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O problema das cláusulas abusivas nos contratos civis e empresariais

2.4 O problema da tutela do contratante vulnerável fora das relações de consumo

2.4.2 O problema das cláusulas abusivas nos contratos civis e empresariais

Desde o regime jurídico estabelecido no velho Código Civil, a jurisprudência e a doutrina mais atenta aos novos fenômenos defrontavam-se com o problema das cláusulas causadoras de desequilíbrio contratual, resultantes da prevalência de uma das partes sobre a outra, e procuravam possibilidades de coibi- las406.

405 Cf. NORONHA, 2002, p. 127-128.

406 Paulo Neto Lôbo dá-nos o seguinte testemunho: “O direito brasileiro, mesmo antes do Código do

No passado, o fenômeno das cláusulas abusivas não era reconhecido como na atualidade, mas nos escassos recursos às outras figuras análogas e proibições legais respectivas, bem como ancorando-se na interpretação a partir de princípios, os juízes vanguardistas encontravam no ordenamento oportunidades para uma atividade revisora do contrato, a fim de que se considerassem nulas, estipulações abusivas inseridas nos contratos. No entanto, num ambiente dominado pela concepção tradicional, que só admitia o exame externo do contrato, o controle esteve basicamente restrito às chamadas cláusulas ilícitas.

A análise dos termos em que era possível a declaração de nulidade de cláusulas, na perspectiva do velho Código, permite concluir que seu pano de fundo estava profundamente marcado pela intenção de “manutenção da couraça que revestia o contrato, impermeabilizando-o a qualquer atividade modificativa alheia à vontade das partes”407. Sua preocupação era atender, em primeiro lugar, ao dogma da autonomia privada. Em função disso é que se proibiam as cláusulas potestativas e leoninas (que, hoje, podem ser coibidas com base no princípio do equilíbrio contratual), ou outros abusos, como a excessiva unilateralidade na fixação de elementos essenciais do negócio. Teoricamente tais institutos se justificavam com o objetivo de atender à ordem pública e aos bons costumes, e tutelar os elementos essenciais do contrato (sujeito, objeto, forma e consentimento)408.

Assim, na perspectiva teórica construída a partir do Código de 1916, os vícios do consentimento, incapacidades, ilicitude ou impossibilidade do objeto poderiam conduzir à anulação ou nulidade. Por exemplo, vedava-se, inclusive, a unilateralidade de certas cláusulas sobre o objeto, que poderiam ser declaradas nulas, como a fixação unilateral do preço na compra e venda (art. 1.125, correspondente ao art. 489 do Código de 2002, na verdade, regra presente já no art. 122, 2ª parte)409.

b) Garantias efetivas de proteção no Código Civil e no CDC

final. A título de exemplo, os tribunais, inclusive o Supremo Tribunal Federal, sempre consideraram a suposta cláusula de eleição de foro, em contratos de adesão, que beneficiavam o domicílio da empresa predisponente (fornecedor), mesmo quando o bem ou serviço não se destinasse a consumidor final mas a atividade de outra empresa” (LÔBO, 1994, p. 46). Também nos contratos de consumo, mesmo antes de o CDC entrar em vigor, a jurisprudência já coibia as cláusulas abusivas. Um julgado ilustrativo, nesse sentido, foi dado na Apelação Cível 589055680, datada de 19 de setembro de 1989, da 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, quando o então relator, hoje Ministro do STJ Ruy Rosado de Aguiar Júnior escreveu no decisório: “Enquanto a legislação brasileira não for modificada para acompanhar a atualidade dos negócios, cabe ao juiz exercer o controle da validade das cláusulas contratuais gerais”. Dessa forma, em um contrato de consórcio padronizado e de adesão, foi considerada abusiva a cláusula que previa a devolução sem correção (cf.

Revista de Jurisprudência do TJRGS, Porto Alegre, n. 146, p. 309-313, jun. 1991. p. 311).

407

SILVA, L., 2001, p. 44.

408 Cláudia Lima Marques avalia que essa é ainda a justificativa para coibir as cláusulas potestativas e leoninas,

Em termos gerais, pode-se dizer que a abstração da realidade contratual ainda é a perspectiva adotada no novo Código Civil de 2002410. Muito embora este possa até ser mais amplo do que os códigos tradicionais, contando com alguns indícios de mudanças, como o reconhecimento expresso dos princípios da probidade e boa-fé (art. 422), da função social do contrato (art. 421), e o artigo 424, que preceitua uma norma de narrativa mais concreta em relação às cláusulas abusivas411.

