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Durante o congresso, passamos a contar com uma pequena equipe de mo- nitoras e monitores para atuar somente nas demandas relacionadas à aces- sibilidade no Congresso. A comissão de acessibilidade precisava de um es- paço físico de referência no Congresso para ser identificada pelo público e começar a atuar. Após uma breve negociação com a secretaria geral do evento, à comissão de acessibilidade foi destinada uma mesa circular com quatro cadeiras, instaladas bem ao lado dos guichês4 para credenciamento

e retirada do material pelas pessoas brasileiras inscritas no congresso. Essa mesa funcionou como stand de atendimento da comissão de acessibilidade e ficava posicionada bem em frente ao final da longa rampa de acesso ao hall do Centro de Cultura e Eventos da UFSC, onde aconteciam os momentos mais congregadores do Congresso, como as solenidades de abertura e de encerramento, as conferências, as mesas-redondas, as apresentações ar- tísticas e os coffee breaks. O referido estande foi planejado para a recepção e atuação nas demandas das pessoas com deficiência, atendendo a diversas solicitações no Congresso, desde o auxílio à compreensão das dinâmicas do

4 Havia dois tipos de guichês para o credenciamento de participantes: um para brasilei- ros(as) e outro para estrangeiros(as).

evento à necessidade de ajuda para a locomoção de participantes com mo- bilidade reduzida.

Ao iniciar o Congresso, tínhamos uma planilha de horários do reve- zamento dos plantões de ocupação dessa mesa para o atendimento durante todo o Evento. Na véspera de abertura, em um domingo, dia 15 de julho, já percebemos a necessidade de identificarmos muito nitidamente aquela mesa como destinada à comissão de acessibilidade, pois as pessoas a usa- vampara largar material, copos usados ou simplesmente sentarem para descansar, conversarem ou até mesmo usar um notebook pessoal e teclar ali mesmo. No dia da abertura, em 16 de julho, Michele afixou uma folha impressa que identificava o objetivo da mesa. Foram feitas também identi- ficações para os banheiros acessíveis localizados nos prédios do Centro de Cultura e Eventos e do Centro de Filosofia e Ciências Humanas.

Nos momentos em que a comissão ocupou o estande, alguns inciden- tes e diálogos que travamos com pessoas de fora da comissão de acessibili- dade evidenciaram as dificuldades do provimento da acessibilidade devido às imprevisibilidades dos acontecimentos no dia a dia. Nos próximos tópi- cos, apresentaremos diversos episódios que ilustram isso.

“Dá para usar o do térreo!”: a acessibilidade física no

Congresso

O stand da comissão de acessibilidade foi responsável por demandas di- versas de acessibilidade, informação sobre os espaços e auxílio a eventuais problemas de locomoção durante todos os dias do congresso. Para nós, a presença de pessoas com significativas dificuldades de locomoção, inclu- sive as idosas, mostrou que foi a “mobilidade reduzida” a que deu a tônica da acessibilidade no Congresso. Houve relatos sobre a dificuldade de loco- moção apresentada por grande parte dos participantes do evento. De uma forma geral, a distância entre os prédios onde estavam alocadas as ativi- dades do Congresso dificultava o seu deslocamento, independentemente das pessoas terem ou não deficiência. Acreditamos que essas dificuldades

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se devem ao fato de não conhecerem o campus universitário, necessitando de orientações primárias sobre os trajetos. Diante desses episódios, moni- toras e monitores da comissão se dispunham a orientar e acompanhar estes participantes até o local de suas atividades. Também as pessoas idosas re- correram à comissão diariamente, solicitando informações sobre os espa- ços do evento, dúvidas sobre trajetos na cidade e também pediram o acom- panhamento de um integrante da monitoria nos trajetos das atividades no Congresso. Outros simplesmente optaram por sentar e ficar descansando ou esperando seus pares em uma das cadeiras que rodeavam a mesa do es- tande. Por isso, a monitoria composta por Alice, João Victor, Guadalupe e Patrick foi fundamental no atendimento aos participantes. Em um final de tarde, após o fechamento das atividades do Congresso, Alice orientou e acompanhou uma participante idosa a voltar para seu local de estadia. Guadalupe, durante os dias do Congresso, circulou pelos prédios da UFSC onde aconteciam as atividades e, assim,tirou dúvidas e auxiliou as pessoas a se locomoverem entre os espaços.

Maria5, uma senhora angolana e com dificuldades de locomoção, de-

sejava muito participar das “experiências antropológicas”, que são aquelas atividades de “saídas de campo”promovidas pela Comissão de Experiên- cias Antropológicas para várias localidades da Grande Florianópolis, com o objetivo de conhecer espaços comunitários plurais e diversos grupos so- ciais ou comunidades nativas. Essas atividades pressupõem, na maior parte das vezes, deslocamentos pouco acessíveis. Diante disso, Maria procurou a Comissão para que pudéssemos ajudá-la no processo de inscrição da ativi- dade. Desse modo, pudemos auxiliá-la no preenchimento dos formulários on-line, pontuando suas necessidades de acessibilidade no espaço físico.

