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Métodos tradicionais de interpretação e suas contribuições para a análise

3.2 Alguns fundamentos de hermenêutica jurídica

3.2.2 Métodos tradicionais de interpretação e suas contribuições para a análise

A teoria dogmática da interpretação jurídica há muito tempo procura oferecer aos juízes diversas operações técnicas na tentativa de cumprir uma função racionalizadora da decisão jurídica e da participação dos juízes no processo de construção do Direito. Como observa Tercio Sampaio Ferraz Junior, os métodos tradicionais de interpretação do Direito repousam suas bases em três critérios: a correção ou coerência, o consenso, e a justiça468. Em razão deles se pode falar em interpretação lógico-sistemática, sociológica e histórica e teleológico-axiológica, as quais procuram orientar as resoluções dos problemas de ordem sintática, semântica e pragmática que freqüentemente surgem no âmbito da investigação de soluções jurídicas para os conflitos.

Nesse estudo, os métodos de interpretação tradicionais interessam na medida em que, conforme ensina a dogmática hermenêutica, só poderemos falar de lacuna a preencher depois de estar averiguado, por interpretação da lei, que o caso omisso não deve ficar à margem do Direito, sem disciplina apropriada469. Assim, a extensão, aos contratos civis e empresariais, da proteção contra cláusulas abusivas implica, de certo modo, aquelas questões acima (especialmente quando se trata de contextualizar o conteúdo do Código Civil no conjunto do ordenamento, bem como quando se busca compreender o art. 29 do CDC). Daí resulta a importância de se observar em que esses métodos podem contribuir para a análise. Visto muitas das orientações da dogmática

467 Cf. NORONHA, 1988, p. 140. 468

Segundo o autor, “esses três critérios são a correção ou coerência, o consenso e a justiça. A coerência ou a busca do sentido correto exige um sistema hierárquico de normas e conteúdos normativos. O consenso ou a busca do sentido funcional exige o respaldo social. A justiça ou a busca do sentido justo exige que se atinjam os objetivos axiológicos do direito. Em função deles, podemos falar em métodos lógico-sistemático, sociológico e histórico e teleológico-axiológico” (FERRAZ JUNIOR, 2001, p. 282).

tradicional não poderem ser abordadas, procurar-se-á, muito superficialmente, o essencial daquilo que ainda é aceito por muitos juristas e operadores jurídicos.

Na dogmática hermenêutica em geral se entende que a interpretação, em sentido estrito, procura descobrir o pensamento expresso na norma, pois a lei não se identifica com a letra da lei. Desse modo, utiliza-se tradicionalmente a pesquisa do sentido lingüístico, a análise do contexto significativo da lei, da intenção reguladora, fins e idéias normativas do legislador, critérios teleológico-objetivos, critério sistemático, etc470.

Como assinala Fernando Noronha, quanto ao resultado a que se chegar, a interpretação será:

declarativa, se coincidirem o pensamento expresso no texto e as palavras utilizadas, mesmo que haja vários

sentidos, mas ainda passíveis de serem selecionados; restritiva, se as palavras da lei dizem mais do que ela “queria” dizer e é necessário limitar as hipóteses que se incluem nos termos utilizados; extensiva, quando se conclui que a lei disse menos do que “queria” ter dito e, portanto, é preciso ampliar as hipóteses que nela se incluem471.

Em consideração aos métodos lógico-sistemáticos, seguindo Ferraz Junior, é preciso partir do pressuposto de que a letra da norma é apenas o ponto de partida da atividade hermenêutica. Além disso, iniciar da suposição de que a conexão de uma expressão normativa com as demais do contexto é importante para a obtenção do significado correto. Para enfrentar as questões de compatibilidade num todo estrutural e obter a conexão das sentenças num todo orgânico é necessário assumir, desde o início, que o ordenamento constitui uma unidade. Nesse rumo, convém observar a subordinação e a conexão das normas que culminam, em última instância, na Constituição. Também é importante que qualquer preceito isolado deva ser interpretado em harmonia com os princípios gerais do sistema jurídico, para assim preservar a coerência do todo472.

