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Gerar um ato de imortalidade inerente aos mortais

No documento O AMOR E A CURA DA ALMA EM PLATÃO E JUNG (páginas 48-52)

Capítulo 1- Platão e a Filosofia dos Amantes

2. O Amor no Banquete

2.5. Gerar um ato de imortalidade inerente aos mortais

Na primeira parte da compreensão sobre Eros, apresentou-se um dáimon, sempre em falta daquilo a que deseja como contraste ao deus superabundante de antes. Em seguida, passa-se à noção de intermediário capaz de promover a comunicação e unidade do todo, a cópula mundi. Ao mesmo tempo, o amor é também múltiplo, ainda que abrigado sob outros nomes em tudo que participe do bem. Agora, surge uma etapa mais amadurecida, que revela mais precisamente, que o amor é o impulso que leva à concepção e criação no belo.

Explica a sacerdotiza, que com a chegada da maturidade, a natureza de todos os seres anseia por gerar e dar à luz no belo. A unificação do homem com a mulher é geradora para ambos e, toda geração e concepção é uma ação divina. Pois é a criação do elemento imortal a partir do ser vivo mortal e uma vez que é um ato divino, não pode ser disforme ou sem harmonia. Só o belo se harmoniza com o divino, por esta razão, a beleza precede ao nascimento como Moira27 e Eilituia28 (206d).

27 Moira significa quinhão, porção, lote; o lote ou sorte de cada um, ou seja, destino. As moiras por

serem as senhoras dos destinos, presidem também ao parto e ao nascimento. Por isso são associadas por Platão a Eilituia (PLATÃO. O Banquete, 1972, p. 158, 159, 3v. Nota de rodapé de Edson Bini)

Sustentou-se anteriormente que o amor é o amor das coisas belas, mas a ideia evolui e o amor passa a ser compreendido como o desejo de gerar e dar à luz no belo. O gerar é o movimento que produz continuidade, que faz perpetuar, é a imortalidade dos mortais. Assim, tanto quanto se ama o Bem, há, sobretudo, um amor pela imortalidade (207a).

Platão determina, então, que o objetivo de eros se liga à perfeição de um bem último ao qual ele visa. Essa situação pareceu privar o eros do sentido finito, verdadeiro e imediato, que seria o desejo de algo concretamente belo. Mas é feita justiça na parte seguinte, quando se apresenta a necessidade de saber que tipo de atividade e aspirações merece o nome de eros. E a resposta não apresenta grandes pretensões moralizadoras ou metafísicas, mas se arranca inteiramente do processo natural do amor físico (JAEGER, 1989, p. 509).

O que se observa, diz a estrangeira, é que os que passam pela experiência da gravidez se enchem de júbilo e ficam transbordantes de vida. A gravidez os deixa excitados com o belo, os tornam gentis, predispostos a dar à luz e reproduzirem, pois o amor é capaz de aliviar as suas dores (206d).

Algo semelhante se observa nos animais selvagens quando desejam procriar, ficam tão predispostos eroticamente que parecem doentes por acasalamento. Depois, para alimentar seus filhotes estão dispostos a tudo. Se resgardam na fome e suportam qualquer situação em benefício dos recém-nascidos, travam lutas acirradas para protegê-los, até contra os mais fortes, ainda que estejam fracos (207b).

O princípio que causa o estado erótico nos animais selvagens é o mesmo que se observa nos seres racionais, a natureza mortal busca ser imortal. Para isso, somente recorrendo à geração é possível garantir que uma nova criatura substitua a velha. Afinal, é por um breve momento que a coisa viva se mantém viva. No caso dos seres humanos, mesmo durante a totalidade de sua vida, nunca são os mesmos da infância à velhice. Ainda que seja classificado como a mesma pessoa, ela não mantém as mesmas propriedades sempre. Seu cabelo, carne, ossos, sangue, seu corpo inteiro está em contínua mudança.

Também em sua alma os desejos, opiniões, maneiras, costumes, prazeres, dores e medos estão sempre se extinguindo e vindo a ser. Até mesmo em relação ao saber e à posse de conhecimentos esse fato se faz presente, porque alguns conhecimentos se desenvolvem e outros desaparecem, o que faz com que o homem nunca seja o mesmo. A prática do estudo é uma tentativa de preservar o conhecimento e fazer com que se mantenha, já que ele está em

28 Deusa das dores do parto, da fecundidade e concepção (PLATÃO. O Banquete, 1972, p. 159, 3v. Nota

constante partida. O êxodo do saber caminha para o esquecimento, enquanto o estudo trás novos saberes para o lugar do que se foi (208a).

Em contrapartida, o que é divino não sofre mudanças, mas tudo que é mortal é preservado através da substituição daquilo que se esvai ou envelhece, por algo novo que lhe assemelha. É em vistas da imortalidade que todas as espécies prezam tanto suas crias e demonstram todo aquele zelo e amor (208b). Para Jaeger (1989, p. 510), eros concebido como impulso físico, representa precisamente o afã da própria conservação material da espécie.

Não fosse por este motivo, seria irracional entregar a própria vida por amor da conquista de um nome ou pela construção de uma fama que penetre todo o futuro. Tais conquistas afetam ferozmente o amor de muitos, a ponto de superar o que fazem pelos filhos no que se refere a expor-se aos perigos, investir qualquer soma de dinheiro, aceitar todo tipo de missão e sacrificar suas vidas (208d).