Em outra ocasião, uma participante foi até o estande da Comissão em um final de tarde para demandar a necessidade por muletas,uma vez que esta havia se lesionado durante o evento. Entramos em contato com a equipe

5 À exceção dos nomes verdadeiros dos membros da comissão de acessibilidade, para os demais casos adotamos nomes fictícios.

de segurança do Centro de Eventos, que é responsável pelo empréstimo de cadeiras de rodas para uso em situações de emergência. Contudo, tan- to a UFSC quanto a empresa que alugou equipamentos para a organização do evento não têm nem disponibilizam muletas. Falamos com a equipe de atendimento médico para as urgências de saúde no Congresso e, ainda as- sim, não conseguimos.Uma das alternativas encontradas foi sugerir à parti- cipante a locação de muletas, sem deixar de ofertar apoio e auxílio no trân- sito das atividades. Apesar da nossa sensibilidade e intervenção neste caso, não é papel dessas instâncias institucionais oferecer muletas nem quaisquer outras órteses e mesmo próteses a participantes de congressos acadêmicos, por serem equipamentos pessoalizados e de uso mais“privado” que “cole- tivo”. Se uma participante é surda usuária de implante coclear e o mesmo se quebra ou estraga durante a realização de um congresso acadêmico na UFSC, não cabe à universidade emprestar-lhe um novo. Nessas condições, o empréstimo de equipamentos reconhecidamente de uso por pessoas em situação de deficiência permanente ou temporária só faz sentido em situa- ções que exigem “adaptações razoáveis”:

“Adaptação razoável” significa as modificações e os ajustesne- cessários e adequados que não acarretem ônus desproporcio- nalou indevido, quando requeridos em cada caso, a fim de as- segurarque as pessoas com deficiência possam gozar ou exercer, em igualdadede oportunidades com as demais pessoas, todos os direitoshumanos e liberdades fundamentais (BRASIL, 2008).

Ou seja, quando um determinado ambiente apresenta barreiras, construídas ou naturais, de tal modo que impeçam o pleno acesso dessas pessoas, é responsabilidade institucional executar as devidas adaptações razoáveis no local (SASSAKI, 2010).

Um dos seis ‘box’ sanitários do banheiro feminino, identificado como adaptado e localizado no primeiro andar do centro de eventos, esteve fe- chado quase todos os dias do Congresso. Uma das integrantes da Comis- são se dirigiu à secretaria do evento para questionar e a primeira resposta

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ouvida foi “Dá para usar o do térreo!”. Então, foi necessária uma fala sobre acessibilidade. Esclarecida a questão, a pessoa da secretaria ficou de falar com a administração. Mais tarde, a mesma pessoa foi vista no banheiro fe- minino falando com a funcionária da limpeza sobre o banheiro interditado e argumentado acerca de acessibilidade, o que não deixa de ser uma mani- festação sobre o aspecto pedagógico da existência e atuação de uma comis- são de acessibilidade num congresso. No dia seguinte, a mesma pessoa nos informou que, conforme a administração do local, o vaso sanitário havia se desprendido e estava interditado pelo tempo necessário à secagem do ma- terial utilizado para a fixação.

Outro incidente no mesmo estilo de “usar o do térreo!” foi relata- do por um monitor da equipe, que esteve sempre no período noturno no Centro de Eventos da UFSC, até o final da última atividade, em 20 de ju- lho de 2018. O mesmo observou que a rampa de acesso foi fechada antes que todas as pessoas tivessem ido embora, e viu um idoso descendo com dificuldades a escadaria. Novamente uma das integrantes da comissão de acessibilidade dirigiu-se ao balcão da secretaria da empresa promotora do evento. Não obstante a boa vontade e escuta, ficou mais uma vez evidente o despreparo para as demandas da acessibilidade. O primeiro argumento foi “Temos que fechar porque é muito perigoso. Ontem entrou um morador de rua aqui dentro”! (sic) O segundo foi “mas tinha bem pouca gente no fim” e à ponderação de que, pouca gente ou não, um idoso teve que enfrentar com dificuldades uma escada, a resposta foi “só se era um indiano”, pois havia sido cedida uma sala para a reunião de um grupo de antropólogos(as) da Índia. A última resposta à insistência da integrante da Comissão sobre a inadequação do fechamento da rampa foi: “mas não tem problema, é só chamar o vigia e ele abre [para quem tiver dificuldades com a escada]. Mais uma vez foi necessário explicar o que é “acessibilidade”. Finalmente, ficou acordado que, já naquela noite,fosse considerado necessário o fechamento de uma das entradas, seria fechada a da escada.

Os episódios relatados até o momento nos fazem pensar na banaliza- ção do que seja deficiência, nas dificuldades das pessoas sem deficiência em

perceberem o que implica a experiência da deficiência. Como a doença ou a morte, a deficiência também é uma forma singular e elementar de aconte- cimento que aparece na vida de todos nós. Por fazer parte do ciclo de vida, a deficiência se confunde com a velhice de todos os animais humanos e não humanos. E justamente por sermos todos e todas potencialmente pessoa com deficiência um dia, faz-se necessário discutirmos também a singulari- dade de se ser uma pessoa com deficiência.