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Capítulo 1- Platão e a Filosofia dos Amantes

2. O Amor no Banquete

2.3. A natureza de Eros

A condição necessária para a investigação de um filósofo é a falta de sabedoria. Platão enquadra Sócrates nessa condição, quando ele desconsidera o ponto neutro entre os contrários, belo e disforme, bom e mau, deus e mortal. Sua falta de sabedoria, especificamente no campo daquilo que está “entre”, incluindo o estado epistemológico entre conhecimento e ignorância, tem o objetivo de ressaltar sua posição de aprendiz. Ao mesmo tempo, demonstra esse estado de ser, nem uma coisa nem outra, mas entre elas, como fundamental à teoria do amor e à natureza de Eros (OSBORNE, 1994, p. 101).

Diotima trás à luz a natureza de Eros, admoestando que entre essa dicotomia há outras possibilidades. Quando bem se observa, percebe-se que entre a sabedoria e a ignorância há a opinião correta e, ainda que não se apresente uma razão para esta, se ela fere a verdade não pode ser ignorância, por outro lado, algo destituído de razão não pode ser conhecimento (202a-b).

Da mesma forma, não se tem que constranger Eros a ser disforme e mau por não ser belo e bom. Há que se considerar o μεηατο, a mistura, o trans, algo intermediário. E se não pode ser um grande deus, já que é desprovido de coisas boas e belas, não será necessariamente um mortal. Mas sim, algo intermediário entre o mortal e o imortal, qual seja um dáimon (202c-e).

Os critérios da divindade estabelecidos por Diotima são felicidade e beleza, sabedoria e imortalidade. Eros falha em todos esses critérios, mas não a ponto de se aniquilar na ignorância, uma vez que ele não desejaria isso. O ponto que distancia deuses e mortais é a completude dos primeiros e a ignorância da falta nos segundos. Eros é intermediário porque tem falta, porém deseja. Há uma diferença no interior da ignorância, entre aqueles que sabem que não sabem e aqueles que não sabem que estão em falta.

Nenhum deus ama a sabedoria ou deseja ser tornado sábio. Já o é. E ninguém mais que já é sábio ama a sabedoria. Tampouco o ignorante ama a sabedoria ou deseja ser tornado sábio; há aqui um aspecto em que a ignorância é difícil de suportar, a saber, o fato de uma pessoa que não é bela, boa ou inteligente contentar-se consigo mesma. Aquele que não se julga deficiente não experimenta qualquer desejo daquilo de que não se sente deficiente. (Banquete, 204a)

Os deuses não aprendem e não filosofam, porque já encontram-se em posse de todo conhecimento. Por sua vez, os tolos não manifestam desejo pela sabedoria, pois o verdadeiro

prejuízo da incultura consiste, exatamente, em nada sabendo julgar saber demais. Só o filósofo sabe que não sabe e aspira saber (JAEGER, 1989, p. 507).

Todos os oradores anteriores ao discurso de Sócrates, inquestionavelmente, afirmaram que Eros era um deus. Agora, além de Diotima apresentar um Eros que não é bonito, nem bom, ela desbanca sua divindade pela falta destes atributos. Tamanha inovação quase leva a crer, que o murmúrio de espanto dos convivas de Sócrates foi tão incomensurável, que ainda hoje ecoa pelo espaço. Talvez houvesse nisto algum exagero, não fosse o fato de que alguns anos mais tarde, Sócrates fora acusado de não crer nos deuses, o que culminou em sua condenação à morte, como descreve Platão na Apologia. No entanto, obviamente, ele só introduziu a filosofia, que infernizou todos os pseudo-sábios que estavam no poder político.

Mas até mesmo Sócrates se diz estupefato ao ver-se creditado com uma visão tão radical. Diotima tem que persuadi-lo de que ele havia se comprometido com isso, ao concordar que Eros carece do Bem e do Belo. Sócrates havia afirmado que é universalmente aceito que Eros é um grande deus (202b). Diotima questiona se essa é a opinião de quem conhece ou de ignorantes, ao que Sócrates afirma ser de um e de outros. Diotima redargue com zombaria, afirmando que há, pelo menos, duas pessoas que proclamam que Eros não é um deus, Sócrates por um lado e Diotima por outro.

„Mas como podes dizer tal coisa?‟, eu disse.

„É fácil‟, declarou ela, „não dirias que todos os deuses são felizes e belos? Ou te atreverias a negar que todo deus é belo e feliz?‟

„Por Zeus! Não eu!‟, exclamei.

