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Dissonâncias do sistema jurídico: o descompasso das regras do Código Civil

2.4 O problema da tutela do contratante vulnerável fora das relações de consumo

2.4.4 Dissonâncias do sistema jurídico: o descompasso das regras do Código Civil

A partir da divulgação da concepção de igualdade substancial como substrato da atuação do Estado Democrático Direito, afirma-se que um princípio básico da atuação do Estado é tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de sua desigualdade. Sob o mesmo enfoque é o que se pode dizer da leitura do princípio da “livre iniciativa” com igual conteúdo para todos, e da busca da justiça substancial. É o novo perfil fixado pelas diretrizes constitucionais em 1988, que compreende a dimensão material do Direito e exige uma atuação concreta do Estado para garantir a isonomia real, substancial e não meramente formal.

Entretanto, como os desideratos do Estado se encontram em fase de implantação, é necessário examinar se há coerência entre o que se estabeleceu, o que já se fez e o que está por fazer. Nesse sentido, convém investigar se há uma realização coerente dos propósitos do Estado Social na esfera contratual. Dentro dos objetivos deste estudo, se mostra fundamental verificar se todos os vulneráveis estão sendo tratados igualmente ou não e se, por outro lado, merecem ser contemplados com a mesma proteção, quando se analisa o ordenamento na sua totalidade. Esse contraste pode revelar argumentos fortes para se pensar na extensão da proteção contra cláusulas abusivas àqueles que eventualmente ainda são carecedores dessa tutela, porque avulta o descompasso das regras do novo Código Civil, por não designar um tratamento mais adequado à matéria.

Em âmbitos determinados, como nas relações trabalhistas e de consumo, em razão do surgimento mais precoce da vulnerabilidade, o tratamento jurídico dado aos contratos padronizados e de adesão transformou-os “de uma forma por assim dizer ‘selvagem’ a uma configuração civilizada, decorrente do controle da atuação do poder econômico privado”437. É claro não se conseguiram todos os resultados que se esperavam! De qualquer modo, é preciso reconhecer um maior grau de possibilidade de concretização da justiça e da igualdade, porque o Direito protege explicitamente os mais fracos nesses âmbitos. Essa é uma postura coerente com o texto constitucional e adequada ao paradigma do Estado Social.

De outra banda, se essas mudanças em direção ao controle dos mais fortes ainda estão limitadas a algumas esferas da contratação privada, não é preciso reprisar que, onde a “domesticação” não ocorreu, o

contrato padronizado e de adesão continua “selvagem”. É o que ocorre precisamente nas relações civis e comerciais em que, salvo quando a jurisprudência adota uma posição de corajosa vanguarda, não há uma adequação disciplinar à nova realidade, mesmo com a legislação recente. Como se verá adiante, o novo Código aporta princípios gerais dos contratos que são coerentes com os princípios constitucionais, porém a narrativa das regras dessa legislação é deficitária da coerência que era de se esperar para a efetivação dos princípios.

Ao ter como certa a presença da figura do contratante vulnerável438 — aquele que não tem poder negocial e se submete à vontade e aos interesses de quem elabora o conteúdo do contrato — também nas relações contratuais civis e comerciais, porém aqui sem qualquer proteção especial, percebe-se a incoerência de efetivação daqueles propósitos do novo paradigma do Estado Democrático Direito, que tem sua base na proteção da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), nos valores sociais da livre iniciativa (art. 1º, IV), na solidariedade social (art. 3º, I), na legalidade (art. 5º, inc. II), na justiça e na igualdade substancial (art. 3º, III; art. 5º caput; art. 170, entre outros), estabelecida na Constituição Federal. O desenvolvimento desses princípios requer que, da mesma maneira se protege os vulneráveis nas relações de trabalho e de consumo, se designe a tutela aos mais fracos nas relações contratuais civis e comerciais, através de mecanismos compensatórios, como a possibilidade de redução de cláusulas parcialmente abusivas ou meramente desproporcionais e declaração de nulidade de cláusulas abusivas, a fim de restabelecer o equilíbrio contratual.

