012) de antropologias mundiais. Para os autores, neste processo, surgem as antropologias do sul5,

campo que se desenvolveu a partir da década de 1990. Este movimento foi, em parte, impulsionado pela Fundação norte-americana Wenner Gren pelo financiamento de seminários internacionais e das publicações de pesquisa- doras/es financiados pela agência6. Destaca-se também a criação da rede glo-

bal de associações antropológicas, o World Council of Anthropological Asso- ciations (WCAA), criada em 2004 em reunião em Recife (Brasil) e que contou com sólido apoio financeiro da Wenner Gren para sua consolidação. Em 2018, durante o 18th IUAES World Congress, após inúmeras negociações, o WCAA passou a integrar a World Anthropological Union (WAU) junto com a IUAES.

As seguintes reflexões orientaram muitos dos debates acerca das au- toras e de suas produções, assim como foram também produto dos debates que se deram ao longo dos seminários, reuniões da equipe organizadora do

5 A área de estudo que engloba as antropologias do sul visa a uma reflexão ampliada acerca da produção do conhecimento antropológico para fora do eixo de produção do atlântico norte como forma de expansão das narrativas unívocas acerca da disciplina, de maneira a reconhecer a pluralidade da disciplina e ter uma dimensão verdadeiramente planetária de sua produção (KROTZ, 2005).

6 A Wenner Gren é uma das principais agências financiadoras de pesquisas na área de An- tropologia no planeta. Segundo o professor Gustavo Lins Ribeiro e Arturo Escobar (2012), a função de Ribeiro como consultor da Fundação Wenner Gren entre 1992 e 1995 o propor- cionou um amplo conhecimento das antropologias sendo produzidas mundialmente com seus fundos, o que o fez perceber que não havia um grande reconhecimento das antropo- logias feitas fora do eixo do Atlântico Norte. Apoiado pela então presidente da Wenner Gren, Sydel Silverman e pelo editor da revista current Anthropology, Richard Fox, deu início a um processo de articulação que somente nos anos 2000, no Simpósio da Fundação Wenner Gren para a Pesquisa Antropológica de 2003, na Itália, se consolidou e deu origem ao livro

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Congresso e perspectivas de ação política do evento. Mantendo em men- te esses diálogos sul-sul, o evento financiou diversas representantes de populações tradicionais do Brasil e de outros países para participação de mesas e realização de falas. Também proporcionou hospedagem e alimen- tação para diversas estudantes oriundas de ações afirmativas e de univer- sidades públicas brasileiras. Foram realizadas, ainda, atividades de campo em diferentes comunidades da cidade de Florianópolis que reverteram seus lucros para a própria comunidade visitada. A seguinte reflexão procura ar- ticular teoricamente essas perspectivas presentes no seminário e nos diálo- gos durante a construção do congresso.

Uma das análises que orientou as escolhas de autoras e autores no Se- minário foi a de Gustavo Lins Ribeiro e Arturo Escobar, no livro sobre as Antropologias Mundiais (2012). Para os autores, vivemos uma era pós-an- tropológica, onde não existe uma única Antropologia. Existe uma mudan- ça na posição daqueles que eram antes considerados “objetos de estudo” e entender esta mudança no campo da Antropologia levou à mudanças insti- tucionais e epistemológicas em um movimento global que envolveu a parti- cipação das mais variadas vertentes do conhecimento antropológico. Nesse sentido, propõem uma nova geopolítica do conhecimento7 que perpassaria

a disseminação do conhecimento antropológico, já que a maioria do co- nhecimento produzido na disciplina tem um locus de enunciação marcado geopoliticamente, o eixo “norte” e hegemônico da produção do conheci- mento. Esses processos envolvem as geopolíticas econômicas, hierarquias raciais e transnacionais que definem os limites da produção e circulação do conhecimento antropológico. Nesse sentido, a perspectiva das antropolo- gias mundiais busca abraçar uma diversidade epistêmica como um projeto universal, visando a um enriquecimento epistemológico do debate.

