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CAPÍTULO I DO IMPÉRIO À REPÚBLICA: TRANSFORMAÇÕES

1.7 AS BASES JURÍDICO-POLÍTICAS DO NOVO REGIME

Tão logo se proclamou um governo provisório pelos atores que derrubaram o regime monárquico, começaram a emergir os contornos da nova organização do Estado nacional, agora proclamado “Estados Unidos do Brasil”. No primeiro decreto, expedido em seguida ao manifesto à nação, expunha-se a garantia aos direitos individuais, apelava-se à ordem pública e proclamava-se a República Federativa como forma de governo, falando-se também na convocação de uma Assembleia Constituinte. O início do desmonte da máquina político- administrativa imperial se dá com a dissolução das assembleias provinciais e a aceitação ou imposição de presidentes nos estados, tendo estes suas atribuições reguladas por determinações específicas (Decreto nº 7). Concentrando os poderes Executivo e Legislativo ao mesmo tempo, o novo governo dá contornos à organização judiciária com a criação da justiça federal e alterações nos códigos criminais (SILVEIRA, 1978; CALÓGERAS, 1958).

Em decretos expedidos pelo Governo Provisório nos dias 19 de novembro e 21 de dezembro, começa-se o esboço das características eleitorais do novo regime. Pelo decreto nº 6, eliminavam-se as restrições censitárias do Império tendo como efeito teórico imediato a elevação do corpo eleitoral, habilitando como eleitores aqueles em pleno gozo de seus direitos civis e políticos, com idade mínima de 21 anos, exceção feita para os analfabetos, que permaneceram excluídos de votar assim como na Lei Saraiva. O contingente eleitoral não cresce, entretanto, aos níveis de 1872, que registrava 1,1 milhão de votantes ou 11% da população da época. De acordo com o pleito nacional mais próximo, no qual foi eleito o paulista Prudente de Morais, em 1894, o percentual de participação não ultrapassou 2% da população. No caso do decreto de nº 78B, estabelecem-se eleições para os representantes dos estados que irão atuar na Assembleia Constituinte, tendo como data estabelecida a de quinze de setembro de 1890 (LESSA, 2002).

Um pouco mais tarde, em 23 de junho de 1890, sai o regulamento Alvim, também conhecido como “lei do arrocho”, que institui novamente uma prática dos tempos do Império. A nova lei determinou o retorno das mesas eleitorais, presentes em cada distrito e compostas por cinco membros, escolhidos pelo presidente da Câmara Municipal. Tinham a atribuição de apurar os votos e registrar os resultados em ata respectiva, descartando-se as cédulas, e remeter o resultado para a contagem nas capitais dos estados, baseando-se nas cópias autênticas das atas. Com a dissolução das municipalidades pelo quinze de novembro, ficaram os governadores (presidentes) dos estados com o poder de nomear intendentes para as respectivas mesas e também demiti-los à sua vontade, resultando aí a fácil imposição das listas de interesse das oligarquias e a reprodução do situacionismo no poder (CARONE, 1976).

Medidas de apoio aos imigrantes no Brasil, como a Grande Naturalização e a instituição da naturalização tácita, com a incorporação de vasto contingente estrangeiro à cidadania formal, vão atender a demandas dos republicanos paulistas, compreensivelmente preocupados com o problema da mão-de-obra em seu estado. Por meio da separação entre a Igreja e o Estado, ato de marcada influência positivista, o Estado instituiu o casamento civil e a secularização dos cemitérios.

Coube também ao Governo Provisório a elaboração de um projeto de Constituição a ser apresentado perante a futura Assembleia Constituinte. A tarefa ficou a cargo de uma comissão composta por Joaquim Saldanha Marinho (presidente), Américo Braziliense (vice- presidente), Antonio Luiz dos Santos Werneck, Rangel Pestana e José Autonio Pedreira de

Magalhães. Apresentado o projeto ao Governo Provisório, tanto o marechal Deodoro da Fonseca quanto o Ministro da Fazenda Rui Barbosa fazem suas modificações, acrescentando, modificando ou suprimindo artigos. Na apreciação do projeto, diferentes concepções das atribuições legislativas e executivas já se confrontavam. Enquanto o marechal queria fortalecer a União contra o que considerava excessivo federalismo, Rui Barbosa e os integrantes da comissão que redigiu o anteprojeto, pugnavam por maior liberdade aos estados; variavam, contudo, na intensidade da dispersão autonomista: uns queriam um federalismo com predomínio da União, e outros podem mesmo ser considerados ultrafederalistas (CARONE, 1976).

