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CAPÍTULO I DO IMPÉRIO À REPÚBLICA: TRANSFORMAÇÕES

1.5 O ENVOLVIMENTO DOS MILITARES NA POLÍTICA

Assim como as transformações no campo econômico e social, com a progressiva modernização agroexportadora e o declínio do regime escravista, começam a mudar a face do Império a partir da década de 1850, há também modificações na composição interna do Exército que influem no posicionamento da corporação frente ao velho regime. A força estava, então, bastante enfraquecida até a regência de Araújo Lima (1837), quando este traz de volta vários oficiais para a ativa. Em seis de setembro de 1850, uma lei torna mais criteriosa a promoção de oficiais, editada pelo Ministro da Guerra e militar de carreira Manoel Felizardo de Souza e Mello. O estudo de John Schulz (1994) constatou que já havia no Exército, a partir

da metade do século XIX, um protesto isolado de oficiais subalternos que, oriundos das camadas médias urbanas, não deixavam de perceber os valores do reformismo. Pediam a abolição da escravatura, a proteção da indústria, a expansão do comércio com investimentos em ferrovias e portos, eleições livres e melhores condições de vida para a corporação e suas famílias. O regulamento de 1850, nesse sentido, veio para alterar um quadro em que membros da instituição, sendo parentes ou apoiados por poderosas famílias que desfrutassem de ligações políticas importantes, ascendiam a altos cargos apenas pela sua condição social.

Os novos critérios de promoção passaram a exigir tempo de serviço ou mérito, com metade das vagas de oficiais a serem satisfeitas por cada um desses critérios. Na prática, ascender na carreira fardada poderia significar uma espera de oito a dez anos, incentivando-se, inclusive, a formação superior como critério de desempate. O Exército, assim, fechava-se mais em si próprio e, aos poucos, transformar-se-ia numa força mais profissionalizada e racional, deixando de privilegiar exclusivamente os filhos da elite. Este processo vai assinalar modificações na composição social da corporação até o fim do Império, com a consequente redução dos oriundos de famílias abastadas no generalato, o reforço na padronização da carreira e a menor participação dos militares nos negócios do Parlamento nos últimos anos da monarquia, especialmente na década de 1880 (SCHULZ, 1994).

Paralelamente, o crescimento econômico experimentado ao longo da década de 1850 abriu oportunidades profissionais mais atraentes para os nascidos em boas condições econômicas. A emergência das faculdades de Direito no Recife e em São Paulo formou uma onda de bacharéis que ocupou a burocracia administrativa e cargos políticos, enquanto um oficial subalterno, formado na Escola Militar, permanecia com os mesmos rendimentos durante tempo considerável de sua carreira. Aos civis influentes não era necessário o penar da espera e o esforço do merecimento já que, com baixa idade, eram capazes de ocupar cargos de grande importância como magistrados e administradores, graças ao impulso recebido em suas carreiras pelos contatos familiares.

Os bem instruídos “bacharéis de farda”, provenientes da pequena burguesia rural e urbana, obtinham formação superior, de nível equiparável à da elite civil – embora sem o

status da mesma - tendo como enfoque o tecnicismo, a matemática e a perícia nas armas.

Diferiam, nesse sentido, daquela concentrada no Direito, direcionada à formação de juristas, advogados, deputados, senadores, diplomatas e dos mais altos administradores das instituições do Estado. Os jovens de segmento social mais baixo encontraram na Escola Militar a alternativa para a continuidade nos estudos, visto que esta não cobrava anuidade e

ainda pagava um pequeno soldo aos alunos. A formação técnica foi, a partir de 1850, combinando-se à ideologia positivista e dando aos alunos uma perspectiva filosófica necessária para que se articulassem intelectualmente em oposição à elite civil (CARVALHO, 1981).

Além das mudanças provocadas pela imposição das promoções por mérito e tempo de serviço aos oficiais, a Guerra do Paraguai (1864-70), maior conflito militar da história brasileira, é outro fator que mudou a face do Exército. Já tendo sido repelida a invasão guarani em território brasileiro, inicia-se a desgastante campanha em solo inimigo. As tensões geradas em torno do ministério liberal e o comando das forças armadas brasileiras, relativamente à administração de provisões e linhas de abastecimento, levarão finalmente ao desmantelamento do gabinete Zacarias de Goes e Vasconcelos, em 1868, por decisão do imperador, que preferiu preservar Caxias no comando militar. O trauma produzido pelo lento andamento das operações bélicas redundava numa impressão de desânimo e pessimismo da tropa, como relatado pelo engenheiro militar Benjamin Constant. Este, que se juntara à frente em dois de julho de 1866, se mostrara contrariado à retratação do conflito feita nos jornais da Corte, onde se ignorava o estado real das coisas (HOLANDA, 1972).