Conforme o artigo 424, nos “contratos de adesão” são nulas as “cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio”412. Esse artigo revela que o legislador do Código Civil também reconhece que os contratos padronizados e de adesão são os mais problemáticos. Essa assertiva é confirmada mais claramente quando o Código determina que, nos contratos de adesão, “dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente” (art. 423). Porém tudo isso está muito aquém da proteção contra cláusulas abusivas instituída no CDC e das exigências da nova realidade contratual, especialmente pela forma tímida e franciscana de tratamento aos contratos padronizados e de adesão413.

No fundo, observado apenas pelas regras, o novo Código Civil de 2002 ainda contém alguns aspectos sob suspeita de conexão com a concepção clássica414, especialmente pela omissão das garantias de eficácia do equilíbrio contratual genético, ou seja, falta a proteção para que se efetive a equivalência entre

409 Cf. SILVA, L., 2001, p. 43-44.

410 Segundo assinala Fábio Ulhoa Coelho, “a legislação civil sobre contratos pressupõe a existência de partes

livres e iguais que transigem sobre os seus respectivos interesses, com pleno domínio da vontade. As pessoas, nesse contexto, contratam se quiserem, com quem quiserem e como quiserem. A idéia de ser o contrato lei entre as partes corresponde a esse cenário pressuposto das normas civis e empresariais civilista e comercialista” (COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito Comercial. 14 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 100). Judith Martins-Costa tem uma visão bem mais otimista das potencialidades da disciplina do novo Código, através das “cláusulas gerais” como ela chama, em especial, a boa-fé e a função social do contrato, cf. MARTINS-COSTA, 2000, p. 348-377.

411 O disposto no art. 424 é semelhante ao Código de Defesa do Consumidor (art. 51, § 1º, II), o qual traz a idéia

do mínimo contratual e pode servir, de forma limitada, para que o juiz faça uma análise de possíveis cláusulas abusivas.

412 Cf. NORONHA, 2002, p. 302. Sobre os limites da autonomia privada no novo Código Civil, em decorrência

da desigualdade nos contratos padronizados e de adesão, assevera Mônica Y. Bierwagen: “Tal desigualdade, muito bem ilustrada pela crescente e constante utilização dos contratos de adesão (mas não apenas neles), não passou despercebida pelo Novo Código Civil, que estabeleceu novos limites à autonomia da vontade, determinando que seu exercício deverá objetivar e se dar em razão da função social do contrato; proibindo e tornando anuláveis determinados conteúdos que representem uma desigualdade substancial entre as partes (enriquecimento sem causa, lesão nos contratos bilaterais, contrato estabelecido em estado de perigo); exigindo transparência, lealdade e correção nos negócios (princípio da boa-fé)” (BIERWAGEN, 2002, p. 31).

413 Cf. NERY JÚNIOR et al., 1999, p. 447; MACEDO, 1995, p. 103.

414 Mônica Yoshizato Bierwagen, analisando os dispositivos que coíbem a onerosidade excessiva no novo

Código, avalia que a parte beneficiada “é duas vezes mais privilegiada que a do prejudicado: a uma, porque a ela caberá decidir se modifica ou não o contrato; a duas, porque se favorece pela ‘exagerada vantagem’” (cf. BIERWAGEN, 2002, p. 75).

direitos e obrigações no momento da formação do contrato; e há quem diga que às vezes parece encontrar-se oculto o dogma da autonomia da vontade415.

Ao contrário, as regras estabelecidas pelo Código de Defesa do Consumidor416 aparelharam o Estado para intervir nas relações de consumo com o objetivo de equilibrar as forças entre os empresários e os consumidores — na expectativa de um maior reconhecimento de direitos entre os envolvidos e de equilibrar o

conteúdo do contrato — para a realização de uma melhor equivalência entre direitos e obrigações das partes. Nas

relações de consumo não há presunção de equilíbrio na relação, e por isso o art. 51 estabelece um rol exemplificativo de cláusulas que não poderão figurar no conteúdo contratual, sob pena de nulidade de pleno direito. Assim, há possibilidade de pedir a verificação da “vantagem exagerada” que ofenda princípios como o do justo equilíbrio entre direitos e obrigações das partes (art.51, § 4º), ou que restrinja direitos e obrigações decorrentes da natureza do contrato, do interesse das partes e das demais circunstâncias do caso concreto (art.51, 1º, I, II, III).