Publicada em 23 de julho de 1890, a Constituição ainda não definitiva sofre muitas críticas na imprensa, com algumas opiniões considerando-a autoritária. Abertos os trabalhos da Constituinte, instalada precisamente um ano após a proclamação do novo regime, uma comissão de 21 membros, representando cada deputado-membro um estado da federação, escolhida pelo Congresso, analisa o texto apresentado pelo governo. Após três rodadas de discussão e adição de várias emendas, finalmente, a 24 de fevereiro de 1891, sai o texto final.

Pela análise da lei fundamental de 1891, dividem-se em cinco os títulos da mesma. Nas Disposições Preliminares, a organização federal institui o presidencialismo, transforma as antigas províncias imperiais em estados federados e o Município Neutro – antiga sede da Corte - em Distrito Federal. Estabelece como princípio a não intervenção federal sem que fundamentada em caso de invasão estrangeira, defesa da forma republicana de governo, restabelecimento da ordem, garantia de execução das leis federais e calamidade pública – sinalizando aí larga margem de autonomia política e tributária aos estados. Enquanto a União fica com as receitas dos impostos de importação, taxas de selo, correios, bancos de emissão e alfândegas, aos estados ficam reservados os impostos de exportação, sobre imóveis rurais e urbanos, sobre transmissão de propriedade, e também sobre indústria e profissões.

A organização do Poder Legislativo compreende uma Câmara e um Senado trabalhando separados, quando não se deliberar o contrário. A primeira compõe-se de representantes de todos os estados e do Distrito Federal, em proporção de um membro a cada setenta mil habitantes, com número mínimo de quatro representantes por unidade da federação. No Senado, três senadores representam cada Estado e o Distrito Federal. A competência da Câmara envolve criação de leis sobre impostos, fixação das forças de terra e mar, discussão dos projetos do Executivo e declaração de procedência para com acusações relativas ao Presidente da República. Já no caso do Senado, compete julgar o Presidente e os

demais funcionários federais. O Congresso, como um todo, orça a receita, fixa as despesas da União e autoriza o Executivo a fazer empréstimos. Também arbitra sobre os limites entre os estados e autoriza a guerra. É capacitado a legislar sobre direito de natureza civil, criminal, comercial e processual, assim como conceder anistia.

No caso da seção sobre o Poder Executivo, fundamentam-se os limites à ação das pessoas do presidente, do vice-presidente e dos ministros do Estado. Com o presidencialismo estabelecido no texto de 1891, o chefe do poder Executivo, maior de 35 anos e brasileiro nato, cujo mandado duraria quatro anos sem direito à reeleição, teria competência para sancionar as leis e resoluções do Congresso, nomear e exonerar ministros, designar o comandante das forças armadas, declarar a guerra e assinar a paz, convocar o Congresso em forma extraordinária e nomear os membros integrantes do Supremo Tribunal Federal. Como resultado de processo desfavorável ao presidente, no caso do mesmo atentar contra a segurança interna ou contra o texto constitucional, ficava estabelecido seu impedimento e a substituição por seu vice.

Já o Poder Judiciário era encabeçado pelo Supremo Tribunal Federal, sediado no Distrito Federal, e composto de quinze juízes, que poderiam ser comuns ou vitalícios. A competência do STF incluia o julgamento de Presidentes e ministros de Estado, assim como a resolução e a revisão de sentenças. Aos juízes e tribunais federais espalhados em regiões do país, competia processarem e julgarem os crimes políticos, as ações contra o Estado e as disputas entre Estados estrangeiros e cidadãos brasileiros.

Fixadas as atribuições de funcionamento do Estado brasileiro, a delimitação de competência dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, o aspecto que se sobressai, é a ampla liberdade às unidades federativas. Tudo não expressa ou implicitamente proibido pela Constituição Federal seria atribuição dos estados. Assim, ficavam as unidades da federação com a maior parte dos poderes. Com direito à redação de Constituições e leis próprias, os estados deteriam as terras devolutas e as minas, podendo celebrar acordos entre si e outros ajustes sem caráter político. Também poderiam contrair empréstimos no exterior, decretar impostos de exportação, ter corpos militares próprios, além de códigos eleitorais e judiciários específicos. Não é exagero afirmar que os estados detinham importância acentuada na Primeira República, sobretudo se colocarmos em perspectiva seu controle sobre as municipalidades. Na Constituição Federal, a menção às circunscrições locais fora propositalmente vaga. Segundo o artigo 68, os Estados “organisar-se-hão de forma que fique

assegurada a autonomia dos municípios, em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse” (LEGISLAÇÃO, 1896, p. 28).

