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As cláusulas abusivas e a ofensa aos princípios fundamentais dos contratos

2.3 As cláusulas abusivas nos contratos padronizados e de adesão

2.3.2 As cláusulas abusivas e a ofensa aos princípios fundamentais dos contratos

A delimitação da fronteira entre o uso e o abuso da liberdade contratual é uma das tarefas mais complexas da teoria do Direito Contratual. Os limites estão espalhados no ordenamento, inclusive como conseqüência da subordinação da liberdade contratual à legalidade constitucional, e por isso não se encontram apenas no Direito dos Contratos. O problema é que a doutrina sequer leva às últimas conseqüências os próprios

parâmetros que os princípios gerais dos contratos estabelecem para o controle do comportamento dos contratantes e da substância do contrato.

O abuso na contratação, de modo restrito, ocorre quando se dá o uso da liberdade contratual de forma excessiva e desproporcional ao do afetado, em ofensa ao princípio da autonomia privada da contraparte; ou quando há o desvio de outras finalidades delineadas, em ofensa ao princípio da justiça (ou do equilíbrio) contratual, e/ou ao princípio da boa-fé, podendo dar-se mediante omissão ou ato comissivo, independentemente da vontade do agente. Esse sentido se coaduna com a doutrina que designa a ocorrência do abuso de direito quando se faz, de um dado direito, uso excessivo e desproporcional ao do afetado, ou quando se lhe dá uso indevido ou em desacordo com a sua função social294. De qualquer modo ultrapassam-se os limites dentro dos quais o direito pode ser exercido, ferindo ostensivamente a destinação do direito e o espírito da instituição. Porém é mister verificar o pano de fundo dessa idéia.

O abuso do direito só é possível num sistema de direitos subjetivos “relativos”295, no sentido de que o âmbito de uma determinada liberdade subjetiva de ação nasce delimitado, intrinsecamente, ou é passível de restrição no caso concreto, por determinados princípios fundamentais reconhecidos, implícita ou explicitamente, pelo direito objetivo. Compreende-se que seja assim quando se percebe que há um nexo interno entre o direito subjetivo e o direito objetivo, formado pela co-origem. A associação de cidadãos no Estado se dá pelo reconhecimento intersubjetivo de direitos iguais para todos, e a partir daí os direitos subjetivos são reclamáveis juridicamente296.

294 Vale lembrar que a função social dos contratos engloba não só a submissão da liberdade contratual aos

“valores maiores da sociedade, supracontratuais”, como também àqueles do âmbito “estritamente contratual (ou

intracontratual). Significa que as partes estão adstritas a cooperarem, para que, na realização dos seus interesses,

sejam respeitados os recíprocos interesses da outra (ou das outras) e ainda para que, transcendendo a esfera dos interesses das partes intervenientes, não sejam afetados valores maiores da sociedade. No mais ainda, é mister destacar que, para ambas as hipóteses, “a sanção para o desrespeito pela função social há de ser procurada no âmbito do instituto do abuso de direito” (NORONHA, 2002, 190-192). No texto, optamos por destacar os critérios que podem ser encontrados nos princípios da boa-fé e da justiça contratual para aferir a ofensa à função social, na dimensão dos valores intracontratuais que ela visa assegurar, mas sabendo que a função social não se resume a esses critérios, pois é corolário de princípios constitucionais como o da função social da propriedade, o da solidariedade ou outro, conforme se verá adiante no capítulo 4.

295 Segundo Everaldo da Cunha Luna, “a relatividade dos direitos subjetivos origina o abuso de direito” (LUNA,

Everaldo da Cunha. Abuso de Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1959. p. 42).

296

Segundo Habermas, “os direitos subjetivos apóiam-se no reconhecimento recíproco de sujeitos do direito que cooperam” (HABERMAS, 1997, v. 1, p. 120). Dessa maneira, o “reconhecimento recíproco é constitutivo para uma ordem jurídica, da qual é possível extrair direitos subjetivos reclamáveis juridicamente. Nesse sentido, os direitos subjetivos são co-originários com o direito objetivo; pois esse resulta dos direitos que os sujeitos se atribuem reciprocamente” (HABERMAS, 1997, v. 1, p. 121). Adiante assinala: “Todavia, o republicanismo vem ao encontro desse conceito de direito, uma vez que valoriza tanto a integridade do indivíduo e de suas liberdades subjetivas, como a integridade da sociedade na qual os particulares podem reconhecer-se, ao mesmo tempo, como indivíduos e como membros”. Para tanto, “a autorização do direito privado para a persecução de fins privados, livremente escolhidos, obriga simultaneamente a manutenção dos limites do agir estratégico, no interesse simétrico de todos” (HABERMAS, 1997, v. 1, p. 335-337). Assim, Luiz Edson Fachin tem razão ao