Além disso, o Código permite o pedido de revisão do contrato pelo prejudicado, sem necessidade de recorrer à imprevisibilidade da desproporcionalidade, com o fim de “modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais” (art. 6º, V, 1ª parte). Por fim, deduzida a pretensão em juízo, o juiz, se estiverem presentes as circunstâncias definidas no art. 6º, VIII, do CDC, deve inverter o ônus da prova em benefício do consumidor. Em suma, nessa lei há uma preocupação com a parte mais “fraca” do contrato e uma firme decisão de adequar-se às exigências dos novos tempos. O problema é que o CDC tutela especificamente os contratos de consumo; mas, como já foi visto, existem muitos outros contratos padronizados e de adesão que não são de consumo, que apresentam cláusulas abusivas no seu conteúdo, e o novo Código Civil, infelizmente, não deu à matéria o tratamento que merecia.

415 Antônio Carlos Efing chega à conclusão de que o Código Civil de 2002 “tornou-se um diploma atrasado,

retrógrado e que por certo não beira a contemporaneidade”. E explica: “Primeiramente, prescreve o art. 478 do novo Código que em se tornando a prestação de uma das partes excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, poderá o devedor pedir a resolução do contrato [...]. Num segundo momento, a Lei 10.406/02 prevê, como requisito para que possa o devedor requerer a resolução do contrato, que lhe seja oneroso, a superveniência de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis. Ocorre que o Código de Defesa do Consumidor de 1990, enquanto diploma de evolução ímpar no cenário mundial, já havia descartado a imprevisibilidade como requisito para que o devedor solicite a revisão ou resolução do contrato, dispondo o art. 6º, inc. V, [...]” (EFING, 2002, v. 1, p. 38-39). Porém, partindo dessa análise, não se pode confundir cláusulas abusivas com onerosidade excessiva.

416

Como explica José Luiz Bayeux Filho, “a lesividade prevista no CDC, genética ou superveniente é, em princípio, de caráter totalmente objetivo: não há necessidade de o consumidor argüir e provar a imprevisibilidade. Basta-lhe provar a onerosidade excessiva do contrato ou a condição, que outra coisa não é senão a sua lesividade” (BAYEUX FILHO, José Luiz. O ressurgimento da recisão lesionária ou por usura real no ordenamento positivo brasileiro. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 16, p. 78-88, out./dez. 1995. p. 86).

Em contraste radical com o CDC, as cláusulas abusivas que rotineiramente aparecem nos contratos civis e empresariais, precisamente nos contratos padronizados e de adesão, não tiveram um tratamento especial no novo Código. O legislador do Código Civil de 2002 até lembrou dos contratos padronizados e de adesão (arts. 423 e 424), para exigir o mínimo contratual, e destacou uma ou outra cláusula que pode ser incluída entre espécies das abusivas. Entretanto, ainda muito apegado à concepção voluntarista417, não se ateve a descrições detalhadas, nem fez uma descrição genérica através de uma cláusula geral referida às cláusulas abusivas (como, por exemplo, a do art. 51, IV, do CDC) que pudesse abarcar, senão todas, pelo menos um grande número delas.

Em vista disso, a doutrina reconhece que somente no Direito do Consumidor as cláusulas abusivas foram adequadamente consideradas. Contudo, verifica também que há apenas uma parcial coincidência entre a área dos contratos padronizados e de adesão e aquela a que se refere com a fórmula “tutela do consumidor”. Assim, muitas outras pessoas que não são consumidores, mas que celebram esses contratos, se apresentam como sujeitos carecidos de tutela418. Se as cláusulas abusivas aparecem facilmente em contratos padronizados e de adesão, mas não interessam apenas aos consumidores, então surge a questão: essa tutela poderia ou não ser invocada em relações que não sejam de consumo?