É falacioso dizer, por exemplo, que os problemas relacionados com os contratos de adesão assumem importância quando o aderente é um simples consumidor final, afirmando-se que as necessidades de proteção não se fazem sentir se estiverem frente a frente sujeitos de relações contratuais civis e comerciais, porque a posição econômica das partes, nesse caso, é semelhante, ou porque, tratando-se de duas empresas, ambas se utilizarão de “cláusulas contratuais gerais”.

Efetivamente, a realidade contratual moderna, baseada no contrato padronizado e de adesão, revela que a situação de inferioridade e desigualdade, nos casos concretos, é igualmente grave tanto entre sujeitos singulares quanto entre empresas e seus fornecedores não empresários, ou mesmo entre uma empresa e outra: em todos esses casos justifica-se a instauração de um controle contra cláusulas abusivas ditadas pelo predisponente. Basta verificar que pequenos fornecedores de macroempresas muitas vezes estão em condições de dependência similar à dos trabalhadores, e ainda têm um nível de consumo bem menor do que o de muitos consumidores. A

437 Cf. LEOPOLDINO DA FONSECA, 1998, p. 32.

438 Segundo Neto Lôbo: “Pode-se afirmar que, se provavelmente o aderente nem sempre é o contratante

economicamente débil, o predisponente é sempre o contratante juridicamente mais forte, em virtude de, valendo- se da particular tutela que lhe é reconhecida, poder mais facilmente perpetrar abusos contra os eventuais contratantes (nesse sentido, mais débeis)” (LÔBO, 1991, p.70).

empresa estipulante encontra-se, relativamente a esses aderentes, numa situação de força propícia à exploração, à imposição de abusos, etc.

Frente a essa desigualdade real é totalmente fora dos propósitos constitucionais conservar, nas relações contratuais civis e comerciais, o velho pano de fundo jurídico da teoria contratual clássica, sob o sustentáculo do paradigma liberal, ancorado no princípio da liberdade (negativa) compreendido como “autonomia da vontade absoluta”, com um peso especial ao dogma do pacta sunt servanda. Entretanto, é preciso reconhecer que, em razão dessas concepções, ainda hoje é reinante uma lei ordinária e uma dogmática que conduzem à concretização de uma idéia de Estado limitada e juridicamente controlada, que mantém a incoerência da postura face à proteção das partes fracas no contrato.

No âmbito das relações contratuais civis e empresariais, o que se tem, pois, é um Estado responsável, em última análise, unicamente pela segurança dos contratos. Para desempenhar tal finalidade, limita-se a produzir a lei “geral e abstrata” e a executá-la, bem como a censurar a sua violação. Sem preocupar-se com a igualdade substancial, torna o conteúdo dos contratos avençados impermeável a um exame interno. O substrato básico dessa atuação estatal, que valoriza o “acordo de vontades” sem que ele exista efetivamente, só é funcional aos que detêm maior poder econômico, técnico, jurídico, etc. Tal atuação guarda oculta uma enorme simpatia pela liberdade sem limites dos mais fortes. Na prática, ela se traduz no fato de que o Estado continua a dar guarida à força dos predisponentes nos contratos padronizados e de adesão civis e comerciais, mesmo que a Constituição e os princípios gerais dos contratos a isso sejam contrários.

Esses são os restos do paradigma do Estado liberal clássico que precisam ser expurgados da prática jurídica do Estado brasileiro, cuja Constituição está baseada em outro ponto de referência. Tal concepção, se teve algum resultado positivo, foi apenas enquanto o capitalismo se esboçava, e a noção de livres e iguais fazia passar despercebidas as desigualdades resultantes da força do poder econômico. Porém, o crescente aumento do poderio econômico das macroempresas, e a sua concentração, granjearam-lhes a dominação contratual, quebrando as regras do mercado e levando à crise das relações de troca, crise da economia e crise social. Assim, hoje, aquela visão de mundo tem gerado a incongruência na atuação do Estado, que intervém em benefício de alguns, para a busca do equilíbrio contratual, mas deixa outros tantos, de situações bem similares, à deriva e a descoberto de qualquer proteção específica.

