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Os contratos padronizados e de adesão exigem a renovação da teoria contratual

1.3 A nova realidade contratual e a crise da concepção tradicional

1.3.2 Os contratos padronizados e de adesão exigem a renovação da teoria contratual

Não cabe aqui neste tópico uma análise detalhada dos chamados “contratos padronizados e de adesão”, a qual será aprofundada no capítulo II. Por ora, basta apenas um exame instrumental e acessório para perceber os motivos da profunda insuficiência da concepção clássica para responder aos problemas atuais do Direito dos Contratos. Essa breve análise servirá para enfatizar que, por mais boa vontade que os profissionais do

52 Vários estudos sobre o assunto apontam para o aspecto das novas modalidades de contratação com cláusulas

predispostas que predominam na vida moderna. Somente para citar alguns, cf. BITTAR, Carlos Alberto. Os contratos de adesão e o sancionamento das cláusulas abusivas. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 648, p. 17- 20, out. 1989; As modalidades de contratos de adesão e seu regime jurídico. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 27, n. 106, p. 161-172, abr./jun. 1990; cf. também WALD, Arnold. Do contrato de adesão no direito brasileiro. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 17, n. 66, p. 257-266, abr./jun. 1980.

53 Cf. NORONHA, Fernando. Direito do consumidor: contratos de consumo, cláusulas abusivas e

responsabilidade do fornecedor. (MIMEO), Florianópolis: UFSC, 2002, p. 234 e segs. NORONHA, Fernando.

Princípios dos contratos (autonomia privada, boa-fé, justiça contratual) e cláusulas abusivas. São Paulo: USP,

1991. Tese de doutoramento, Universidade de São Paulo, 1991. p. 289 et seq., sobre a preferência da expressão, p. 312 et seq. A doutrina dominante utiliza apenas a expressão “contrato de adesão”. O termo concebido para rotular a nova realidade contratual reporta-se a Raymond Saleilles, que a usou pela primeira vez em 1901, quando da publicação em Paris da obra De la déclaration de volonté (contribution à l’étude de l’acte juridique

dans le Code Civil allemand – art. 116 à 144) (cf. RIPERT, Georges. A regra moral nas obrigações civis.

Tradução de Osório de Oliveira, 2. ed. Campinas-SP: Bookseller, 2002. p. 111; cf. também NORONHA, 1991, p. 92, nota 23). Há autores, porém, que mesmo se referindo à expressão “contrato de adesão” conseguem perceber que se trata de duas realidades. Por exemplo, na definição de António Pinto Monteiro, “contratos de adesão” são aqueles em que as cláusulas são “predeterminadas unilateralmente” (tal como os padronizados) e a “liberdade da contraparte fica praticamente limitada a aceitar ou rejeitar, sem poder interferir, ou interferir de forma significativa, na conformação do conteúdo negocial que lhe é proposto” (tal como os de adesão) (cf. MONTEIRO, 1985, p. 340).

direito possam ter, dentro da concepção clássica não há possibilidade de uma resposta plausível aos entraves da nova realidade contratual, principalmente com relação às cláusulas abusivas54.

O novo ambiente da produção e distribuição está infestado de formas de intercâmbio massificadas, sobrecarregadas de um poder impositivo subjacente, que colocam em cheque a concepção liberal do Direito dos Contratos. Ao desvelar o exercício do poder privado, e especialmente a oportunidade de fazer mau uso dele através dos contratos padronizados e de adesão, surgem boas justificativas para maior abertura ao exercício do poder do Estado sobre eles.

Desde logo, pode-se dizer que o capitalismo globalizante e concentrador exige cada vez mais atuações positivas do Estado. As novas formas de contratação escapam da possibilidade de um procedimento de negociação eqüitativa; com isso, se apresenta cada vez mais forte a necessidade de superação do dogma da autonomia privada, que restringe a admissibilidade de intervenção judicial no contrato apenas ao plano externo.

Razões ligadas à racionalização, planejamento, celeridade e eficácia tornam o contrato padronizado e de adesão um processo indispensável de negociação da empresa55. Sua utilização teve início no âmbito interno da empresa, para uniformizar a contratação de trabalhadores. Paulatinamente foram sendo expandidos para a distribuição de bens e serviços aos consumidores, e na atualidade estão sendo implementados na contratação entre empresas e fornecedores não empresários, bem como em relações interempresariais. Ou seja, devido à imensa quantidade de negócios realizados pela grande empresa, ocorre também a massificação dos contratos entre as próprias empresas e, em conseqüência, há necessidade de padronização desses contratos56. Então, hoje, aquele que pretende negociar com a grande empresa, seja essa relação de consumo, seja civil ou empresarial, certamente irá se deparar com um contrato padronizado e de adesão.