Assim, entende-se que, no seu nascedouro, não há uma relação de subordinação do direito subjetivo ao objetivo, o que evita menosprezar a autonomia privada, que é fundamental para o reconhecimento intersubjetivo na formação do direito legítimo. Mas, na medida em que, no uso de sua autonomia privada, os sujeitos jurídicos se reconhecem mutuamente em seu papel de destinatários de leis, erigindo destarte um status que lhes possibilita a pretensão de obter direitos e de fazê-los valer reciprocamente; e, no uso de sua autonomia

política, criam o direito legítimo para compatibilizar os direitos de cada um com os iguais direitos de todos, só é

possível compreender a maior amplitude possível de iguais liberdades de ação subjetivas dentro desse âmbito de compatibilidade estabelecido297.

A partir desse consenso mútuo, o poder do Estado é criado para assumir o monopólio da coação, de acordo com o direito legítimo. Incumbe-lhe o dever de manter a distribuição eqüitativa das liberdades subjetivas de ação reconhecidas (para que os indivíduos possam efetivar livremente o reconhecimento intersubjetivo de direitos — fazer contratos, por exemplo) e assegurar que o seu exercício seja compatível com os iguais direitos

de todos. Ou seja, cabe ao Estado garantir que o uso de uma liberdade subjetiva esteja de acordo com as

finalidades programadas no Direito reconhecido (para “a manutenção dos limites do agir estratégico, no interesse simétrico de todos”). Aqueles que, ao utilizarem uma liberdade subjetiva de ação, saírem dessas direções, projetadas legitimamente para todos os integrantes do Estado, cometem abuso de direito e deverão ser corrigidos. Desse modo, no âmbito da contratação, o exercício da liberdade contratual não é absoluto298, no sentido de que cada um possa fazer dela o que quiser, no limite que lhe puder imprimir, de acordo com o seu poder econômico, técnico, jurídico, etc299. Desde sua origem como direito, fruto do reconhecimento

afirmar: “Salientam-se aspectos que dão lugar aos limites da autonomia privada, como conseqüência da supremacia dos interesses sociais. Nesse sentido, basta que a lei contenha a previsão da autonomia contratual para que essa possa ser considerada como ‘naturalmente’ limitada por aqueles interesses” (FACHIN, 2000, p. 315).

297 Cf. HABERMAS, 1997, v. 1, p. 159-160. Noutra visão, conforme concebe Luigi Ferrajoli, “aqueles atos nos

quais se desenvolve minha autonomia privada, produzem sempre efeitos jurídicos obrigatórios, para meu eu/ou para os outros” (FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías: la ley del más débil. 2. ed. Madrid: Editora Trotta, 2001b. p. 103). Por isso, o autor prefere caracterizar distintamente direitos (primários) de liberdade e os direitos (secundários) de autonomia, e afirma: “Os direitos (secundários) de autonomia, sejam direitos civis (ou de autonomia privada) ou direitos políticos (ou de autonomia política), enquanto poderes cujo exercício produzem efeitos sobre as genéricas liberdades negativas e positivas, estão por outro lado destinados a entrar em conflito em caso de que não sejam juridicamente limitados e disciplinados” (FERRAJOLI, 2001a, p. 307-308).

298 Kelsen já havia destacado: “Na verdade, ninguém pode conceder-se direitos a si próprio, pois o direito de um

apenas existe sob o pressuposto do dever de outro, e uma tal conexão jurídica, de acordo com a ordem jurídica objetiva, apenas pode constituir-se, no domínio do direito privado, em regra, através da manifestação concordante da vontade de dois indivíduos. E isto também somente na medida em que o contrato é assumido pelo Direito objetivo como fator criador de Direito, de tal forma que a regulamentação jurídica, em última análise, resulta precisamente desse Direito objetivo e não do sujeito jurídico que lhe está subordinado. Sendo assim, também no direito privado não existe qualquer autonomia plena” (KELSEN, 2000, p. 190).