c) A doutrina e as cláusulas abusivas nos contratos civis e empresariais

417 Como ensina Teresa Negreiros, a disciplina designada no Código de 2002 para institutos como da lesão (art.

157) dos contratos padronizados e de adesão (arts. 423 e 424), e da resolução por onerosidade excessiva (arts. 478 a 480), é bem mais restritiva, “em regra ainda muito vinculada a uma concepção voluntarista e abstrata do fenômeno contratual”, representando um “retrocesso” relativamente à que se oferece no Código de Defesa do Consumidor (cf. NEGREIROS, 2002, p. 308-309). Está atrasada em relação à própria jurisprudência, como assinala Ruy Rosado de Aguiar em relação à resolução por onerosidade excessiva: “Ora, há aí duas exigências que não têm sido feitas: a imprevisibilidade do fato futuro e a extrema vantagem para a contraparte. A inflação é um fato previsível, mas poderá muito bem tornar-se causa de elevação insuportável da prestação, e por isso mesmo não poderia deixar de ser considerada como razão para a resolução por onerosidade excessiva. Além disso, é possível que o fato futuro se abata sobre o devedor sem que daí decorra maior vantagem para o credor, e nem por isso deixa de existir onerosidade excessiva que justifica a extinção ou a modificação do contrato por iniciativa do devedor”. E enfatiza: “Nesse ponto, a reforma veio introduzir uma inovação que se fazia sentir, mas disse menos do que poderia ter dito. Afastou-se da teoria da alteração da base objetiva do negócio, que melhor satisfaz a exigência de justiça contratual, pois permite a intervenção judicial ainda quando inexistente a imprevisibilidade e a vantagem excessiva para o credor, e está fundada no exame das condições concretas do negócio, o que exclui o perigo de um julgamento fundado apenas em considerações de ordem subjetiva” (AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Projeto do código civil: as obrigações e os contratos. Revista dos

Tribunais, São Paulo, n. 775, p. 18-31, maio, 2000. p. 28).

Na doutrina vários autores se manifestam, enfocando o problema das cláusulas abusivas e seu tratamento diferenciado fora do âmbito do Direito do Consumidor. Noronha salienta os contratos unilateralmente empresariais (de fornecimento, quando o fornecedor não é empresário), os contratos interempresariais (compra e venda, franquia, distribuição, faturização, etc.) e os contratos entre singulares quando de um lado se puder dizer que haja um consumidor, como os de locação419. Carlos Alberto Bittar destaca os contratos associativos (como concessão comercial, franquia, joint venture, etc)420. Lima Marques lembra dos contratos bancários em geral, entre outros421. Cláudio Santos refere os contratos de locação não residenciais, como os contratos de locação em

shopping center422. James Marins também destaca os contratos bancários, de franquia, know-how e faturização,

entre outros423. Edilson Pereira Nobre Júnior destaca, dentre vários, os contratos de transporte de bens para a revenda424. Roberto Senise Lisboa menciona os contratos de direitos autorais e contratos agrários425. Fábio Ulhoa Coelho426 e Nelson Nery Júnior427 também destacam, genericamente, contratos regidos pelo “Direito Comercial e Civil”, como portadores dos mesmos problemas dos contratos de consumo.

Todos os autores, de uma maneira ou de outra, lembram o “contrato de adesão” — assim chamado pela maioria — como sendo merecedor de tratamento especial, diante da manifestação do poder econômico do predisponente e da ampla possibilidade de imposição de cláusulas abusivas por esse. É a partir do direito fixado no CDC que se faz sentir a necessidade de verificação da possibilidade de extensão da tutela prevista para os consumidores diante de determinados critérios (às vezes ainda indeterminados), sempre na busca de evitar as incongruências do sistema jurídico. Essas são criadas toda vez que se desconsidera o efeito do poder do mais forte, a padronização e as possibilidades de imposições ilegítimas na aplicação do direito fora das relações de

419

Cf. NORNHA, 2002, p. 224 et seq.

420 Cf. BITTAR, 1990, p. 170-171. 421 Cf. MARQUES, 1998, p. 153-154.

422 Cf. ALMEIDA SANTOS, Francisco Cláudio. A locação de espaço em “shopping centers”. Revista dos

Tribunais, São Paulo, n. 680, p. 09-22, jul. 1992. p. 09-22. De maneira mais ampla, Cristiane Paulsen Gonzalez

examina as cláusulas abusivas nos contratos entre lojistas e empreendedores de shopping centers (cf. GONZALEZ, 2003, p. 150 et seq.).

423 Cf. MARINS DE SOUZA, 1996, p. 94-104. 424

Cf. NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. A proteção contratual no Código do Consumidor e o âmbito de sua aplicação. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n.27, p. 57-77, 1998. p. 74.