Embora seja conveniente pensar, em primeiro lugar, no ato físico da procriação, ela não se limita ao corpo, mas tem ainda perfeita analogia na vida da alma. A procriação física ajuda a compreender a essência do correspondente processo espiritual. A vontade física do gerar ultrapassa, amplamente, a esfera humana e abarca a imensa maioria dos seres vivos. (JAEGER, 1989, p 509).

Assim, é bastante explícito, que o desejo de imortalidade não concerne exclusivamente à dimensão corpórea. É graças à geração de descendentes carnais, que homens e animais partcipam da imortalidade. Mas a alma, graças ao seu parentesco com o divino, participa da imortalidade tanto quanto o corpo (MACEDO, 2001, p. 90).

Foi esperando a conquista de uma memória imortal de seus próprios atos virtuosos, que Alcestes, Aquiles e Codro imolaram suas vidas e foram preservados pela história (208e). Quanto maior é o grau de virtude do ser, mais ele se dedica aos atos que lhe conferirão distinção indefectível e glória ilustre, pois são, também, apaixonados pelo imortal.

Aqueles que são férteis no corpo expressam o amor sexualmente com as mulheres. Eles gerarão filhos que lhe trarão felicidade, imortalidade e transferirão suas memórias para o futuro. Todavia, os que são férteis na alma mais que em seus corpos, incumbem à alma gerar e dar à luz sabedoria e a virtude em geral (208e).

Esses geradores são os poetas, artífices inventores... Jaeger (1989, p. 510), comenta que, para Platão, Homero, Hesíodo, Sólon e Licurgo são os supremos representantes deste eros na Grécia. Eles geraram, com as suas obras, muita virtude nos homens. Poetas e legisladores são uma só e a mesma coisa com a instrução que suas obras manifestam. Assim manifesta, Platão considera a tradição do espírito grego, desde Homero a Licurgo até Sócrates

e ele próprio, uma unidade espiritual. É entorno da poesia e da filosofia, por mais que em sua opinião o conceito daquela não esteja tão próximo da verdade e realidade, que são atados laços de união da ideia a paidéia, que brotam do eros para se converter em aretê.

O desejo de procriar no belo é inerente à condição humana, pois faz parte dessa natureza engendrar seres materiais e espirituais. A geração material é o que há de perpétuo e imortal nos mortais e encontra seu correlato na geração espiritual, especialmente filosófica, que produz conhecimento e ciência (MACEDO, 2001, p. 89).

Dentre todas as coisas geradas, a moderação e a justiça que dizem respeito à ordenação de cidades e habitações, se destacam, de longe, como as mais elevadas e admiráveis porções de sabedoria (209a). Quando a alma de um indivíduo é tão divina que se engravida de moderação e justiça desde a juventude, ao amadurecer, procurará a coisa bela em que possa gerar e dar à luz.

Um ponto a se destacar é essa relação entre o amor e o lógos. Aquele que ama tende a cuidar do amado do ponto de vista educativo, para capacitá-lo e torná-lo melhor. Na postura educativa, o lógos é essencial, pois que o melhoramento do ser se dá pela profusão intencional e ordenada de discursos. Esses discursos sobre os valores supremos, que traçam o perfil do que deve tratar um homem bom, configuram o processo educativo da alma (MACEDO, 2001, p. 90).

Essa alma jamais dará à luz em algo disforme, acolherá os belos corpos e, se, na sorte, encontrar também uma bela alma, nobre e bem dotada, terá ainda mais satisfação dessa combinação (209b). A esse indivíduo ela dispensará seus recursos, encarregando-se de sua educação, discursará sobre a virtude descrevendo-lhe o caráter do homem bom e suas buscas. Neste contato e companhia do homem belo, ela gera e concebe o que havia dentro de si, recordando sempre dessa beleza, estando eles juntos ou separados, não importa.

Além disso, podem compartilhar o fruto da sua geração que nutre a ambos e os une em sólida amizade, o que configura uma partilha muito mais plena do que a que ocorre com filhos de carne, porque os filhos do espírito são mais nobres e imortais. Basta um olhar sobre as obras de Homero e Hesíodo, ou em Licurgo e Sólon para concluir que seus filhos são preferíveis aos humanos. A tais homens foram erigidos muitos santuários de honra, devido a excelência das virtudes que geraram, algo que jamais acontece a quem gera descendentes humanos (209e).

Estão reunidos no mesmo movimento discursivo, o amor e o lógos, na estrutura da educação grega. O amor pelos rapazes, designado de pederastia, é associado à sua formação

integral, ou seja, espiritual e corporal. Essa educação confere um lugar sui generis à aquisição de virtudes éticas e valores civis (MACEDO, 2001, p. 90).

Após todas essas longas explicações, que constituem as etapas do caminho, Diotima finalmente transmite as corretas instruções da iniciação na arte erótica. Para isso, ela convoca o espírito de Sócrates a estar especialmente atento.

„Até tu, Sócrates, provavelmente poderias ser iniciado nessas matérias eróticas. Tenho dúvidas, entretanto, de que pudesses abordar os rituais e revelações para os quais essas matérias – no que se refere aos corretamente instruídos – não passam de senda. A despeito disso, me ocuparei delas‟, ela disse, „e não pouparei esforços; de tua parte, deves dar o máximo de ti para acompanhar-me.‟ (210a)

O discurso de Diotima move-se colocando sob a ideia de eros toda atividade criadora espiritual. O poder educador de eros, que mantém coeso todo este cosmos espiritual surge como a revelação adequada diante de Sócrates. Mas Diotima o estimula ainda, a se fazer capaz de receber as grandes consagrações e elevar-se até o cume da visão final.

No documento O AMOR E A CURA DA ALMA EM PLATÃO E JUNG (páginas 48-52)