O decorrer do conflito no Paraguai modificou o Exército, reforçando não só seu contingente, mas também, pelas privações enfrentadas na campanha, sua percepção sobre as contradições da sociedade imperial. Ao presenciarem membros de famílias abastadas escapando do recrutamento militar ao oferecerem escravos em seu lugar – 7.979 pretos foram libertados dessa forma – ou outros tipos de compensações e subornos, além do precário abastecimento de suprimentos, como alimentação e serviços médicos, não havia por onde os militares esconderem sua insatisfação. Antes disso, o abolicionismo já encontrara boa guarida na instituição, que confirmou seu apoio a essa causa nos anos seguintes (SCHULZ, 1994).

Ao fim da guerra, o Exército aumentado, consciente de seu valor nos serviços prestados ao país, tem outra concepção relativa ao seu lugar social. Preocupação partilhada tanto pelos oficiais graduados e pelos veteranos da instituição – os chamados tarimbeiros– quanto pela mocidade de origens mais humildes – os bacharéis de farda, cujo desejo por uma boa educação era mais forte que a paixão pela profissão bélica - o engrandecimento do Exército era visto como meta comum, uma compensação de seu status inferior no civilismo9 do Império. Antes disso, a instituição poderia fazer mais do que ser uma observadora imparcial, e não precisava obedecer passivamente, sem questionar os desmandos da

9 Política ou visão predominante no Império, com ênfase no parlamentarismo e na desvalorização do exército

autoridade civil. O grande número de oficiais inativos, agora com mais tempo para tomar partido na política, contrariavam-se com o contínuo enxugamento do Exército, não só no contingente, com o fim das promoções rápidas, mas também na menor concessão de verbas e no fim do pagamento de salários em ouro. Até 1889, metade dos generais haveriam de ascender na corporação por mérito ou tempo de serviço, donde se conclui que a diretriz adotada em 1850, que profissionalizara a força armada, forneceu lideranças de classe para o quinze de novembro (HAHNER, 1968; SCHULZ, 1994).

O descontentamento dos oficiais apresentou-se como grande oportunidade para políticos civis, e os partidos Liberal e Conservador – e depois o Republicano - não perderam tempo em aliciar e cercar de adulações as figuras de maior prestígio do Exército, apoiando suas reivindicações contra a situação política adversa, logo após o fim da guerra.

Desde esse momento, começamos a observar que os maiorais e os capitães dos dois grandes partidos imperiais entram a voltar-se muito insistentemente para as nossas Forças Armadas, a lisonjeá-las, a cortejá-las, parecendo todos tomados de uma súbita paixão pela carranca severa da Minerva dos quartéis (VIANA, 2002, p.114)

Nos extratos mais jovens e na oficialidade subalterna, a propagação da ideologia positivista entre os alunos da Escola Militar, na qual se destaca o trabalho do professor de matemática Benjamim Constant, forneceu aos militares uma visão de que o Exército tinha uma missão a cumprir, de regenerar e proteger os destinos da nação. A interpretação da doutrina de Auguste Comte por Benjamin Constant e seus alunos coadunava-se com a variante proposta por Émile Littré, embora Constant tenha rejeitado os aspectos religiosos do positivismo e enfatizado suas características políticas e morais. Os jovens oficiais não estudaram o positivismo intensamente, não se filiando, portanto a nenhum centro da doutrina no país. Sua absorção filosófica limitou-se a sublinhar aspectos autoritários, com a acepção de uma ditadura republicana capaz de proporcionar ordem e progresso, com a incorporação do proletariado – e que, a princípio, não estava destinada a ser conduzida por forças militares, pressupondo o respeito às liberdades civis. Nada mais antagônico com o que ocorreria no Brasil posteriormente, com a concentração do poder nos Marechais e os frequentes estados de sítio na Primeira República. No julgamento severo da historiadora norte-americana June Hahner, as doutrinas dos positivistas franceses foram “pobremente assimiladas, e o resultado era, algumas vezes, um positivismo simplório, repleto de pensamentos indigestos” (1975, p.88). Deficiente ou não, a absorção dos princípios filosóficos positivistas, possivelmente

orientada por uma necessidade pragmática, tendo em vista as especificidades nacionais, por grande parte dos oficiais saídos da Escola Militar, ajudou a impulsionar a corporação para um desejo de progresso, uma crença na República e, mais do que nunca, pela ênfase moralista da doutrina, a converter seu já tradicional antagonismo às corruptas elites civis numa repugnância política às práticas destas últimas. A doutrina comteana, nesse sentido, serviu- lhes de aditivo a sua coesão e propósitos.