425 Cf. LISBOA, 1997a, p. 447-448 e 480.

426 Das lições de Fábio Ulhoa é importante considerar a seguinte: “Como o formato da contratação por adesão

decorrente do cálculo empresarial se manifesta também nas relações interempresariais e civis, é de pesquisar em que condições a moderna disciplina de tutela contratual do Código de Defesa do Consumidor pode ser aplicada por via analógica, na proteção de aderentes a contratos estranhos à relação de consumo. Claro que a simples sujeição de todos os negócios às normas do Código de Defesa do Consumidor, em qualquer circunstância, não seria jurídica, posto que continuam em pleno vigor as legislações civil e comercial. No entanto, considerar sempre inaplicável a disciplina da legislação consumerista àqueles contratos não inseridos em relação de consumo também não seria a melhor solução jurídica, na medida em que não se aproveitaria o avançado regramento da matéria constante do Código de Defesa do Consumidor, na adoção de decisões mais equânimes” (COELHO, 1994, p. 130).

consumo. Portanto, o problema está no tratamento diferenciado dado para situações similares às do consumo, fora do âmbito do CDC. Por outro lado, considerar a tutela consumerista aplicável diretamente ao âmbito de relações jurídicas não de consumo seria desvirtuar tanto o Direito do Consumidor como o Direito Civil e Empresarial428.

Fernando Noronha verifica que “a cláusula abusiva não é privativa dos contratos de consumo, apesar de ser esse tipo contratual o campo por excelência de sua proliferação”429. Além disso, o autor destaca vários contratos padronizados e de adesão, não de consumo, que se têm revelado campo fértil para o florescimento de cláusulas abusivas, e propõe um questionamento, que pode ser assim sintetizado: existe ou não a possibilidade de extensão da tutela prevista para os consumidores àqueles contratos em que, por exemplo, de um lado tem-se a presença de uma pessoa com características de consumidor, e de outro, alguém que não possa ser considerado um fornecedor, como no caso da locação de imóveis entre indivíduos singulares? E mais, seria possível aplicar essa legislação em relações interempresariais, quando a contratação é pactuada entre uma grande empresa e uma empresa de pequeno porte, como, por exemplo, num contrato de compra e venda mercantil, de distribuição ou de concessão comercial, de franquia e de faturização?430

.

O mesmo problema aparece também sob o ponto de vista dos que defendem a concepção subjetivista para a caracterização do consumidor, talvez com um pouco mais intensidade, porque os empresários- consumidores também são tratados por esse prisma da extensão. A ilustre jurista Cláudia Lima Marques igualmente se preocupa com as cláusulas abusivas inseridas em contratos unilateralmente redigidos, oferecidos à adesão de outros profissionais, pequenos empresários, em suas relações tradicionalmente regidas pelo Direito Comercial (atual Empresarial). “Poderão esses usar do patamar de boa-fé e respeito das expectativas legítimas introduzidas pelo CDC no sistema de direito brasileiro?”431.

427 Cf. NERY JÚNIOR et. al., 1999, p. 470-471. 428 Cf. NORONHA, 2002, p. 164.

429 NORONHA, 1991, p. 346.

430 Cf. NORONHA, 1991, p. 346-347, 2002, p. 346 et seq. A mesma preocupação revela Renata Mandelbaum:

“No Código de Defesa do consumidor, são os contratos de consumo, exclusivamente, que são objeto de proteção contratual e mais especificamente de proteção contra as cláusulas abusivas; devemos, no entanto, observar que o estabelecimento das cláusulas abusivas não se limita ao âmbito do consumo, atingindo outras áreas da atividade mercantil e negocial, não amparadas pelo ordenamento, devendo ser essa a preocupação dos nossos juristas nos próximos anos: estender o controle do contrato e a proteção aos contratantes aderentes em todas as modalidades de contrato de adesão e/ou padronizados, em todas as situações em que o co-contratante se depare com o estabelecimento unilateral das condições gerais” (MANDELBAUM, 1996, p. 245).

431

A autora propõe a reflexão: “Na hipótese de cláusulas abusivas terem sido inseridas em um contrato unilateralmente redigido por um fornecedor de serviços, por exemplo, uma Instituição Bancária e ser esse contrato oferecido a adesão de um profissional liberal ou de um pequeno comerciante, poderão esses usar do patamar de boa-fé e respeito das expectativas legítimas introduzidas pelo CDC no sistema de direito brasileiro? No caso da imposição da prática da venda casada ou de recusa de venda entre comerciantes, poderá o pequeno empresário considerá-la abusiva e requerer sua proibição com base no CDC? Trata-se somente de um caso de

De todo modo, não há como fugir da questão, pois se foi a difusão dos contratos padronizados e de adesão que levou à positivação do Direito do Consumidor, e essa foi efetivamente a razão principal para a proteção dos consumidores, há fortes razões para se defender o mesmo tratamento para casos similares fora do alcance do CDC. Porque os mesmos problemas, típicos de quaisquer contratos padronizados e de adesão,

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