299 Ensina Paulo Dourado de Gusmão: “O direito, como meio de estabelecer o equilíbrio histórico dos interesses,

intersubjetivo originário, a liberdade contratual nasce conectada a satisfazer, em um só ato: os interesses individuais (mas que dizem respeito a ambos os contratantes, por isso exige reconhecimento recíproco da autonomia privada), a função social, o equilíbrio contratual, a boa-fé. Daí em diante, a contratação privada terá que se desenvolver coerentemente com esse projeto originário. A autonomia privada contratual terá que estar sempre submissa a esses limites de múltiplas facetas originariamente reconhecidos por todos os envolvidos, e implícita ou explicitamente estabelecidos no Direito objetivo.

Por seu turno, o Direito estabelece tais parâmetros gerais (e internos) à liberdade contratual300, às vezes mais detalhadamente, como ocorre na narrativa das cláusulas abusivas no CDC, justamente para permitir que sejam atingidas aquelas diretrizes iniciais301. O estabelecimento de um regime de controle de cláusulas abusivas tem como objetivo promover a igualdade através da lei, para que entre as partes de um contrato haja o

reconhecimento intersubjetivo de direitos e não simplesmente a validade das cláusulas pela força da facticidade.

O regime de nulidade visa a assegurar que apenas são válidas as cláusulas que conseguirem sustentar-se em motivos legítimos.

Nessa perspectiva, nem sempre se autoriza o Estado a realizar, a priori302, uma fiscalização do

cumprimento àqueles requisitos exigidos pelo Direito; em princípio, deixa-se às pessoas a tarefa de se entenderem sobre a melhor forma de conciliar seus interesses, na expectativa de que haja uma realização coerente do projeto fixado pela organização social para a liberdade, a ordem, a solidariedade, a justiça, etc. Mas, por outro lado, por não subestimar as possibilidades de imposição dos mais fortes, e por reconhecer que a facticidade impera sobre a legitimidade das cláusulas, o Direito reserva ao Estado o poder de verificação, a sacrificar os interesses supremos da coletividade”. Entre os vários modos de explicar a relação entre direito subjetivo e direito objetivo, segundo o autor, o homem, em sociedade, ao satisfazer os seus interesses, não pode prejudicar os da comunidade (cf. GUSMÃO, Paulo Dourado de. Abuso do direito. Revista Forense. Rio de Janeiro, n. 118, p. 359-371, ago. 1948. p. 361).

300 A idéia de liberdade positiva deriva diretamente da Constituição e serve para todo o âmbito do Direito

Privado (cf. CASADO, 2000, p. 20 e 24).

301 Como afirma Márcio Mello Casado: “A Constituição de um Estado deve estar preocupada, também, em criar

situações que contribuam para o seu fim maior”. Nesse sentido, a inconformidade com a realidade recebida conduz à tentativa de coibir as cláusulas abusivas, em busca de uma verdadeira igualdade através da lei, com o objetivo de atingir as diretrizes iniciais, cujo objeto principal é a promoção da justiça social, especificamente favorecendo os vulneráveis (cf. CASADO, 2000, p. 23).

302 Em contextos em que há maior suspeita de imposição do mais forte, o regime jurídico brasileiro vem abrindo

caminhos cada vez maiores para um controle administrativo preventivo das estipulações contratuais; porém essa forma, louvável, tem recebido críticas, principalmente por acusações de que representa um excessivo intervencionismo do Estado nas relações privadas e por que, além de sua criação e funcionamento acarretarem despesas públicas, acabam por emperrar os negócios (cf. HEERDT, 1993, p. 87). Importante ressaltar que, mesmo havendo controle a priori, isso não impede que uma cláusula aprovada pelo Poder Público venha a ser rejeitada posteriormente pela jurisprudência majoritária dos tribunais (idem, p. 94). Para um estudo dos sistemas de controle das cláusulas abusivas nas relações de consumo, cf. NORONHA, 2002, p. 354-366; MARQUES, 1998, p. 548-573; GALDINO, 2001, p. 139-150; LEOPOLDINO DA FONSECA, 1998, p. 193-215; e

posteriori, do conteúdo contratual consolidado, em benefício daqueles que se sentirem prejudicados303. As cláusulas que se revelarem problemáticas só serão reconhecidas como válidas pelo juiz quando puderem ser redimidas através de razões ou argumentos plausíveis, de acordo com o Direito vigente.