„E não classificas como felizes os possuidores de coisas boas e belas?‟ „Certamente.‟

„Admitiste, contudo, que Eros, na medida em que carece de coisas boas e belas, deseja essas próprias coisas de que carece.‟

„Sim, admiti.‟

„Ora, como pode ser um deus se é desprovido de coisas belas e boas?‟ „Pelo que parece, de modo algum [o pode ser].‟

„Vês, portanto‟, ela disse, „que não és alguém que considera Eros um deus!‟ (Banquete 202d)

Essa passagem é interessante porque exprime a seriedade e a força do mito naquele contexto. Consequentemente retrata a responsabilidade de Platão e seu mestre ao pensar sob novas perspectivas, inserindo nova função ao mito. Vê-se aqui também, que a condição intermediária de Eros, escapa ao pedantismo dos opostos como “belo e feio”, “bom e mau”. O excesso de virtudes atribuído aos deuses, de uma maneira geral, distanciava-os dos mortais de forma quase irrecuperável.

A natureza intermediária de Eros, explica a sábia, é consonante com sua função, por estar entre o divino e o mortal, esse ser daimônico interpreta e transmite coisas humanas aos

deuses e coisas divinas aos seres humanos. É o meio de toda associação e diálogo das pessoas com os seres celestes, promovendo uma suplementação recíproca seja em estado de vigília ou durante o sono (202e).

Eros é ainda o veículo de toda atividade sacerdotal, divinatória, de encantamentos, profecia, magia, rituais de iniciação e sacrifícios. O amor é, pois, o elo de entendimento, comunicação e, portanto, de ligação entre deíficos e homens que sem ele não se comunicariam. O resultado desse intercâmbio é que o todo se combina em um (202e).

De acordo com Catherine (1994, p. 109), Diotima parece sugerir dois problemas caso não houvesse os intermediários. Primeiro não haveria comunicação entre deuses e homens; segundo, o universo estaria dividido se a parte divina não se unisse à mortal. Mas pensando por outro lado, não seria a existência dos intermediários que possibilitaria os extremos? Se os daimons não existissem, deuses e homens não seriam adjacentes, em vez de separados por um abismo? Entre deuses e daimons e mortais e daimons não há uma separação similar àquela entre deuses e mortais?

Osborne responde a estas questões, alegando que os daimons são interpostos, porque esses intermediários são considerados uma possibilidade lógica.

Essa é uma das razões pelas quais é importante para Platão, ou Diotima, explicar a natureza dos contrários que permitem tal espaço lógico para os intermediários. Parece que o universo de Diotima estaria em perigo de se dividir em duas partes se os intermediários fossem negados, devido a um tipo de dualismo que trata o que são propriamente contrários, como se fossem contraditórios (OSBORNE, 1994, p. 110, tradução nossa).22

Primeiro que, homens e deuses não são tratados como elos adjacentes de uma cadeia mais extensa de seres, como se, por exemplo, animais e plantas fossem também considerados. Em vez disso, são considerados como polos opostos. Deuses estão no extremo de uma escala da qual o homem é o oposto, como perfeito e imperfeito, belo e disforme, sábio e ignorante, imortal e mortal. No discurso de Diotima o intermediário permite um estado que não é nem um, nem outro. Assim, enquanto a inserção de ligações extras em uma cadeia contínua, aumentaria a distância entre o que antes eram elos adjacentes, as intermediações de Diotima preenchem lacunas maximizáveis entre os opostos (OSBORNE, 1994, p. 109).

22 “This is one reason why it is important for Plato, or Diotima, to explain the nature of contraries that

allow such logical space for intermediates. It seems that Diotima's universe would be in danger of falling into two parts if intermediates were denied, due to a kind of dualism that treats what are properly contraries as if they were contradictories” (OSBORNE, 1994, p. 110).

A razão de o amor ter sido eleito como o dáimon que promove a união do todo, está na questão do desejo. Eros se considera responsável pela comunicação do desejo daquilo que falta. Assim, ele permite aos mortais perceber sua falta de qualidades divinas e insufla neles o desejo de possuí-las. Não há um exemplo de natureza mortal que não seja afetada por Eros. Mas isso não significa que não possamos inferir qual seria a natureza mortal na ausência dele. Não fosse pelo amor os homens permaneceriam em eterna ignorância (OSBORNE, 1994, p. 110).