54

Sobre o “contrato de adesão” e a possibilidade de inserir cláusulas abusivas cf. PRATA, Ana. Cláusulas de

exclusão e limitação da responsabilidade contratual. Coimbra: Almedina, 1985. p. 319 et seq.; LEOPOLDINO

DA FONSECA, João Bosco. Cláusulas abusivas nos contratos. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 107 et seq.

55 Cf. MONTEIRO, 1985, p. 342.

56 Segundo Renata Mandelbaum, os principais fatores responsáveis pela transformação dos contratos são: a) o

processo de concentração na indústria e no comércio, correspondendo a uma crescente urbanização e estandardização; b)a crescente substituição da negociação individual pela coletiva, na sociedade industrial; c) a expansão das funções estatais de Welfare and social service e; d) alastramento das convulsões políticas, econômicas e sociais (cf. MANDELBAUM, 1996, p. 16). Por sua vez, Arnoldo Wald, em que pese utilizar a terminologia “contrato de adesão” para aqueles que chamamos de “contratos padronizados e de adesão”, leciona também sobre as razões do surgimento desses contratos. Segundo o autor: “O contrato de adesão decorre seja da técnica amplamente desenvolvida do nosso tempo, em que as grandes empresas fixam modelos de contratos que apresentam ao público, seja da interferência do Estado na economia nacional, determinando que certos modelos de contratos só possam ser utilizados após a aprovação governamental, que deverá ser dada pelos órgãos competentes. Trata-se de uma estandardização do contrato, na qual uma das partes impõe o conteúdo do contrato à outra, não havendo entre os contratantes a igualdade jurídica, mas devendo um deles aderir à proposta feita pelo outro, sem que tal policitação admita qualquer aditamento, modificação ou contraproposta” (WALD, 1980, p. 260).

Acresce, ainda, que o processo de aumento do constrangimento da liberdade contratual dos mais fracos não parou: a situação vem se agravando em decorrência do processo de globalização da economia. Mesmo fora das relações de consumo, tem-se o problema da disparidade de poder entre as empresas transnacionais e algumas empresas nacionais; ou, mesmo entre as próprias empresas nacionais, temos umas que são maiores em relação às outras, ou aos contratantes sem poder negocial; todos esses são mais frágeis às estipulações das primeiras. Atualmente as decisões são tomadas pelo conjunto das empresas dotadas de poder econômico, ao qual se submetem os interessados em contratar57. São conseqüências inevitáveis do capitalismo, que tem seu motor na competição e concentração de capital, as quais se alastram na medida em que conseguem utilizar-se da disparidade de poder negocial, bem como dos mecanismos que garantem o cumprimento dos contratos e das demais benesses do Estado.

Assim, se por um lado está assentado que a contratação com base em cláusulas gerais previamente elaboradas, a que a contraparte se limita a aderir, constitui uma faceta típica da sociedade industrial moderna e um modo de negociação imprescindível, funcionalmente ajustado às estruturas produtivas atuais, por outro lado, o que não se pode deixar de se sublinhar é a especificidade dos contratos padronizados e de adesão, que é determinante para a busca de medidas adequadas para enfrentar com êxito os perigos que eles acarretam, como destaca António Pinto Monteiro58.

São esses riscos da nova realidade contratual massificada que fornecem algumas justificativas à abertura de um caminho para exame interno e a declaração judicial de nulidade de cláusulas abusivas em contratos civis e empresariais. Na medida em que se percebe o alastramento dos novos modelos padronizados a todas as esferas da contratação privada, a concepção clássica não resiste à força argumentativa dos problemas imbricados nesse tipo de acordo. Mas isso, como assinala Orlando Gomes, não porque haja alguma espécie de vício do consentimento, ou porque o de alguma das partes seja de menor valor, pois, uma vez que a lei não mede a força das vontades, é irrelevante que uma seja mais fraca do que a outra59. Todavia, como destacou Georges

