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OS MILITARES NO COMANDO POLÍTICO E A ORGANIZAÇÃO OLIGÁRQUICA

CAPÍTULO I DO IMPÉRIO À REPÚBLICA: TRANSFORMAÇÕES

1.6 OS MILITARES NO COMANDO POLÍTICO E A ORGANIZAÇÃO OLIGÁRQUICA

No alvorecer da República, com Deodoro no comando, a situação era inteiramente nova para o grupo militar. Imbuídos do sentimento gestado nos anos anteriores, o qual fora configurando uma missão do Exército em protagonizar uma República pura, moralizando-se a política, os militares vivem uma situação inédita de hiperpolitização. Com as ascensões de Deodoro e Floriano, os primeiros anos do regime republicano se traduziram num desejo de perpetuação do poder pelas lideranças fardadas, tentando-se afastar da política os “casacas” das oligarquias civis (LESSA, 2002).

O comportamento dos militares na administração do novo regime conteve uma dose de instabilidade, na medida em que também fora alimentado pelas circunstâncias. Careciam os governos de Deodoro da Fonseca e de Floriano Peixoto (1889-1894) de rotinas institucionais, assim mantendo um “absurdo padrão de instabilidade auto-sustentada” (IDEM, p.32). A cada novo procedimento ou ação, em busca de maior governabilidade, gerava-se maior anarquia e conflitos administrativos. Com a saída do imperador, vários grupos disputavam maior influência no cenário político, e sua acomodação não se fez sem disputas com o Centro. A inabilidade do Governo Provisório para lidar com os desejos de remanejamento dos quadros políticos da antiga ordem aprofundou as crises de relacionamento dos estados com a União. Mesmo o marechal Floriano, que contou com o apoio de vastos setores do Exército, do funcionalismo público, da classe política e dos governos estaduais, não governou sem conceder agrados, dada a crise que enfrentava na Capital Federal, com o cerco da Marinha, e no Sul, com guerra civil (a chamada Revolução Federalista). No Exército, número significativo de promoções acompanhou os oficiais florianistas mais radicais. No serviço público, a extensão do empreguismo atendeu à demanda de partidários civis. Nos estados, parte substancial dos cargos executivos foram cedidos a florianistas. De fato, se o Exército, desde muito inclinado a condenar as práticas corruptas das oligarquias civis, não conseguiu criar uma cultura administrativa e dar maior consolidação às instituições do país no início do novo regime, foi responsável, de uma forma ou de outra, por reduzir à discrição a atuação dos políticos civis que carregavam para a República os vícios do Império. “Para as forças do

latifúndio, o período em que os elementos militares permaneceram no poder, e particularmente o período florianista, foi de revezes e de ameaças” (SODRÉ, 2010, p. 227).

O desprezo nutrido pelos militares contra as oligarquias civis passava por uma insatisfação diante da corrupção eleitoral, sua reprodução no poder e as práticas desonestas de instrumentalização do poder público, cujo alcance envolvia desde pequenos povoados aos próprios ministros do Império. No novo cenário político, as máquinas estaduais mantiveram seu caráter de domínio sobre as municipalidades, passando, no plano político, a intermediar as relações destas com o Governo Federal, num sistema de concessão de benesses em troca do apoio eleitoral, no que se atribui a uma relação de clientelismo.

No caso específico da atuação do poder privado local, derivado e sustentado a partir da estrutura da propriedade latifundiária, que envolvia toda uma população de rincões afastados do alcance do poder público, Victor Nunes Leal (1976) chamou-a de coronelismo. Este modelo teórico de organização social teria sido exercido, segundo o autor, na faixa de tempo que se inicia na República e tem seu fim a partir de 1930, tendo como protagonista o coronel, que utilizava seu poder, geralmente alastrado em nível municipal, como barganha política para pleitear favores e benesses dos grupos que controlavam a máquina estadual. Exercia seu domínio sobre uma população isolada em uma estrutura econômica e social que permitia uma relação de dependência e compromissos com o latifúndio. O voto individual tornava-se uma mercadoria, controlada por um processo de intimidação eleitoral, e negociada em um apoio recíproco entre coronel e a situação política. O coronelismo representou, antes de tudo, uma manobra de sobrevivência dos privilégios de mando e influência da classe latifundiária.