Outrossim, perante o Estado, não vale mais a velha máxima do “pacta sunt servanda”. Há apenas uma “relatividade” da força vinculativa das cláusulas contratuais (em especial nos contratos padronizados e de adesão), enquanto não se verifique concretamente - e posteriormente ao consenso contratual - o cumprimento de tripla perspectiva: a) de ter se mantido coerente a distribuição eqüitativa de liberdade subjetiva de ação no momento da fixação das cláusulas (coerência da autonomia privada com a igualdade de oportunidades ou justiça formal); b) de ter havido a utilização da liberdade contratual dentro da função social (art. 421 do C.C.), isto é, de acordo com os parâmetros e finalidades sociais a que se destina, de acordo com o Direito na sua totalidade; e c) no plano intracontratual, de terem sido atendidos, em especial, os princípios do equilíbrio contratual e da boa-fé.

Essas três perspectivas assinaladas, quando, inversamente, não tenham sido cumpridas por qualquer razão, levantam suspeitas e fundamentos suficientes para permitirem às pessoas que se sentirem prejudicadas numa determinada relação contratual, ou aos legalmente legitimados, recorrerem ao Estado, para que este, através do Judiciário, realize um juízo de validade do contrato, de tal modo que se examine não apenas o processo de formação e de manifestação da vontade geradora do vínculo contratual, mas igualmente se verifique o efetivo resultado produzido pelo acordo de vontades, através de uma análise objetiva do conteúdo do contrato avençado. Ou seja, para que o fórum legítimo de controle verifique o ato aparentemente jurídico, mas que pode ter sido levado a efeito sem a devida regularidade, ocasionando um resultado tido como antijurídico e, sendo assim, necessite ser recolocado dentro dos parâmetros estabelecidos pelos princípios304.

No primeiro aspecto, compreende-se que é indicativo do abuso na contratação, o “uso excessivo e desproporcional ao do afetado”, quando aquele que utiliza a autonomia privada contratual atenta contra a autonomia privada da contraparte, isto é, sem reconhecer a igualdade de oportunidade à outra parte, reduzindo drasticamente a liberdade contratual desta a um mínimo. Sem respeito à liberdade da contraparte não há

BONATTO, Cláudio. Código de Defesa do Consumidor: cláusulas abusivas nas relações contratuais de consumo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 107-133.

303 Cf. art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, que dispõe: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário

lesão ou ameaça a direito”. Assim, segundo Efing, “sentindo-se uma das partes contratantes lesada no processo de formação, celebração ou cumprimento do contrato firmado, tem o direito constitucional garantido de obter do Poder Judiciário a apreciação de seu problema” (EFING, 2002, v. 1, p. 14). No âmbito do Direito do Consumidor, ainda, abre-se maior possibilidade de controle judicial, com o alargamento dos legitimados a propor ação, inclusive permitindo a ação civil pública (cf. HEERDT, 1993, p. 87).

304 Um exemplo é a nulidade das cláusulas desproporcionais. Entre as bases legais cf. art. 184 do C.C., art. 6º, V,

igualdade de poder negocial, que é condição para firmar acordo. Disso só pode resultar um pseudo-acordo305. Esse desrespeito à igualdade de oportunidades, para fixar os termos contratuais, deverá servir para quebrar a presunção de equilíbrio das cláusulas estipuladas.

De outro lado, no segundo aspecto, a inclinação ao abuso na contratação se revela, quando aquele que utiliza a autonomia privada contratual não atende à função social, aos parâmetros e finalidades sociais vinculados a este princípio306. Por fim, caracteriza-se efetivamente a cláusula abusiva, quando ocorre o atentado contra o equilíbrio contratual e/ou a boa-fé. Esse assunto precisa ser estudado melhor a seguir.

b) Os princípios caracterizadores das cláusulas abusivas

No tópico anterior vimos como surge a noção de abuso na contratação. Agora importa, para a perfeita caracterização das cláusulas abusivas, examinar em que sentido os princípios contribuem para estabelecer limites ao direito de determinar o conteúdo contratual.