Explica a sacerdotisa, que existem muitos dáimons, dentre os quais Eros é um. Todo aquele que é habilitado no conhecimento sobre o amor é um δαιμονος ανηρ (daimonions aner) – homem espiritual. Quanto aos habilitados nas artes, ofícios manuais e outras matérias, são os trabalhadores manuais. Agaton exaltava, com excesso de adjetivos, sua própria profissão, deslocando o elogio de Eros para si. Erixímaco também inseriu os efeitos de Eros dentro do ofício da medicina. Veremos que Diotima compreende que há múltiplas manifestações de amantes dentro das diferentes profissões, mas só os iniciados no amor são homens espirituais.

Sorvendo todas essas informações e tomando suas notas, Sócrates a indaga sobre a origem ou filiação de Eros, ao que sucede o desenrolar do mito do nascimento de Eros. A genealogia alegórica de Eros, no discurso de Diotima, substitui o lugar daquela de Hesíodo presente no primeiro discurso23, qual seja o de Fedro.

Dessarte, o mito dita que a origem de Eros remonta ao dia do nascimento de Afrodite – uma bela deusa – o que justifica que ele seja seu atendente e servidor, bem como um amante da beleza. Neste dia, os deuses realizaram uma exuberante festa em comemoração a esse nascimento, na qual banqueteavam e se embriagavam de néctar. Do lado de fora, perto dos portões, rondava uma mendiga chamada Pênia, que não possui sabedoria e personifica a pobreza. Ela avistou Poros, um deus sábio, de recursos abundantes adormecendo embriagado no jardim de Zeus. Aproveitando-se da situação, Pênia entrou e deitou-se com Poros, concebendo, assim, Eros (203b).

Coadunando-se com a natureza de sua mãe, Eros convive com as privações, a escassez, tem aspecto rude, enrugado, descalço, não tem lar ou um leito para repousar, ficando sempre nas ruas, nas margens de estradas e ao ar livre. Por outro lado, por força de sua natureza paterna, Eros é intenso, corajoso, impetuoso, um admirável planejador e caçador.

23 No passo 178 b Fedro inicia o primeiro elogio do Banquete narrando o surgimento de Eros como um

dos mais antigos deuses. Para isso, toma a versão do poeta épico Hesíodo que diz, que primeiro veio a ser Caos, depois Gaia e em seguida Eros. Cita também, que o logógrafo Acusilau concordaria em lhe atribuir extrema velhice, bem como Parmênides, que afirma que a Gênese planejou Eros antes de todos os demais deuses.

Sempre tramando estratégias em busca de entendimento, desejoso e amante da sabedoria. É também mestre ilusionista, lança mão de poções e de um discurso bem engenhoso (203d-e).

Dessa forma, a condição intermedial de Eros se reflete em todos os seus atributos, não é mortal nem imortal, pulsa vida, adoece, morre e renasce abundante; não é pobre nem rico, se apossa de grandes recursos e os deixa escapar em seguida; não é sábio nem ignorante, sempre a meio caminho, é, então, filósofo! (204b-c). E apoiada nessa posição média é que Diotima lança a ponte entre eros e a filosofia. Só o filósofo ocupa esse lugar entre sabedoria e ignorância, por isso está apto para a cultura e se esforça sincera e ardentemente por obtê-la. Essa é também a imagem de Eros, oscilante entre os dois extremos, se consome no eterno ansiar e suspirar (JAEGER, 1989, p. 507).

Longe de ater-se a um intelectualismo infecundo e abstrato, o amor em Platão é o que confere sentido à existência humana. Essa experiência de todos os dias, que poderia parecer fragmentada, diversa e separada em múltiplos eventos e ocorrências fatalistas, ganha propósito. Eros une o que estava disperso e desorganizado. Quando se reconhece em Eros um nume e não um deus, a conclusão é que ele filosofa, pois é avido de sabedoria (MACEDO, 2001, p. 87).

A sabedoria diz respeito às mais belas e mais nobres entre as coisas; ora, Eros é amor direcionado para aquilo que é belo e nobre; a conclusão é que Eros tem que ser filósofo, ficando assim entre o sábio e o ignorante. (Banquete 204b)

Eros é o daimon que permite aos mortais perceber sua falta de qualidades divinas e, portanto, desejar possuí-las, fornecendo um elo entre o divino e o mortal. O nume é acessível e torna tudo acessível entre todos, de modo a imputar movimento a extremos, que sem ele, estariam estagnados. Ele é fonte inesgotável de toda a energia espiritual, que atua sem cessar e de modo espiritual sobre si mesmo, como um grande mago e encantador. Enquanto todos, inclusive Sócrates, supunham que Eros seria o amado, Diotima revela que ele é, na verdade, o amante.

No documento O AMOR E A CURA DA ALMA EM PLATÃO E JUNG (páginas 41-45)