Observações à luz da “interpretação sistemática”, na procura de soluções para o problema da proteção contra cláusulas abusivas, fora dos contratos de consumo, conduzem à investigação de uma concordância objetiva, tanto quanto possível, entre disposições legais singulares do Direito Privado e da Constituição. Exigem uma avaliação conjunta do Código Civil, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor e da Constituição. Assim, entre várias interpretações possíveis, segundo o sentido literal de cada Código, deverá ter prevalência aquela que possibilite a garantia de concordância material, não só com outra disposição da mesma lei, mas em consideração a todo Direito Privado (não excepcional) e à Constituição. O teor literal da lei

470 Hart, entretanto, adverte que, os cânones de interpretação não podem eliminar todas as incertezas da

linguagem jurídica, embora possam diminuí-las; “porque esses cânones são eles próprios regras gerais sobre o uso da linguagem e utilizam termos gerais que, elespróprios, exigem interpretação. Eles, tal como as regras, não podem fornecer a sua própria interpretação” (HART, 1994, p. 139).

deverá estar de conformidade com o escopo subjacente à mesma473, e o máximo possível em concordância com o escopo de todo o ordenamento.

Como ressaltou Juarez de Freitas, “ou se compreende o enunciado jurídico no plexo de suas relações com o conjunto dos demais enunciados, ou não se pode compreendê-lo adequadamente”474. No mesmo sentido se manifesta Paulo Bonavides: “nenhuma liberdade ou direito, nenhuma norma de organização ou construção do Estado, será idônea, fora dos cânones da interpretação sistemática, única apta a iluminar a regra constitucional em todas as suas possíveis dimensões de sentido para exprimir-lhe corretamente o alcance e grau de eficácia”475.

A análise sistemática do regramento dos contratos civis e empresariais poderá elucidar um descompasso entre o texto escrito e os princípios que servem de base à regulação e ao ordenamento. As concepções objetivistas (enfoque que estudaremos melhor adiante, no item 3.3) observam que é necessário verificar a concordância entre o quadro do sentido literal possível e a racionalidade própria da lei, seu telos, fins ou princípios, que podem ser os da regulação ou os demais fins e princípios fundamentais do ordenamento. Diante de uma hipótese concreta não abarcada pelas regras, mas cujo caso a densificação e concretização de princípios contemplariam, é mister verificar a caracterização da “lacuna” ou incompletude, para conduzir à melhor implementação da aplicação coerente do Direito.

Em alguma instância essa orientação hermenêutica se liga com concepção sobre a aplicação de princípios. Numa visão bem diferente, mas que não deixa de ser sistemática, Ronald Dworkin ensina que o Direito, como integridade, exige que as leis sejam avaliadas sob uma análise de “coerência horizontal” com os princípios e os propósitos que atualmente podem ser lidos na ordem jurídica476. Nisso já se encontra a problemática de outro método.

Na observância dos métodos sociológico e histórico, é mister enfatizar que a atividade interpretativa e integrativa do Direito requer a compreensão dos significados das expressões normativas e de todo o edifício normativo, não tanto em consideração à sua gênese no tempo, mas sobretudo quanto ao levantamento das condições atuais, em apreço à estrutura momentânea. Se a consideração histórica pode de fato auxiliar a entender os motivos condicionantes da feitura da lei, por outro lado os concretizadores não podem ficar vinculados estritamente à vontade do legislador.

472 Cf. FERRAZ JUNIOR, 2001, p. 283-285. 473 Cf. LARENZ, 1997, p. 468.

474 FREITAS, 1998, p. 56.

475 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 111. 476 Cf. DWORKIN, 1999, p. 271 et seq.