57 Pode-se dizer que, no “jogo” da contratação moderna, uma tal sociedade não joga e é objeto de um “jogo” que

a ultrapassa completamente. Neto Lôbo, citando Fábio Konder Comparato, mostra que na concepção tradicional a “liberdade” de mercado não era tão agressiva como hoje, o monopólio era excepcional e considerado aberração. No entanto, atualmente as decisões são tomadas pelo conjunto das empresas dotadas de poder econômico, ao qual se submetem as demais unidades, pequenas e médias. Observa Comparato que “a história nos ensina que todo poder, livre de peias, degenera naturalmente em pura força a serviço de seu titular”. Portanto, é veemente a necessidade de limites ao poder empresarial, assim como foi necessário limitar o poder do Estado Absolutista. O poder econômico passou a ser a regra e deve ser exercido segundo uma função social (cf. LÔBO, Paulo Luiz Neto. Condições gerais dos contratos e cláusulas abusivas. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 15-16).

58 Cf. MONTEIRO, 1985, p. 343.

Ripert, “não é a desigualdade dos contratantes, só por si, que torna o contrato suspeito, é o abuso possível emergindo dessa desigualdade”60.

Diversos aspectos demonstram o acréscimo dos riscos nos contratos padronizados e de adesão. Neles estão ausentes as negociações contratuais, assim não há possibilidade de o aderente intervir na conformação do contrato; além disso, a contraparte pode, muitas vezes, desconhecer aspectos importantes da regulamentação predisposta, ou não ter plena consciência do seu alcance. Também freqüentemente a empresa, valendo-se de sua situação de força, pela posição que ocupa no mercado, e da forma como esse contrato é estabelecido, aproveita para nele inserir cláusulas abusivas ou injustas.

Enfim, esses fatores, entre outros, já são suficientes para fazer sentir a necessidade de controle sobre os contratos padronizados e de adesão em geral, não só no nível da tutela da vontade do aceitante, como também no nível de uma fiscalização do conteúdo das cláusulas gerais do contrato, “ditada por razões de justiça comutativa”, como diz Pinto Monteiro61. E acrescente-se, com esse autor:

Embora essa proteção se justifique particularmente no caso de o aderente ser

um mero consumidor final, como dissemos, tal não obsta, porém, a que a

situação de inferioridade, qualquer que ela seja, no caso concreto, de uma

empresa relativamente a outra, justifique igualmente um controlo das

cláusulas injustas ditadas pelo predisponente

62.

Essa perspectiva distancia-se de uma parte da doutrina que pensa a problemática do contrato padronizado e de adesão apenas nas relações de consumo63. Como corretamente ensina Orlando Gomes, não desperta a atenção dos juristas quando a “adesão se dá sem qualquer constrangimento se a parte pode dispensar o contrato”, mesmo que uma parte possa aproveitar-se da situação de superioridade, ou, ao menos, de situação mais favorável, para a imposição de sua vontade, estabelecendo o conteúdo do contrato64. A essa realidade é preciso contrapor algo novo, mais adequado para superar definitivamente a concepção clássica, levando a cabo sua crise terminal.

É sabido que “todos os homens se encontram mais ou menos na sociedade em Estado de necessidade de contratar, porque não podem viver sem contratar”65. Será necessário que o contratante esteja

60 RIPERT, 2002, p. 115. 61

Cf. MONTEIRO, 1985, p. 344.

62 MONTEIRO, 1985, p. 344, nota 779. Conclui o autor: “Haja em vista o controlo estabelecido pelo § 9 da

AGB – Gesetz, assente nos princípios da boa-fé, aplicável mesmo no caso de contratos celebrados por comerciantes, de acordo com o § 24, 2, da mesma lei” (Ibidem).

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Nem por isso desconhecem-se os riscos a que alertam os consumeristas, relativos à supervalorização do CDC ou mesmo à possibilidade de diminuição da tutela prevista aos consumidores. Parte-se do pressuposto de que quanto mais se generalizar o hábito de coibir abusos, tanto mais poderão ser incorporados valores positivos às práticas contratuais, e por isso mesmo não diminuirá a proteção de algum grupo, ou da coletividade.

64 Cf. GOMES, 1991, p. 131. 65 RIPERT, 2002, p. 99.

numa situação de “constrangimento” relacionado a uma necessidade do consumo (como de alimentação, transporte, energia elétrica, etc.) para que seja merecedor de proteção contra imposições rigorosas e, até, draconianas dos mais fortes?