O Welfare State, se deseja completar-se como um tipo de Estado com lógica, estrutura e racionalidade diversa do antigo modelo439, essencialmente, em relação à contenção do poder desenfreado do grande capital, em busca de maior justiça substancial, precisa ter em conta a extensão dos inconvenientes gerados pela concentração de poder econômico, na atualidade. Foi nessa lógica que surgiram as legislações consumeristas, na tentativa de buscar equilíbrio nas relações de consumo. Porém, em outros âmbitos ainda proliferam enormes descompassos quanto ao resultado eqüitativo da contratação, a qual pende sempre em benefício do mais forte. Mostra-se evidente a incoerência de realização do projeto de distribuição eqüitativa de

liberdades subjetivas de ação. No fundo, trata-se do problema do desenvolvimento da “racionalidade” do Estado

Social em sua completude. De outra parte, cria-se um grave impasse para a unidade do Direito, a qual exige a aplicação de uma mesma medida para casos semelhantes.

Efetivamente, não há possibilidades de sistematização de um “Direito Social” que defenda os mais fracos apenas considerando alguns ramos do Direito como possuidores de uma “racionalidade jurídica própria”, desvinculando-os de qualquer relação com o conjunto do sistema jurídico. Por exemplo, não é possível negligenciar e não considerar que, nas relações atualmente regidas pelo Direito das Obrigações e pelo Direito Empresarial, encontram-se problemas de nível similar ao das relações de trabalho e de consumo. Nesses ramos do Direito, também, há razões suficientes para a intervenção do Estado para controle dos abusos efetuados com base na liberdade contratual dos mais fortes. Pois, embora os contratos padronizados e de adesão não sejam maus em si mesmo, a partir da extrema liberdade assegurada aos predisponentes, e da impermeabilidade de seu conteúdo a exames, eles acarretam amplas possibilidades de abusos e efeitos funestos para os aderentes fracos, nas relações contratuais civis e empresariais.

b) Perspectivas de solução das incongruências

439 Ronaldo Porto Macedo Júnior acredita que o Welfare State é um modelo de Estado distinto daquele

imaginado e idealizado pelos pensadores liberais clássicos. Nele o Direito Social caracteriza uma “experiência jurídica” que apresenta uma racionalidade própria e se estrutura no interior de um paradigma teórico diverso, baseado numa nova concepção de responsabilidade, apoiada na idéia de equilíbrio (ou balanceamento). Segundo ele, o Direito Social “não representa uma tentativa de preencher as lacunas do Direito tradicional, mas sim uma nova maneira de conceber o Direito”. Por isso, o Direito do Consumidor não é um complemento dos Direitos Comercial e Civil tradicionais. Ele formaliza de maneira explícita a nova racionalidade típica do Direito Social. Para esse autor, “o contrato social clássico, fundado na noção de troca, é substituído pela noção de acordos de solidariedade, fundados na idéia de justa distribuição ou eqüitativa alocação dos ônus e lucros. Nesse sentido, o Direito Social passa, cada vez mais, a ser o resultado de um equilíbrio entre interesses conflitantes formalizados como um acordo que sempre implicará em sacrifícios mútuos. [...] Na medida em que os princípios solidarísticos foram incluídos no interior dos contratos, a sociedade passou a determinar os limites e cláusulas dos contratos” (MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Mudanças dos contratos no âmbito do direito social. Revista de Direito do

Uma das saídas para esse problema é a busca de maior coerência de atuação do novo Estado, conforme projetado na Constituição, e a construção de um Direito congruente na sua totalidade, tendo por fundamento a proteção do contratante débil. Esta é uma preocupação presente desde o Principado romano, que pode ser encontrada “no papel infungível da jurisprudência, como força viva, intérprete das rationes, na qual o direito devia inspirar-se”, como ensina Sebastian Tafaro440.