A partir de 1879, torna-se evidente que o descontentamento da classe militar extrapola já o âmbito profissional, inaugurando-se aí uma série de incidentes desgastantes com os ministérios durante toda a década de 1880. A “Questão Militar” no fim do Império não é mais que uma soma de pequenos incidentes que ajudaram a distanciar a força armada da autoridade civil, firmando sua colisão com os ministérios subsequentes. As contendas têm natureza política e demonstram que a corporação já não queria acatar ordens, no sentido de tolher o que acreditava ser seu direito de expressão. As derrotas do governo, que recuou em suas reivindicações ou ofereceu branda resposta, longe de contentar as lideranças militares, incentivaram-nas à ação. Se, em 1879, elas conseguiram impedir a redução no número de tropas e cortes em algumas posições do Exército e da Marinha, em 1883 se opunham na imprensa à criação de um fundo de segurança para as forças armadas, que seria alimentado por contribuições obrigatórias. No ano seguinte, recebiam calorosamente na Escola Militar líderes abolicionistas, o que terminou por criar um incidente disciplinar que retirou do posto o comandante da instituição. Em 1886, dois incidentes maiores agitaram o Exército em sua “honra”. Aparentes irregularidades na administração de seu regimento fizeram com que o Coronel Ernesto Augusto da Cunha Matos entrasse em controvérsia com um deputado civil na Câmara. O caso transbordou para a imprensa e, na troca de insultos, envolveu-se o nome do então Ministro da Guerra. A punição do Coronel terminou por aglutinar soldados em solidariedade ao mesmo. Ainda no mesmo ano, outro incidente de cunho pessoal, desta vez envolvendo o tenente-coronel Antônio de Sena Madureira, que publicara artigos na imprensa, em polêmica com um senador que o acusara de indisciplina. O militar recebeu advertências do Ministro da Guerra, o que levou o impulsivo Deodoro da Fonseca a liderar seus colegas gaúchos numa reunião de oficiais na Corte, em fevereiro de 1887. Exército e Marinha votaram moções de desconfiança, e Deodoro enviou duas cartas ao Imperador, expressando a dignidade ofendida dos militares e a inconstitucionalidade dos regulamentos de 1859 e 1878 que amordaçavam a publicação de suas opiniões, utilizando-se de tom ameaçador. Pronunciamentos do Visconde de Pelotas no Senado, falando na arbitrariedade dos atos da

administração e até mesmo em revolução, provocaram uma união entre liberais e conservadores na busca de uma solução pacífica, já temendo a ameaça que pairava sobre as próprias instituições (HAHNER, 1975).

A fundação do Clube Militar, em 1887, seria consequência da vitória do segmento fardado em sua busca por expressão pública. O lugar iria servir de apoio às reivindicações militares assim como propiciar às suas lideranças mais intimamente envolvidas em sua organização, um espaço de projeção que seria utilizado até os primeiros anos da República. Em sua primeira reunião, o anterior comandante de armas do Rio Grande do Sul, Deodoro da Fonseca, foi aclamado presidente, depositando-se nele as aspirações dos militares. No ano seguinte, um incidente envolvendo um oficial superior da Marinha, preso no Rio de Janeiro, levou ao conflito entre fuzileiros navais e a força de polícia. O resultado, mais uma vez, fortaleceu a posição dos militares, pois o ministro exonerou o chefe de polícia e, momentos depois, demitiu-se. Era o fim do gabinete Cotegipe, antepenúltimo do Império.

Até a proclamação da República, pode-se dizer que o interesse das figuras de proa das forças armadas, sobretudo do Exército, apesar da energia demonstrada em assegurar garantias e privilégios para a corporação, não era por fim à ordem vigente. Os oficiais mais antigos em serviço, geralmente, se posicionavam a favor do imperador. Os tarimbeiros preocupavam-se mais com a posição social do Exército, não partilhando o entusiasmo dos cadetes da Escola Militar e dos oficiais subalternos – os bacharéis de farda, no intento revolucionário. Respectivamente, Deodoro da Fonseca e Benjamin Constant representavam cada um desses grupos e, na medida em que o primeiro reforçava o sentido da hierarquia e do espírito de corporação, o outro pregava o engajamento do militar no progresso da sociedade, como um soldado-cidadão. A doutrina positivista, entendida de forma ortodoxa, conduziria ao fim dos exércitos em favor dos civis, atingindo um dado estágio de progresso e união das massas. Nesse sentido, a ambiguidade da teoria se revela no seu uso histórico pelo Exército: para trazer o progresso, a instituição se vê na necessidade de se fortalecer, e, uma vez ampliado seu espectro político, conservar sua posição, permanecer no poder, o que vai de encontro ao reformismo proposto pelos escalões inferiores (CARVALHO, 2005).

Como agente do progresso, o Exército assim motivava seu impulso interventor no regime político. Em conluio com lideranças republicanas civis, como Quintino Bocaiuva, o marechal Deodoro da Fonseca, convencido às pressas para juntar-se ao movimento, marchou com a tropa para o Campo de Santana no dia 15 de novembro e depôs o ministério Ouro Preto e a família real. Ali proclamaram a República e estabeleceram um governo provisório. Era o

início de um curto, mas intenso período de domínio militar, marcado pelo atendimento aos interesses de corporação, e o apego dos militares à vida política, finalmente acessível aos mesmos.