A concessão de grande autonomia aos estados foi, por sua vez, uma reação à esmagadora hipertrofia do centro gozada no Império. Não surpreendentemente, enquanto o Governo Provisório tentava impor seu projeto de Constituição, com o reforço da União em certos casos, as bancadas da Constituinte – algumas delas já contrariadas com a imposição de presidentes situacionistas nos estados, especialmente as de Minas Gerais, São Paulo e Bahia - referendavam o federalismo. Em matéria tributária, a opção representou a consolidação da liderança dos grandes estados que viviam da atividade exportadora, deixando os menos expressivos economicamente às voltas com a penúria fiscal, ao mesmo tempo em que suas pouco representativas bancadas parlamentares – proporcionais a suas populações – não conseguiam chamar para si os ouvidos da Câmara (SILVEIRA, 1978).

Concomitantemente ao trabalho da Constituinte, no qual se desenrolavam os primeiros atritos entre o Governo Provisório e a oposição parlamentar, elaboravam-se nos estados as bases de suas respectivas constituições. Sem uma deliberação ainda definitiva da carta federal, as unidades da federação terminaram por basear seus textos constitucionais em princípios oriundos não dos debates da Assembleia Constituinte, mas do projeto legal do Governo Provisório. Embora tenham entrado no regime constitucional de fato a partir de 24 de fevereiro de 1891, os direitos estaduais já começavam a ser elaborados nos primeiros meses de 1890.

Foram soberanos desde a elaboração do seu direito publico, com offensa manifesta dos princípios cardeaes da federação, burlando-se assim o ideal da unidade do direito, tão francamente proclamada pela Constituição Federal. De mais importância do que o Congresso Constituinte, como factor do direito estadoal, foi o Governo Provisório, cujo projecto de constituição não deixou de exercer sua influencia nos projectos de constituições estadoaes. (FREIRE, 1898, p.7)

Sintomas de um funcionamento anômalo na Constituinte – tendo em vista o referencial histórico da homônima estadunidense, modelo influente na carta brasileira de 1891 – não só deixou-se de lado uma revisão constitucional dos textos estaduais como fora desigual a representação das unidades federativas, seguindo o desequilíbrio político semelhante já vivido pelas províncias imperiais. Num duplo caráter de representação, formado por deputados e senadores de cada estado, a Constituinte não conferia oportunidades igualitárias de influência no novo regime. Embora o número de senadores fosse similar para cada um dos membros da

federação, assim não se procedia com as bancadas parlamentares. No último caso, a desigualdade de representantes colocou as menores unidades federativas em desvantagem frente aos representantes dos estados politicamente influentes e/ou economicamente desenvolvidos. A ampla autonomia votada na Constituição, dada às antigas províncias, resultou num federalismo desigual, no qual o poder central, sob o comando dos estados mais fortes, deixava pairar sua ameaça de intervenção política e/ou armada na vida dos mais fracos. Não foi por acaso apontado o viés geográfico das mais poderosas oligarquias. Os grupos estaduais de São Paulo e Minas Gerais situam-se definitivamente no comando político da Primeira República, sendo o Rio Grande do Sul um membro neste escalão, potencialmente contestador e desagregador da ordem instituída pelos dois primeiros. Pernambuco, Bahia e o Rio de Janeiro seriam estados intermediários, ou de segunda grandeza, como apontou Barbosa Lima Sobrinho. O restante das unidades federativas seriam acomodadas num terceiro escalão, sem poder de barganha política e gravitando em torno de estados mais influentes (VISCARDI, 2002). Conceituações à parte, era o tamanho das forças policiais estaduais que definia o real grau de autonomia dos governadores, se podiam ou não fazer frente aos contingentes estacionados da força federal. Como arma de persuasão política, a força pública protegia o estado da ingerência federal e avalizava o Poder Executivo estadual.

1.8 EXECUTIVO VERSUS LEGISLATIVO: CENTRALIZAÇÃO VERSUS