A resposta a essa questão, para quem está preocupado com a coerência da aplicação dos princípios constitucionais planejados para a atuação do Estado — seja em relação à democracia econômica, à distribuição

eqüitativa das liberdades subjetivas de ação, ou à integridade do princípio da livre iniciativa, e principalmente,

em relação à justiça substancial (cf. at. 1º, IV, art. 3º, I, art. 5º caput e art. 170, entre outros, da Constituição Federal) — certamente é de que não há necessidade de o aderente estar “constrangido” por uma necessidade básica do consumo para que seja merecedor de proteção contra imposições rigorosas e, até, draconianas dos mais fortes.

Nesse aspecto, além dos princípios fundamentais dos contratos, que permitem uma realização do controle judicial das cláusulas abusivas, cabe também investigar a eficácia das normas constitucionais, levando a sério a necessidade de congruência entre os princípios constitucionais e a aplicação do Código Civil66. Embora levar a sério os princípios constitucionais não signifique deixar de lado o Código Civil, pela simples observação de que a noção de unidade e hierarquia das fontes normativas impõe que “Código Civil não mais se encontra no centro das relações de direito privado”67. É forçoso reconhecer que, no plano infraconstitucional, esse Código ocupa uma posição de destaque, uma vez que a mesma concepção de sistema jurídico impõe reconhecer que o Direito Civil preserva a posição de Direito Geral68. Todavia, os princípios constitucionais podem auxiliar a construção de um juízo adequado ao conjunto do sistema jurídico. Ademais, esses princípios, para serem efetivamente implementados, certamente requerem que haja a possibilidade de um exame interno sobre o conteúdo dos contratos, para eliminar eventuais imposições dos mais fortes, como se verá no capítulo V.

66 A observância dos princípios constitucionais na aplicação do Código Civil pode se constituir numa via de

renovação do Direito, em contraposição a antigos postulados. Entre tantos outros, cf. NOVAIS, Alinne Arlette Leite. Os novos paradigmas da teoria contratual: o princípio da boa-fé objetiva e o princípio da tutela do hipossuficiente. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Problemas de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p.17-54. p. 34; cf. MORAES, Maria Celina Bodin de. A caminho de um direito civil constitucional. Revista de Direito Civil, São Paulo, n. 65, p. 21-32, jul./set. 1993. p. 24; cf. TICIANELLI, Joelma. Limites objetivos e subjetivos do negócio jurídico na Constituição Federal de 1988. In: LUTUFO, Renan (Coord.). Direito Civil Constitucional. São Paulo: Max Limonad, 1999. p. 47 et seq.; cf. CASADO, Márcio Mello. Proteção do consumidor de crédito bancário e financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 15 e 27. RAMOS, Carmem Lúcia Silveira. A constitucionalização do direito privado e a sociedade sem fronteiras. In: FACHIN, Luiz Edson (Coord.). Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. 2. Tiragem. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 03-29.

67 Cf. MORAES, 1993, p. 24; cf. também NOVAIS in: TEPEDINO, 2001, p.17-54, p. 34.

68 Cf. NORONHA, Fernando. Direito das obrigações: fundamentos do direito das obrigações: introdução à

Além disso, se um olhar atento verifica que, na realidade das negociações, há apenas aparência da liberdade e da igualdade das partes, o que dizer se um direito pressupõe a universalidade do igual direito? Situação que é agravada pela busca de caminhos sempre novos, com renovadas tentativas de cláusulas sempre novas, inteligentemente elaboradas com o fim de conduzir à violação da parte economicamente mais fraca. Aqui está o ponto em que, por causa da liberdade contratual, é tocado o interesse da generalidade. Porém, se a liberdade contratual só se justifica através da premissa da utilização nos limites da função social (art. 421, do C.C.), o Judiciário não deveria estar pronto a intervir para que isso se efetive?

Tudo isso indica que, independentemente de ser ou não uma relação de consumo, o controle interno do conteúdo contratual deve sustentar-se sempre que a parte mais forte, aproveitando-se do seu poder negocial ou da situação de desigualdade, predispõe cláusulas no contrato que, por um lado, internalizam direitos e benefícios, e por outro lado, externalizam custos, impondo à contraparte (mais fraca) obrigações, encargos, ônus, etc., que criam uma situação de grave desequilíbrio contratual.

