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As pessoas com deficiência são um grupo social significativo da popu- lação brasileira. Mas falar de deficiência é considerado tabu, seja porque é preferível escamoteá-la para não ferir a nossa sensibilidade para o que é “normal”, belo e saudável, seja porque a fantasia solidarista da carida- de vê as pessoas com deficiência como sujeitos passivos ao tratá-las como “especiais”. A pessoa com deficiência é o típico “exemplo de superação”: somente porque tem deficiência e, apesar da deficiência, “se” ela consegue fazer ou se “supera” fazendo coisas que “pessoas comuns” fazem, passa a ser vista como um sujeito extraordinário.

Embora tenhamos focado nosso relato etnográfico nos aspectos inerentes à acessibilidade física, por esta ter sido a maior demanda no evento, vale mencionar algumas lacunas que merecem reflexão futura. A primeira diz respeito à necessidade de incluirmos no formulário espe- cífico sobre deficiência e acessibilidade as demandas por acessibilidade dos(das) antropólogos(as) cuidadores(as) de pessoas com deficiência. São antropólogos(as) que são pais ou mães de pessoas com deficiência e que respondem pelo cuidado de seu(sua) filho(a) com deficiência. Tivemos no evento a presença de um antropólogo que era cuidador de um adulto ca- deirante e com deficiência cognitiva. O mesmo não constava na relação de participantes que pediram acessibilidade, provavelmente porque não preencheu esse item no formulário por não ser ele uma pessoa com defi- ciência, mas sim o seu filho. Por isso, acabamos não podendo identificar suas

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necessidades por acessibilidade mesmo como pai de um adulto com deficiên- cia. A segunda questão está relacionada à “acessibilidade linguística” do even- to, em especial ao modo como foram conduzidas algumas apresentações orais, bem como a tradução do inglês para uma pessoa surda, a exemplo da primeira autora deste trabalho. Houve colegas que debateram e/ou apresentaram suas comunicações ora em português ora em inglês e, mesmo assim, se “esquece- ram” seja de traduzir oralmente do inglês para o português, seja de disponibi- lizá-las também na versão textual em inglês de uma apresentação em Power- Point, o que gerou exclusão à participação não só de Anahi nos painéis abertos com trabalhos sobre deficiência, mas também dos(das) antropólogos(as) que não entendem inglês falado. Não deixa de ser, inclusive, digno de nota que a responsável pela comissão de acessibilidade teve que abandonar um workshop porque as pessoas, entre elas colegas que a conheciam de longa data, presumi- ram que Anahi conseguia fazer leitura labial em inglês.

A trajetória de pessoas com deficiência nas universidades sempre esteve repleta de dificuldades devido àsinúmeras barreiras arquitetôni- cas6, comunicacionais e informacionais7, metodológicas e pedagógicas8,

6 Refere-se às barreiras físicas do ambiente, tais como a ausência de rampas e elevadores, banheiros adaptados e de adequações das vias de circulação. A eliminação das barreiras arquitetônicas exige a aplicação da NBR 9050,norma brasileira da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), que versa sobre a acessibilidade a edificações, mobiliário, espaços e equipamentos urbanos, apresentando, portanto, todos os requisitos técnicos para o cumprimento da acessibilidade física dos ambientes em contextos urbanos. 7 Segundo Vivarta (2003), consistem nas rupturas comunicacionais comuns, por exemplo,

nas trocas sociais entre surdos e ouvintes, nas dificuldades de comunicação de pessoas com paralisia cerebral e com autismo, dentre outros. A eliminação de barreiras comuni- cacionais e informacionais exige diferentes recursos de acessibilidade, desde a presença de intérpretes de língua de sinais para as pessoas surdas usuárias dessa forma de comu- nicação, e da tecnologia da estenotipia no caso de serem surdasoralizadas e usuárias do português como primeira língua e até a utilização de outras tecnologias assistivas, por exemplo, as tecnologias de comunicação alternativa, além da conversão de materiais impressos em tinta para formatos acessíveis a pessoas com deficiência visual, como é o caso da impressão Braille e da produção de textos digitalizados.

8 Ainda segundo Vivarta (2003), referem-se às barreiras nas formas de organização do espaço pedagógico, incluindo formas de ensino e avaliação, cabendo às professoras e

instrumentais9 e atitudinais10 presentes nos diversos espaços da vida acadê-

mica. Essas barreiras sociais são formas de discriminação contra as pessoas com deficiência que, sem as necessárias adaptações, ficam impedidas de usufruir de serviços básicos e de participar das atividades cotidianas. Isso porque a educação superior se baseia em um método clássico de transmis- são de conhecimentos em que as competências da visão, audição, cognição, mobilidade e saúde plena são tidas como requisitos básicos para o avanço em uma carreira acadêmica. Mas tais requisitos só são possíveis em corpos plenamente capazes, um ideal capacitista (MELLO, 2016)que não se mate- rializa na prática, dada a existência de outras corporalidades dissidentes, como aquelas que corporificam a experiência da deficiência. Desse modo, o engajamento de membros de uma comissão de acessibilidade em qualquer congresso acadêmico implica considerar, sobretudo, a possibilidade de fa- zer “adaptações razoáveis”nos locais do evento.

Referências

BRASIL. Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008. Aprova o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Proto- colo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Diário

Oficial da União, Brasília-DF, 10 jul. 2008, seção 1, edição 131, p. 1. Dis-

ponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/99423>. Acesso em: 17ago. 2018.

professores a atenção à diversidade na condução das atividades acadêmicas e na coor- denação das trocas sociais em salas de aula.

9 Deacordo com Vivarta (2003), consiste nas barreiras impostas pelo fato de os instru- mentos e artefatos culturais suporem um usuário ideal e abstrato, desprovido de quais- quer deficiências sensoriais, intelectuais ou de mobilidade. Sua superação passa pela adoção da noção de desenho universal e pela utilização de tecnologias assistivas. 10 São as barreiras devido às atitudes preconceituosas capacitistas das pessoas sem defici-

ência impostas às pessoas com deficiência. Nesse sentido, as barreiras atitudinais se dão por meio de preconceitos, estigmas e mitos sociais sobre as pessoas com deficiência, marcando-as de forma negativa.

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MELLO, Anahi G. Deficiência, Incapacidade e Vulnerabilidade: do capacitismo ou a preeminência capacitista e biomédica do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC.Ciência & Saúde Coletiva, v.21, n.10, p. 3265-3276, 2016.

SASSAKI, Romeu Kazumi. Adaptações razoáveis sob o crivo inclusivista – Parte 1. Revista Reação, São Paulo, ano XIV, n.75, p. 14-18, jul./ago. 2010. VIVARTA, Veet. Mídia e Deficiência. São Paulo: Andi/Fundação Banco do Brasil, 2003.