Assim, o desvendamento das estruturas sociais e de suas mudanças é importante porque os significados das normas possuem uma “conexão fática ou existencial com o conjunto vital — cultural, político e econômico — que condiciona o uso da expressão”477; bem como porque aquelas, simultaneamente, propiciam a irradiação de novas interpretações. Foi justamente por isso que, no capítulo anterior, se buscou enfatizar o problema das cláusulas abusivas em relação direta com os contratos padronizados e de adesão, demonstrando um possível descompasso entre a estrutura socioeconômica atual e o Direito posto no Código Civil.

Normalmente a doutrina destaca que os métodos de interpretação teleológicos e axiológicos aconselham que, diante da presença de termos com uma maior carga valorativa, o intérprete procure generalizar de tal modo esses valores que eles passem a expressar “universais do sistema”, procurando atribuir, sempre que possível, um propósito ou finalidade para as normas. Os teóricos propugnam que essas considerações carreiam para a decisão judicial através da exigência teleológica, que está expressa no art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil — LICC: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”478. Compreende-se que, com a menção aos “fins sociais” do Direito e ao “bem comum” da sociedade, a ordem jurídica busca, em seu conjunto, a realização da sociabilidade humana. Assim, é preciso encontrar na Constituição, nas leis, nos regulamentos, em todas as manifestações normativas o seu telos (fim), que nunca poderá ser anti-social479.

As teorias da interpretação e da integração do Direito mais recentes também são obrigadas a considerar o art. 5º da LICC e não negam as considerações acima mencionadas, mas seguem caminho diferente da dogmática hermenêutica mais tradicional. Procuram distanciar-se das maneiras clássicas de perquirir o telos e os valores da lei, seja à maneira da “jurisprudência dos conceitos”, da “jurisprudência dos interesses”, da “jurisprudência dos valores”, ou ainda das concepções ligadas à teoria da “natureza das coisas” e dos conceitos de “âmbito normativo” [cf. 4.1.1 e 5.2.3].

As novas concepções metodológicas tendem a valorizar sempre a utilização de princípios jurídicos (expressos e latentes) na prática da decisão. Assim, as regras clássicas de interpretação e, principalmente, as orientações que serão vistas adiante, sobre a integração do Direito, especialmente sobre a analogia, não terão o

477

FERRAZ JUNIOR, 2001, p. 285-286.

478 Segundo Ferraz Junior, no art. 5º da LICC “não se trata de uma regra de interpretação, como se fosse dado ao

intérprete ‘corrigir’, por um juízo de valor, o sentido da lei, mas sim um princípio de aplicação, que autoriza o decididor a aproveitar as nuanças do caso concreto em confronto com o texto legal: é a decisão que deve atender aos fins sociais e às exigências do bem comum. Que o sentido da lei satisfaça a ambos é um pressuposto interpretativo do legislador racional” (FERRAZ JUNIOR, 2001, p. 313).

479 Cf. FERRAZ JUNIOR, 2001, p. 287-289. Adiante, o autor destaca que “a concreção dos conteúdos

mesmo status atribuído no âmbito da hermenêutica jurídica tradicional. Da colocação de princípios na prática da decisão judicial tratar-se-á adiante [capítulos IV e V]. Primeiramente serão vistas algumas considerações de base, na linha da extensão analógica do Código de Defesa do Consumidor.

Portanto, na seqüência, de acordo com os pressupostos expostos no início desse capítulo, convém examinar quais os subsídios teóricos para apurar se realmente pode ser caracterizada a lacuna no Direito Civil e Empresarial pela falta de um regime de nulidade das cláusulas abusivas nos contratos civis e empresariais. Se a conclusão for afirmativa, então adiante será importante verificar o procedimento para solucionar o problema, utilizando-se as recomendações da hermenêutica jurídica nessa linha.

Sem pretender deflagrar polêmicas que não cabem nessa instância, trata-se de realizar uma breve análise da teoria geral, para verificar os conceitos de completude (lacunas), modos de produção e integração do Direito, entre outros que foram desenvolvidos com o objetivo de proporcionar objetividade e racionalidade à atuação do Estado.

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