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Conceito e espécies de lacunas na teoria geral do direito

3.2 Alguns fundamentos de hermenêutica jurídica

3.2.3 Conceito e espécies de lacunas na teoria geral do direito

O termo “lacuna” está diretamente ligado a um caráter incompleto. Nesse sentido, segundo Larenz, falar que a lei contém lacunas, significa aceitar que aspira, em certa medida, regular qualquer caso, isto é, a

completude480. Como diz Bobbio, “falta a completude, e então trata-se de preencher uma lacuna”, porque “o caso de lacuna” “é um caso em que há menos normas do que deveria haver”, “onde o dever do intérprete é, [...] acrescentar aquilo que falta”481.

Assim, define Noronha: “Temos uma lacuna quando se conclui que a hipótese concreta não está tratada na norma, por que não cabe no seu sentido literal possível, mas, não obstante, a sua regulamentação deveria constar da lei em causa”482. Portanto, trata-se da “falta duma disposição que regule especialmente certa matéria ou caso”, como diz Ferrara483. É a própria ordem jurídica, como tal, que exige a regra que falta484.

pelo próprio sistema. Assim, o controle do processo decisório encontra princípios de balizamento da aplicação” (FERRAZ JUNIOR, 2001, p. 313).

480 Cf. LARENZ, 1997, p. 526.

481 Cf. BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Cláudio Cicco e Maria celesse C. J.

Santos. Brasília: Ed. da UNB, 1994. p. 115-117.

482 Cf. NORONHA, 1988, p. 139. 483 Cf. FERRARA, 1978, p. 156.

Definida desse modo, a expressão “lacuna” restringe-se a um determinado sentido. Insuficiências que não se podem suprir a partir do próprio sistema jurídico são encontradas em muito poucas hipóteses, uma vez que o próprio sistema jurídico oferece mecanismos para completar-se. É sabido que a completude da ordem jurídica resulta de que os casos não previstos recaem sobre outras normas de remissão, predispostas para a sua regulamentação pelo poder criativo do juiz (art. 4º da LICC)485.

Além disso, a análise do conceito de lacuna implica também, entre outras questões, que a incompletude seja avaliada não só tendo como alvo verificar se a regulação é materialmente exaustiva e, nesse sentido, “completa”, mas sobretudo se é materialmente adequada486. Uma legislação pode ser, à primeira vista, exaustiva, quando observada sem uma análise teleológica e principiológica. Quando, porém, for avaliada em comparação com o seu próprio conjunto ou com o sistema jurídico, não será possível concluir a mesma coisa, porque é materialmente inadequada. A questão de saber se num determinado caso existe ou não uma lacuna, exige um juízo de valor e, portanto, pressupõe a atividade de pensamento teleológico487. Na realização dessa tarefa, recebe especial relevo o papel desempenhado pelos argumentos de princípios jurídicos e pelos argumentos de colocação de fins, na prática da decisão judicial.

Larenz considera que existem dois tipos de lacunas bem definidos: lacunas da lei (que podem distinguir-se em duas espécies, lacunas normativas e lacunas de regulação) e lacunas do direito488. Há uma lacuna da lei quando uma norma particular não pode ser aplicada sem que se lhe acrescente uma nova disposição não contida expressamente nela. Por tratar-se de norma jurídica particular incompleta, se designa “lacuna

484 Essa idéia de falta pode sugerir que “uma lacuna é sempre um menos no todo”, entretanto, “a lacuna pode ser

um mais, indesejável, não satisfatório”, completa Ferraz Junior (cf. FERRAZ JUNIOR, 2001, p. 217).

485 Lembra Norberto Bobbio, que “onde age o poder criativo daquele que deve aplicar as normas do sistema, o

sistema está sempre, em sentido próprio, completo, porque em cada circunstância é completável e, portanto, o problema da completude ou incompletude nem se apresenta” (BOBBIO, 1994, p. 145). Atualmente compreende- se que, mesmo no espaço de liberdades negativas, no sentido de não intervenção do Estado, pode haver limites

imanentes no ordenamento, que podem ser constatados por interpretação, evitando-se o abuso e o prejuízo dos

outros (cf. ANDRADE, José Carlos Vieira. Os direitos fundamentais na constituição portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1987. p. 215-216; cf. BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e

controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 1996. p.

167).

486 Cf. LARENZ, 1997, p. 532.

487 Nessa linha, resumindo o pensamento de Binder e Heck, Larenz afirma que “a ocorrência de uma ‘lacuna’

não significa que não seja possível decidir com fundamento na lei (mediante subsunção lógico-formal), mas sim e só que a decisão por essa via possível não é ‘apropriada’, quer dizer, não é teleologicamente passível de fundamentação” (LARENZ, 1997, p. 145).