A integridade do princípio da autonomia privada impõe idêntica liberdade para ambos os contratantes: a universalização efetiva do igual direito à liberdade contratual. Porque um princípio só existe quando é válido igualmente para todos. Será que haverá, nessa exigência, alguma noção de limite que permita facilitar o controle das cláusulas abusivas? Ora, o uso excessivo da liberdade contratual por uma das partes pode ofender diretamente a autonomia privada da contraparte e impossibilitar o reconhecimento intersubjetivo de direitos entre os envolvidos na contratação. A efetividade do princípio da autonomia privada exige a limitação dos privilégios incompatíveis com a distribuição igual de liberdades subjetivas. Em outras palavras, requer a

305

Para Habermas: “Um ajuste segundo norma entre interesses particulares, é chamado um acordo, se ocorrer sob condições de equilíbrio de poder entre as partes envolvidas”. No entanto, é próprio da concepção liberal a pressuposição de equilíbrio de poder entre pessoas privadas, o que torna desnecessário que os acordos sobre os “interesses não generalizáveis” ocorram efetivamente entre as partes envolvidas. Na verdade, trata-se de pseudo-

acordos como forma de legitimação do exercício do poder dos mais fortes (cf. HABERMAS, 1999, p. 141 et

seq.).

306 Essa concepção, mesmo com outra interpretação, não destoa da doutrina que define: “Trata-se o abuso de

direito de exercício inadmissível de direito subjetivo, ante o excesso (imoderação) ou a irregularidade (descumprimento da função social do Direito) cometida pelo titular, prejudicial a outrem” (LISBOA, 1997a, p. 218).

efetivação coerente de um princípio básico de atuação do Estado de Direito e Social: a distribuição eqüitativa

das liberdades subjetivas de ação307.

Essa consideração do princípio da autonomia privada, com igual conteúdo para os contratantes, não eliminará os critérios que contribuem para identificar as cláusulas abusivas. Entretanto, poderá ajudar a esclarecer hipóteses em que se presume a ofensa ao princípio do equilíbrio (na dimensão substancial objetiva) ou ao princípio da boa-fé308. Assim, auxilia na sustentação de um regime de nulidade das cláusulas abusivas nos casos em que esteja presente a situação de subordinação ou sujeição de uma das partes; bem assim quando não há qualquer possibilidade de reconhecimento, pelo predisponente, das reivindicações legítimas do aderente309. Em tais hipóteses, pelo menos, deverá estar quebrada a presunção de equilíbrio contratual substantivo310.

Outrossim, são situações em que são desrespeitados os elementos que fazem parte de um núcleo constitutivo da liberdade contratual da parte fraca e impedem o reconhecimento intersubjetivo de direitos e obrigações contratuais. Então, cumpre garantir aos mais fracos o status de independente e igual e não de

307 Segundo Habermas: “O que parece ser uma limitação constitui apenas a outra face da implantação de

liberdades de ação subjetivas iguais para todos; pois a autonomia privada, no sentido desse direito universal à liberdade, implica um direito universal à igualdade, ou seja, mais precisamente, o direito ao tratamento igual conforme as normas que garantem a igualdade do conteúdo do direito. Se uma das partes sofrer, de fato, restrições com relação ao status quo ante, não se trata de restrições normativas derivadas do princípio da liberdade jurídica, e sim da limitação dos privilégios incompatíveis com a distribuição igual de liberdades subjetivas, exigida por esse princípio” (HABERMAS, 1997, v. 2, p. 138).

308 Será importante verificar, por exemplo, se o exercício da liberdade contratual de um titular prejudicou a outra

parte por ofensa à sua própria autonomia privada (ou a liberdade contratual) enquanto direito de igual conteúdo. Outrossim, tal verificação toma um caminho de complementaridade recíproca com a busca da efetividade da justiça no processo de contratação. Por isso, o abuso está intimamente relacionado com o princípio da justiça contratual (justiça formal). É nesse sentido também que se pode falar de equilíbrio entre as partes (equivalência subjetiva ou de poder negocial), diferentemente do equilíbrio substancial no contrato.

309

Como reconhece Mônica Y. Bierwagen, “visto sob a ótica individual das partes, o contrato representa a satisfação de interesses pessoais que se viabiliza pelo encontro de vontades nele manifestadas”. E continua: “No entanto, para que os contratantes encontrem, efetivamente, a satisfação plena de seus interesses, é imprescindível que tenham a liberdade de escolher com quem contratar, o que contratar, debater suas condições, decidir como se dará a execução, enfim, pressupõe plena liberdade e igualdade entre si, para que o contrato represente um ato de consenso, de transigência mútua”. E remata: “Quando entre os contratantes ocorre o desequilíbrio desses pressupostos (liberdade e igualdade), não há mais que falar em consenso, mas em imposição da vontade de uma parte à outra, e o contrato, que deveria representar a satisfação de um interesse para a que está em situação inferior, passa a ser apenas o atendimento de uma necessidade irrecusável” (BIERWAGEN, 2002, p. 41).

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