Com relação a esse debate, os processos colonizatórios assumem uma importância significativa, já que, segundo Jean Comaroff e John Comaroff,

7 Os autores chamam atenção para aspectos da produção do conhecimento antropológico em que existe uma necessidade de ação política democrática, heterogênea e transacio- nal; partindo da perspectiva de que escrevemos de um ponto de vista nacional particular e do entendimento da predominância de determinadas práticas acadêmicas que envol- vem relações de poder desigual no contexto universitário hegemônico.

em Theory From the South (2012), a condição do sujeito colonizado não foi simplesmente a de um bem necessário, mas, sim, uma presença desconfortá- vel do outro quem sempre levantou inquietações e agitou as aspirações impe- riais. As sociedades coloniais foram formações complexas e possuíam relações imprevisíveis entre colonizadores e colonizados. Muitas dessas/es autoras e autores se inserem nessa corrente de pesquisadoras e pesquisadores que en- tendem que o esclarecimento ocidental se posicionou como fonte de apren- dizado universal para o resto do globo. Para Jean Comaroff e John Comaroff (2012), o processo de constituição da Modernidade e o seu movimento de ex- pansão foram constituídos pelo processo de dominação e apagamento, e den- tro de um projeto de uma antropologia não hegemônica deve poder ser nar- rado também de suas margens, assim como de seu autoproclamado centro.

Um cenário em que existe uma reflexão acerca de uma descentraliza- ção das abordagens críticas hegemônicas (mainstream), para Homi Bhabha (1998), seria denominado de paisagem democratizada. Para a construção desta paisagem, defende a necessidade de que uma maior e mais ampla quantidade de pensadores possa ocupar espaços em um determinado con- texto de produção de conhecimento. Essa descentralização das abordagens mainstream encoraja diálogos entre diferentes vieses epistemológicos, teóricos e culturais que levantam novas questões aos envolvidos nessa ne- gociação e levam ao que o autor vai chamar de perspectivas “híbridas”8.

Essas perspectivas que surgem do diálogo e da negociação entre diferen- tes práticas teóricas e diferentes perspectivas culturais têm um valor de transformação que reside na rearticulação, ou tradução de elementos que pode dar origem a algo que produz lugares híbridos e objetivos de luta, e que desmonta a dualidade de um “verdadeiro revolucionário” versus uma “falsa concepção ideológica”. Cada negociação é um processo de tradução e transferência de sentido em que cada objetivo é construído sob o traço

8 O autor propõe um reconhecimento das diferenças culturais em contraponto à noção de uma diversidade cultural, pois a diferença abre espaço para uma enunciação da cultura que seria própria dela, ao invés de uma política de diversidade cultural em que a cultura pode acabar por se constituir como um objeto de conhecimento empírico.

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daquela perspectiva que ele rasura (1998, p. 53). E é nesse processo em que uma teoria ex-cêntrica (ex-centric) (BHABHA, 1998) pode surgir.

O trabalho de Faye Harrison (2016) sobre a produção de conhecimen- to ex-cêntrico no campo da Antropologia reflete sobre a importância de termos uma perspectiva não elitista no pensamento teórico, de atentar- mos sobre como ele e por quem ele é expresso. Pensar no lugar de fala é um aspecto importante da descolonização do pensamento antropológico. Para a autora, estamos vivenciando um momento teórico de expansão e multiplicação dos espaços onde vários modos e formas de teorizar tomam lugar e são reconhecidos como tal. Para ela, uma teoria ex-cêntrica esta- ria relacionada diretamente às intervenções do Sul-Global e a um deba- te transnacional. Pois é nesse sul global que outras vozes estão surgindo e produzindo um distanciamento da dicotomia informante/etnógrafo, e que permite às/aos antropólogas/os performar dentro de uma nova ética de pesquisa que induz a relações menos hierárquicas no contexto de pro- dução de conhecimento. A antropóloga ainda advoga um Sul global como um locus de produção teórica ex-cêntrica significativo, depositando um foco crítico principalmente nas universidades e nos esquemas associados à produção de conhecimento oficial.

Nesse sentido, a noção de posicionalidades apresentada por Ângela Figueiredo (2017) no contexto da produção de conhecimento sobre ques- tões étnico-raciais contemporâneas no Brasil parece bastante apropriada para fundamentar nossa perspectiva epistemológica. Com base nas pesqui- sas de Patricia Hill Collins (2017), ela afirma que as posicionalidades confi- guram locais privilegiados e historicamente construídos do ponto de vista daquelas/es que são parte de determinado grupo. Outra autora feminista negra brasileira, Djamila Ribeiro (2017), faz uma revisão desta categoria analítica e propõe a noção de “lugar de fala” como proposta metodológica de análise que não se esgota na experiência individual, pois é relacional.