488 Fernando Noronha chega a uma conclusão semelhante: “falar em lacunas da lei, ou mesmo de outras normas,

não é a mesma coisa que falar em lacunas do sistema jurídico. As lacunas de normas são suscetíveis de atividade integrativa, que se faz recorrendo à analogia; as lacunas do sistema só são colmatadas através da construção de Direito novo, ainda que essa seja feita por via jurisprudencial. Só há lacuna da lei, verdadeira e própria, quando se trate de hipótese de imperfeição da lei, que vá contra o plano geral dessa; por outras palavras, há lacuna quando a lei tiver ficado ‘incompleta’, não obstante fosse seu objetivo regular na totalidade uma dada situação” (NORONHA, 1988, p. 82).

normativa”. Outra espécie de lacuna da lei ocorre quando uma determinada regulação, em seu conjunto, não contém nenhuma regra para uma certa questão que, segundo o seu plano e intenções subjacentes, precisa de uma regulação. Nesse caso, não há conseqüências jurídicas para uma dada situação fática. Tais lacunas são denominadas “lacunas de regulação”489.

Segundo Larenz, uma “lacuna” da lei significa a falta de uma regra determinada, na qual, segundo a “intenção reguladora subjacente” ou o “contexto global da lei”, era de se esperar uma regulação também dos casos não regulados. É o fim da regulação que requer o preenchimento dessa lacuna e o caminho para isso indicam-no as regras respectivas da lei para os casos nela regulados. Assim, a investigação para saber se há ou não uma lacuna da lei deverá ser realizada a partir do ponto de vista da própria lei, da “intenção reguladora que lhe serve de base”, dos “fins com ela prosseguidos” e do “plano legislativo”490.

Os critérios são importantes para aferir a existência de lacunas, pois, de acordo com a pauta de valoração utilizada para a constatação da imperfeição da lei, é possível concluir que há uma falha da lei na perspectiva da política legislativa, e, nesse caso, não se poderia afirmar que há uma lacuna da lei. Se a pauta de valoração utilizada para a constatação da imperfeição da lei não for a intenção reguladora e a teleologia imanente à própria lei, mas uma pauta crítica baseada em razões político-econômicas e político-sociais, poder-se-á encontrar boas razões para demonstrar que a lei precisa ser aperfeiçoada, entretanto, nesse caso, o que fica caracterizado são falhas de política legislativa e não propriamente incompletude da lei. Ainda nessa situação, entretanto, o Judiciário não estaria totalmente excluído de atuar para melhorar a lei. Assim diz Larenz: “Se a lei não está incompleta, mas defeituosa, então o que está indicado é não uma integração de lacunas, mas em última instância, um desenvolvimento do Direito superador da lei”491.

Distintas das “lacunas da lei” são as “lacunas do Direito”492. Nesse caso, a lei comparada com o seu plano regulador não se mostra incompleta, porém a lacuna se mostra patente quando a lei é observada em

489 Cf. LARENZ, 1997, p. 527-528.

490 Cf. LARENZ, 1997, p. 529. Segundo Carlos Maximiliano: “Já se não admitia em Roma que o juiz decidisse

tendo em mira apenas uma parte da lei; cumpria examinar a norma em conjunto: Incivile est, nisi tota lege

perspecta, una aliqua particula ejus proposita, judicare, vel respondere – ‘é contra o Direito julgar ou emitir

parecer, tendo diante dos olhos, ao invés da lei em conjunto, só uma parte da mesma’” (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 129).

491 LARENZ, 1997, p. 531.

492 Larenz chama a atenção para uma objeção à afirmação da possibilidade da “lacuna do Direito”, que é o fato

de que não há um “plano conjunto do Direito” para poder aferir esse tipo de lacuna, pois só é possível falar de um plano e intenção reguladora em relação à lei. É claro que um ordenamento jurídico contém diversas valorações e nem sempre é possível evitar contradições. Mas, em princípio, deve valer pelo menos como hipótese de trabalho a idéia da inexistência de contradição lógica, isto é, a crença de que há compatibilidade material e concordância interna das normas jurídicas e dos complexos reguladores. Desse modo, o que convém considerar é a inadequação da expressão “lacuna do Direito”, uma vez que legisladores, juízes e intérpretes precisam ter sempre em mente a busca da coerência e unidade interna do sistema, o qual apresenta-se suscetível

confronto com a ordem jurídica em seu conjunto, na medida em que deixa de legislar sobre todo um setor que necessite de uma regulação, ou não contém um instituto jurídico que deva conter493.