Em suma, vislumbra-se um novo papel de fiscalização do conteúdo do contrato, que pode ser atribuído, em parte, ao Judiciário, através da revisão contratual por desequilíbrios que surgirem durante a relação contratual e invalidação parcial do contrato por nulidade de cláusulas abusivas estipuladas desde a origem do contrato, em especial no âmbito da contratação padronizada e de adesão em relações civis e empresariais. Essa é uma exigência imposta pela realidade atual das relações socioeconômicas, as quais são matrizes de mudanças na teoria do Direito dos Contratos.

Adiante, será estudada melhor essa realidade. Antes de tudo, cabe dar ênfase ao estágio teórico e destacar que ainda está distante um consenso sobre a admissibilidade de controle interno do conteúdo dos contratos civis e empresariais, pois a teoria contemporânea dos contratos ainda tem um pé no lamaçal do pensamento jurídico do individualismo clássico, e uma ou outra vez dá a mão, pedindo apoio ao novo pensamento jurídico social para sair do atoleiro em que se encontra.

1.3.3 A renovação fragmentada da teoria contratual e o exame do conteúdo dos contratos

No estudo da renovação da teoria contratual cumpre esquadrinhar quais os bloqueios ao exame interno do conteúdo contratual para eventual nulificação de cláusulas abusivas nos contratos civis e empresariais. Entre os principais obstáculos, trata-se, de modo especial, das conseqüências da concepção clássica, mas também se encontram razões legislativas, que no fundo estão ligadas à própria base de sustentação do Direito.

a) O processo fragmentário de ruptura com a concepção clássica

As mudanças econômicas ocorridas durante o século XX introduziram novas dimensões e exigências que passaram a desafiar os princípios contratuais dominantes na teoria clássica. Dentre as principais conseqüências dessas mudanças cabe destacar “a crise da idéia do mercado pensado como um espaço para escolhas voluntárias e a perda da funcionalidade da concepção do contrato como basicamente um conjunto de promessas também voluntárias”69.

Com a busca de superação do paradigma liberal, a concepção clássica do Direito dos Contratos foi confrontada com o paradigma do Estado Social de direito70. Como resultado desse processo evolutivo haverá um longo processo de crise da concepção clássica, apenas muito recentemente surgindo a concepção moderna do Direito dos Contratos, ainda em fase de construção.

Compreende-se a lentidão dessa mudança, pois como diz Habermas: “A transformação sócio- estatal do Estado liberal de direito precisa ser entendida a partir dessa situação inicial. Ela se caracteriza pela continuidade, e não por algo como uma ruptura com as tradições liberais”71. Convém lembrar que desde o último quartel do século XIX iniciou-se a inversão da tendência liberalizante em direção ao crescente intervencionismo estatal72.

Entre os juristas, no entanto, continuou por muito tempo a idéia tradicional que ancorava o contrato apenas no princípio da autonomia da vontade, atribuindo-lhe a força de lei entre as partes. Por isso, até o final do século XX, salvo raras exceções, ainda que se permitisse um exame formal do contrato (capacidade das partes, objeto lícito, possibilidade), por outro lado impedia-se uma análise sobre o seu conteúdo, ou sobre o equilíbrio entre direitos e obrigações das partes, conforme explica Fernando Noronha73.

69

Cf. MACEDO JÚNIOR, 1998, p. 50.

70 Segundo Luiz Edson Fachin: “No plano nacional, a rediscussão crítica do Direito Civil centrou-se na mudança

de paradigmas” (FACHIN, Luiz Edson. “Virada de Copérnico”: um convite à reflexão sobre o direito civil

brasileiro contemporâneo. In: FACHIN, Luiz Edson (Coord.). Repensando fundamentos do direito civil

contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 320).

71 HABERMAS, 1984, p. 261.

72 Para exemplificar, na história da Alemanha, segundo Wieacker, “as únicas prescrições dirigidas à proteção dos

consumidores economicamente débeis encontram-se caracteristicamente, numa lei especial, a Lei de 1894 sobre pagamentos a prestações” (WIEACKER, 1980, p. 551).

Em todo o mundo ocidental, porém, várias vozes se erguiam contra a doutrina da autonomia da vontade, que era ao mesmo tempo “o reconhecimento e o exagero do poder absoluto do contrato”. Observou-se que o contrato servia “para a exploração do homem pelo homem” e consagrava o “enriquecimento injusto dum dos contratantes com prejuízo do outro”74.

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