A Constituição de 1988 oferece subsídios nesse sentido, permitindo, inclusive, que se faça um controle das normas inferiores que não tenham coerência com o seu texto. Os princípios constitucionais estabelecem diretrizes sob o enfoque do paradigma do Estado Social. As novas concepções, impregnadas de liberdade com igual conteúdo, justiça substancial, etc., terão que ser válidas para todos. Então, é mister uma realização coerente dos princípios estabelecidos, isto é, os vulneráveis devem ser tratados igualmente pelo Estado. Daí depreende-se que, se em determinadas esferas da contratação eles têm proteção contra cláusulas abusivas, em todos os âmbitos em que se encontrem nas mesmas condições de vulnerabilidade merecem tratamento igual.

Se apenas o texto legal do Código Civil não pode servir como fonte de repúdio das cláusulas abusivas441, então o Direito Contratual deverá ser observado de forma mais ampla a partir de seus princípios e dos princípios constitucionais. Se o Código Civil for observado estritamente pelo seu texto, especialmente sem consideração aos princípios, os vulneráveis podem encontrar-se sem bússola, como de fato estão, muitas vezes sendo tratados igualmente em situações de desigualdade. Desse modo, a eles não resta outra saída que não a sujeição e subordinação às regras do ditador do contrato.

Logo, deflui dessas considerações que, enquanto a legislação civil não se adequar à necessidade aqui levantada, ao Judiciário caberá, num verdadeiro papel de vanguarda, desenvolver a atuação do Estado na direção da proteção dos mais fracos na relação contratual, de acordo com o sistema jurídico observado na sua totalidade. Afinal, como diz Larenz: “Missão do jurista é antes do mais preocupar-se com a salvaguarda dos princípios do Estado de Direito, bem como evitar contradições de valoração indesejáveis ou que conduzam a ‘efeitos subseqüentes’ gravosos em outros domínios jurídicos”442.

Da análise das dissonâncias do sistema jurídico, essencialmente em vista da falta de garantias de efetividade da proteção dos contratantes fracos, em todas as esferas, resulta, para somar-se às questões já

440 TAFARO, Sebastian. A dívida e a proteção da parte mais fraca do contrato. Revista Brasileira de Direito

Comparado, Rio de Janeiro: Instituto de Direito Comparado Luso-Brasileiro, p. 19-63, 1992. p. 62.

441 Cf. SILVA, L., 2001, p. 50-51.

442 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Tradução de José Lamego. 3. ed. Lisboa: Calouste

levantadas, que o exame das possibilidades de extensão da proteção contra cláusulas abusivas terá que contemplar também as seguintes questões: Os princípios constitucionais possibilitam aos juízes uma análise interna, quanto ao conteúdo, em todos os contratos privados, para a declaração de nulidade de eventuais cláusulas abusivas? Seriam decisões mais coerentes com os propósitos do paradigma do Estado Social? Há possibilidade de os juízes fazerem maior justiça substancial com suas decisões, aplicando o Direito a partir de princípios?

Enfim, conclui-se que, em matéria de cláusulas abusivas, há desarmonia e deficiência das regras do Direito Civil e Empresarial, expressas sob várias dimensões: em relação aos fatos (especialmente referida à problemática dos contratos padronizados e de adesão), em relação aos próprios princípios gerais dos contratos, e ainda ao Direito do Consumidor, à Constituição e ao paradigma do Estado Democrático de Direito e Social. Daí a complexidade da questão, que almeja e merece a uma resposta unificante, capaz de articular as tantas e tão numerosas nuances que envolvem as várias transformações do Direito contemporâneo e lhes conferir coerência valorativa.

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