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As corretas instruções para a iniciação na arte erótica

No documento O AMOR E A CURA DA ALMA EM PLATÃO E JUNG (páginas 52-55)

Capítulo 1- Platão e a Filosofia dos Amantes

2. O Amor no Banquete

2.6. As corretas instruções para a iniciação na arte erótica

A transposição platônica dos antigos ritos esotéricos29, para a iniciação exotérica no amor caracteriza uma ascese educativa. Há um deslocamento do sentimento amoroso de estágios particulares para a multiplicidade e, depois, o retorno à unidade do belo. Esse processo prepara a alma para a contemplação do Belo em si.

O caráter iniciático dessa ascenção teve início, quando Sócrates se uniu a Agaton como refutados pela mulher da Mantinéia. Ele insere uma estrangeira, que é sacerdotisa e que traz um mito inédito de Eros, como filho da Pobreza e do Recurso. Não só ele sentou-se aos pés de Diotima à maneira de um aprendiz, como fez sentar Agaton e todos os que passam a ouvi-la. Os mistérios contêm instruções e através de um jogo discursivo, afirma a potência universal e caráter intermediário de Eros (MACEDO, 2001, p. 92).

Para agir corretamente na iniciação dessas matérias, deve-se começar desde o início da juventude o encontro com belos corpos, se apaixonar por um corpo em particular e nele gerar belos discursos. Contudo, na sequência, se Eros o conduzir corretamente, será necessário observar como o belo associado àquele corpo é o mesmo associado a qualquer outro. Dessa

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Para descrever esta experiência, Platão usa um vocabulário emprestado dos mistérios (especialmente os de Eleusis), e tem sido sugerido que a parte do diálogo que vai do final do discurso de Agathon ao fim do discurso de Diotima representa uma transposição filosófica da iniciação aos mistérios de Elêusis (TIMOTIN, 2012, p.40, tradução nossa).

forma, compreenderá que é una e, a mesma, a beleza que preside a todos os corpos. Passará, assim, a amar todos, diminuindo a intensidade da paixão que sentiu por aquele único corpo, até o considerar insignificante (210b).

Na próxima etapa, há que se aprender a atribuir maior valor à beleza das almas que a beleza dos corpos. Mesmo que a beleza de uma alma seja mínima e muito escassa, deve ser o suficiente para cuidá-la, amá-la e nela gerar belos discursos em benefício do aprimoramento dos jovens. Ao fim, o jovem inevitavelmente será levado a contemplar o belo nas ocupações, nas leis, na contemplação de todo o conjunto que é unido por afinidade. O resultado deve ser a conclusão de que a beleza dos corpos tem pouquíssima importância (210c).

Após contemplar as ocupações é o momento de contemplar a beleza dos vários ramos do conhecimento em sua multiplicidade, escapando à servidão pobre e mesquinha de amar a beleza em uma só criança, uma só pessoa ou uma única ocupação. O mar do belo é vasto e é possível contemplá-lo gerando com todo esplendor belos frutos em discursos, ponderação e colheita de filosofia. A esse ponto, o percurso trará força e crescimento, que resultarão no discernimento de certo conhecimento, cuja beleza ainda não foi revelada (210d).

Ao chegar até esse ponto do caminho na arte do amor, o belo já não se apresenta como um rosto ou um corpo, nem como um discurso ou parte de um conhecimento, nem em coisa nenhuma ou lugar; o belo passa a não ser mutável ou relativo, mas sempre existente e imperecível (211a). O belo toma uma forma única, independente, em si, do qual todas as outras coisas que são mutáveis e perecíveis dele participam, sem que ele sofra a ação de nada. Quando se discerne essa forma de beleza, a capacitação está quase completa para alcançar a meta e apreender o segredo final (211b).

O caminho de iniciação na arte erótica é composto por uma sucessão de etapas. Essas etapas implicam um longo caminho e no seu decorrer, ocorre o amadurecimento e fortalecimento. Em 208c lê-se que a iniciação “deve começar quando jovem”; mais à frente, em 210d diz que são conquistados força e crescimento para discernir um certo conhecimento singular (...). Também o desejo de gerar, de dar à luz e procriar irrompe na maturidade (206c).

As etapas propostas parecem acompanhar, respectivamente, a ascensão da imaturidade à maturidade do viajor. A iniciação começa de uma base tangível, como a maioria das investigações, o que corresponde à jovialidade preliminar do aprendiz. Mesmo a iniciação de Sócrates não se deu do dia para a noite. Ele esteve em diversos encontros com Diotima, nos quais eles prosseguiam com o processo. Isso fica explícito em 207b no trecho que ele diz “Obtive dela todo esse ensinamento em diversas ocasiões em que ela discursava a respeito do erótico.”