Norberto Bobbio, resumindo o pensamento de Brunetti, assinala que, quando se observa determinado ordenamento legislativo, “considerado como parte de um todo e confrontado com o todo”, é que podem surgir as verdadeiras lacunas. Porém, o autor enquadra essas lacunas na categoria das que ele chama de “lacunas ideológicas”, isto é, “na oposição entre aquilo que a Lei diz e aquilo que deveria dizer para ser perfeitamente adequada ao espírito de todo o sistema”494. Essa afirmação parece problemática, levando-se em consideração que o “espírito de todo o sistema” pode ser retirado, não de um sistema ideal, mas dos princípios

jurídicos (positivos e subjacentes).

Bobbio distingue lacunas próprias (ou reais) e impróprias (ou ideológicas). A lacuna própria é uma lacuna do sistema ou dentro do sistema, por isso, é preenchível, pelo intérprete, mediante as normas vigentes495. A lacuna imprópria resulta da comparação com um sistema ideal e somente pode ser eliminada através da formulação de novas normas, completáveis somente pelo legislador. Portanto, segundo o autor, não faz nenhum sentido falar delas. Outra distinção se dá entre lacunas subjetivas e objetivas. As subjetivas são aquelas que dependem de algum motivo imputável ao legislador. Podem ser voluntárias, que são aquelas deixadas de propósito pelo legislador, porque as situações são muito complexas e há dificuldade de regular com regras muito miúdas; então, elas são confiadas ao poder criativo dos órgãos, que deverão preencher as “diretrizes gerais” aptas

a uma constante recepção criativa, configurando-se, desse modo, um “sistema aberto” e não um “sistema fechado”, como aquela expressão, em princípio, poderia induzir a pensar (cf. LARENZ, 1997, 534).

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Nas palavras de Larenz: “Por tal pode entender-se o caso em que uma lei particular não está incompleta em si, quer dizer, comparada com o seu plano regulador, mas sim na ordem jurídica em conjunto, enquanto deixa legislativamente por regular todo um sector que carece de uma regulação ou não contém um instituto jurídico que deva conter, atendendo a uma necessidade imprescindível do tráfego ou a um princípio jurídico afirmado pela consciência jurídica geral” (LARENZ, 1997, p. 533). Como assinala Carlos Maximiliano, a parte mais nobre e mais fecunda da arte da investigação hermenêutica, “é a que examina as leis não defeituosas (não obscuras, nem ambíguas), estuda as normas em conjunto, na variedade das suas relações e na riqueza dos seus desenvolvimentos. É sobretudo com as regras positivas bem feitas que o intérprete desempenha o seu grande papel de renovador consciente, adaptador das fórmulas vetustas às contingências da hora presente, comapreçar e utilizar todos os valores jurídicos-sociais, — verdadeiro sociólogo do Direito” (MAXIMILIANO, 1979, p. 39). Segundo o autor, é num processo sistemático de comparação de dispositivos do mesmo repositório ou de leis diversas que o hermeneuta eleva o olhar, dos casos especiais para os princípios dirigentes a que eles se acham submetidos; indaga se, obedecendo a uma não viola a outra; inquire das conseqüências possíveis de cada exegese isolada (cf. MAXIMILIANO, 1979, p. 129).

494 BOBBIO, 1994, p. 142-143.

495 Segundo Bobbio, “temos lacuna própria somente onde, ao lado da norma geral exclusiva, existe também a

norma geral inclusiva, e o caso não-regulamentado pode ser encaixado tanto numa como na outra” (BOBBIO, 1994, p. 143).

a serem integradas ou completadas; por isso, nem podem ser consideradas verdadeiras lacunas. E involuntárias, que ocorrem por descuido do legislador496.

Outra distinção feita por Bobbio é entre lacunas praeter legem e lacunas intra legem. As praeter

legem surgem “quando as regras, expressas para serem muito particulares, não compreendem todos os casos que

podem apresentar-se a nível dessa particularidade”; para integrá-las terá que se formular novas regras ao lado das expressas. As intra legem, aparecem “quando as normas são muito gerais e revelam, no interior das disposições dadas, vazios ou buracos que caberá ao intérprete preencher”; para colmatá-las as novas regras terão que ser formuladas dentro das regras já expressas497.

Para além das considerações feitas acima, convém destacar que, se a lacuna surgir da constatação de um descompasso material da lei à luz dos princípios jurídicos expressos e latentes no ordenamento, poder-se-á ir além do praeter legem. Pode-se, então, entrar na esfera do extra legem, porém sem sair do âmbito do Direito (intra jus), porque ainda se trata da constatação e preenchimento de lacuna que surge a partir dos princípios do ordenamento. Essas são hipóteses de “construção de Direito novo”498, mas se é concretização coerente dos princípios do ordenamento, é um direito que se encontra logo ali499.

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