A submissão do município foi expediente muito útil para garantir a preponderância da situação estadual em seus entendimentos com os chefes locais. Sem receita suficiente, atadas as mãos por processos variados de tutela, cerceadas por vezes na composição do seu próprio governo, as comunas só podiam realizar qualquer coisa de proveitoso, quando tivessem o amparo do alto. Não é, pois, de estranhar que o “coronelismo” seja um sistema político essencialmente governista (LEAL, 1976, p.254).

O poder do coronel, já explicada sua rede de compromissos, não era, ao nível municipal, exercido sempre de forma inconteste. Haveria de ser ocasionalmente desafiado ou em vias de ter sua atuação substituída por um rival. O mesmo procurava se aliar a outros pequenos coronéis, líderes de distritos ou mesmo relacionando-se com personalidades locais, geralmente de profissões mais esclarecidas e urbanas como médicos, advogados, padres,

funcionários públicos ou comerciantes, dispondo, sob seu comando, de seus serviços e recursos. Caso precisasse, sua guarda pessoal converter-se-ia numa milícia temporária, mobilizada em situações de confronto armado, seja em escaramuças contra rivais seja em conflitos com forças estaduais.

Acima do coronel estava o oligarca, um coronel sui generis ou um representante do mesmo, que travava relações de cunho clientelístico com o primeiro. O oligarca se manteria pela liderança, pelo autoritarismo e pelos favores que era capaz de conceder a seus aliados. Seu sucesso dependia de suas concessões, que não procediam somente dos seus bens pessoais, mas também, em muitos casos, das rendas e poder do Estado para uma política individual (CARONE, 1978). Essa forma de relacionamento configurava-se, segundo José Murilo de Carvalho (1997), entre atores políticos, e com frequência envolvia a concessão de empregos públicos e benefícios fiscais, enlistados como barganha por apoio, tendo como elemento central o voto. Como se tratava de uma relação bilateral, pressupunha-se até certo ponto, a caduquice dessas relações de interesse, com a conseqüente substituição de uma das partes. Isso acontecia na medida em que os chefes políticos locais perdiam a capacidade de controlar os votos da população, deixando de ser parceiros estratégicos para o governo, que então passaria a tratar diretamente com os eleitores, transferindo para estes a relação clientelística.

As oligarquias tinham como características serem grupos impermeáveis, onde ressaltava-se a lealdade para com o chefe, os companheiros e o próprio partido, com baixa aceitação de elementos externos, intolerância que geralmente descambava em oposição armada e lutas radicais pelo poder. O empreguismo de familiares e amigos termina por levar a uma decorrente parcialidade da atuação dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

Uma vez no poder, o governo deveria servir ao partido, emprestando-lhe legitimidade para encobrir formas de coerção exercida por critérios pessoais. Juízes, funcionários públicos e deputados tinham sua atuação amarrada à concordância com a situação política.

A precariedade das garantias da magistratura e do ministério público (ou sua ausência) e a livre disponibilidade do aparelho policial sempre desempenharam a este respeito saliente papel, de manifesta influência no falseamento do voto, e esta prática – atenuada, é certo – ainda subsiste. A utilização do dinheiro, dos serviços e dos cargos públicos, como processo usual de ação partidária, também se tem revelado de grande eficácia na realização dos mesmos objetivos (LEAL, 1976, p.254)

Quando a situação se tornava seriamente polarizada, com a insurgência de oligarquias rivais, o assassínio político e a destruição de propriedades tornavam-se expedientes usuais.