Assim, há uma graduação do ensino, pelo qual a divina Diotima conduz os adeptos pelas profundezas do conhecimento do eros, com graus inferiores e superiores da consagração, que o elevam até a suprema epoptia (JAEGER, 1989, p. 506). A noção de amor em Platão parte de um fundamento sensível, a dimensão física do homem. O primeiro exercício amoroso começa com o amor ao corpo. Esse amor, a princípio, não é dirigido a algo puramente espiritual, intelectual ou abstrato (MACEDO, 2001, p. 92, 93).

Mas, os estágios iniciais ou inferiores que partem da beleza do corpo, não são relativos ao corpo ele mesmo, como se o corpo ocupasse uma condição subalterna. Refere-se antes, ao estado da alma, que passa de um estado de incompreensão ao de compreensão da beleza. O corpo humano participa do belo como todas as outras coisas das etapas seguintes, sem que isso resulte em privilégio ou desvantagem. A depender da maturidade do aprendiz, classifica- se como mais fácil a apreensão da beleza na dimensão física do homem, que na espiritual.

Monique Dixsaut (2017, p. 24, 27,28, 29), sustenta que o corpo em Platão não é mau em si, e a encarnação de modo algum é uma queda. Se o corpo fosse mau, não poderia ser belo. É necessário, portanto, um despojamento da visão judaico-cristã sobre o corpo, bem como da distinção alma-corpo de Descartes, que são tradições profundamente arraigadas. Em Platão, o corpo toma a forma do que ele imita, é meio de uma mimética. Fato que não o deixa impune, pois, insensivelmente, imitar resulta se tornar parecido com aquilo que ele imita.

Por outro lado, aí está sua parte de indeterminação natural e, quem sabe, sua liberdade. O corpo significa e manifesta a alma. Essa capacidade mimética do corpo, apontada pela autora, está expressa no diálogo Crátilo da seguinte maneira: “E ainda porque é por ele (o corpo, soma) que a alma significa (semainei) o que ela pode ter para significar. Por essa razão, é corretamente nomeado signo (sema)” (Crátilo, 400c).

Ainda que a filosofia platônica considere que as coisas sensíveis não passem de sombras, ela é atenciosa para com a beleza dos corpos. Se Alcibíades é justo, ou se Cármides é moderado, são quesitos que se põem à prova, mas que possuem belos corpos é indiscutível. Essa beleza é tão evidente, que quando a túnica de um desses adolescentes se entreabre, aqueles que lhe circundam, inclusive Sócrates, entram em transe30. A beleza possui esse privilégio exclusivo de aparecer como ela é, de ser, em sua manifestação, óbvia

Dixsaut (2017, p. 29) aponta também que o mito do Fédon31 é concebido para mostrar que a beleza é a verdade dos corpos. O diamante é a verdade da pedra bruta, como o éter cintila a verdade do ar. Contudo, entre toda essa profusão de belos corpos que se oferecem aos

30 Situação presente no diálogo Cármides. 31

sentidos, o que em nós é “nós mesmos” é a alma. Em proveito do esplendor de tanto espetáculo, ela se arrisca a se perder e esquecer-se de sua própria beleza. Essa beleza que lhe é própria vem do de sua capacidade solo, não de perceber, mas de compreender o que é realmente a beleza. A beleza dos corpos não constitui um corpo, ela é incorpórea, ela é Ideia.

Dito isso, antes de prosseguir, Diotima recorda os passos do correto encaminhamento rumo à arte erótica. O caminho é ascendente, como os degraus de uma escada que levam ao belo superior, partindo de um para dois e de dois para a totalidade dos belos corpos. Evolui-se às belas almas, aos belos costumes, aos belos aprendizados, ao estudo particular sobre o belo em si, até alcançar precisamente o que é o belo (211c).

Ao contemplar o Belo, desta forma única, compreende-se que a vida é realmente digna de ser vivida. Essa visão supera o brilho do ouro, das mais deslumbrantes vestes e de todos os atraentes jovens de aparências impressionantes. Se fosse possível se esqueceria até mesmo das necessidades da carne como, beber e comer, para contemplar e usufruir da companhia do Belo (211d). O efeito que se segue à contemplação do Belo, arremata a instrutora, é o contato com a verdade, a virtude verdadeira. Esse ser humano será o querido dos céus e terá realmente alcançado a imortalidade.

„Apenas considera‟, ela disse, que tão só nessa vida, quando ele olhar o belo do único modo que o belo pode ser visto, somente então lhe será possibilitado gerar não imagens de virtude, mas a verdadeira virtude, uma vez que seu contato não é com a imagem, mas com a verdade. Consequentemente, quando ele houver gerado uma virtude verdadeira e a houver nutrido, estará fadado a se tornar caro aos deuses. Ele, acima de todo ser humano, é imortal. (212a)

Este é o final do discurso em que Sócrates louva a Eros, fazendo-se porta-voz dessa sábia mulher, Diotima, a sacerdotisa da Mantinéia.

No documento O AMOR E A CURA DA ALMA EM PLATÃO E JUNG (páginas 52-55)