Esta característica se encontrou, principalmente, em estados menos desenvolvidos economicamente, como Ceará e Pernambuco. No caso dos estados fortes do eixo Sul e Sudeste, sobretudo São Paulo e Minas Gerais, os conflitos eram amortecidos pelo mecanismo do partido dominante (CARONE, 1978).

Da mesma forma que podiam quebrar o trato com coronéis decadentes, os governadores estaduais, uma vez indispostos com número significativo de potentados locais, dificilmente sustentavam-se no cargo. Casos de duplicatas de assembleias estaduais, de bancadas federais e até mesmo de governadores eram comuns em situações de crise política local, que podiam preparar o caminho para a intervenção do governo federal, confirmando a natureza sistêmica do coronelismo (CARVALHO, 1997). Nesse sentido, rebeliões de coronéis também poderiam ser incentivadas pela Capital Federal para criar dificuldades nas situações estaduais e favorecer a oposição local.

De fato, a natureza do sistema político nacional, inspirado no liberalismo oligárquico – direitos de liberdade individual e exclusão das massas na política - não se desgastará em definitivo senão a partir de 1930. Na primeira década republicana, no entanto, a presença do estamento militar será um obstáculo ao desenvolvimento pleno das relações de natureza clientelística, embora tais relações tenham tido presença notável já nos primórdios do novo regime.

Motivados pela perda de prestígio social, pelo desejo de afirmação profissional e o desprezo por políticos civis, que reputavam ineficientes e corruptos, os militares, liderados pelo Exército, saltaram em direção à decadente cena política do Império. Sua oficialidade, composta, na tropa, de maioria decorrente das camadas médias, tenderia, como se imaginou, a não se mostrar simpática ao sistema excludente predominante no Brasil nos tempos de D.Pedro II. Não lograram, no entanto, reformar o sistema no sentido proposto a partir da atuação do soldado-cidadão. O positivismo não se converteu em ideologia política de ampla aceitação, ficando sua forma mais livre restrita à mocidade formada na Escola Militar, que não foi capaz de deter o avanço oligárquico. Os integrantes das camadas médias, sobretudo os egressos do ensino superior, viam na ocupação de cargos públicos e melhores oportunidades de emprego, um vantajoso status social, obtido a partir das vagas nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, por intermédio da situação política. O civilismo dos grupos oligárquicos desempenhou também importante papel no sentido de afastar ideologicamente o exército das camadas médias. Por fim, os militares terminaram não sendo capazes de oferecer uma alternativa política a fim de estimular o crescimento do setor terciário urbano e da

industrialização, para se opor ao papel predominante do latifúndio. A atuação militar, apesar de ter empregado recursos extra-sistêmicos, isto é, a violência por meio das constantes intervenções, “não nos deve fazer concluir que os movimentos miilitares da Primeira República perseguiam objetivos extra-sistêmicos e anti-oligárquicos”, dada a “ausência de objetivos próprios, distintos das metas políticas oligárquicas” (SAES, 1971, p.90)

Assim, às elites rurais restava aguardar a amenização daquele impulso inicial que tinha compelido o grupo militar à destruição do regime imperial e à conquista do Poder, para criar a oportunidade de uma volta do sistema político às suas mãos. Já na Assembléia Constituinte, instaurada logo após o golpe, as elites rurais impuseram com facilidade os seus pontos de vista: a primeira Constituição republicana (1891) obedecia a um modêlo federalista de tipo americano, que concedia grande autonomia econômica e política aos governos estaduais (e, portanto, aos grupos dominantes regionais). Isto se deve ao fato de que os deputados mais ligados ao grupo militar não tinham um projeto sólido de organização política a contrapor àquele inspirado pelo pensamento oligárquico (IDEM, p.94)

O resultado do fracasso político dos militares ficaria mais visível a partir da implementação, no governo Campo Sales (1898-1902), do pacto entre o governo federal e os estados, conhecido como “política dos governadores”, que representaria o ápice da alternativa oligárquica na organização do poder na Primeira República.