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Necessidade de saber o que é a Alma

No documento O AMOR E A CURA DA ALMA EM PLATÃO E JUNG (páginas 83-88)

Capítulo 2 Sócrates e a Medicina da Alma

2. O Amor e a Alma no Fedro

2.2. Necessidade de saber o que é a Alma

No diálogo Fedro, o amor, essa loucura divina, foi enviado aos que amam, para uma utilidade que não é material. É um delírio superior que visa conduzir a alma à felicidade, mas para isso, a primeira necessidade é a de compreender a natureza da alma (245b).

Antes do mais, para alcançar em todo o ponto a palma da vitória, seria preciso provar que o amor não é enviado pelos deuses para o bem dos amantes e dos amados. De nossa parte, só nos cumpre demonstrar a tese oposta, a saber: que essa espécie de delírio nos foi dada pelos deuses para nossa maior felicidade. É certo que tal demonstração não agradará aos espíritos fortes, esses homens terríveis, mas para os sábios será bastante convincente. O ponto está, inicialmente, em alcançar a verdade a respeito da natureza da alma, assim divina como humana, pela observação de seus atos e afecções (Fedro, 245b-c)

A alma, para Platão, se apresenta como uma realidade ágil e movimentadora, que não pode ser conhecida dialeticamente. É, portanto, um dos mais complexos conceitos tratados pelo filósofo. Ele usa como método de investigação, a observação de seus atos e afecções.

A questão “o que é?” marca a estrutura da maiêutica socrática na maioria dos diálogos platônicos. Ela pressupõe uma ignorância como ponto de partida, um esvaziamento das opiniões, para seguir um trajeto em busca de sabedoria. A essência do que se pretende conhecer é buscada pela porção inteligente da alma, que empreende uma investigação racional, no uso da dialética. Porém, quando esta pergunta se volta para a própria alma, base em que se firma a razão no homem, ecoa a ausência de respostas.

A definição exata do que seja a alma é para Sócrates, objeto de uma longa exposição absolutamente divina (246a). Diante disso, a forma mais imediata de contornar este problema, seria pensar sobre o que a alma não é. Vê-se que para Platão, a alma não é uma essência, uma Forma (eidos), não confere à sua natureza algo definível. No entanto, a impossibilidade de definir o que é a alma não exclui a possibilidade de investigar, como ela é.

No Fedro em 245d, Platão afirma que a alma move a si mesma e não pára de mover- se, é fonte e princípio de movimento para tudo que recebe movimento de fora (como o corpo). Poderíamos concluir, então, que o termo cardeal que compõe a alma é o movimento.

Também no diálogo Sofista, o Estrangeiro afirma para Teeteto que “movimento, vida, alma e phronēsis” devem estar autenticamente presentes ao longo disso que é.

Ora, o ser, uma vez que de acordo com esse argumento, é conhecido pela inteligência, à medida que é conhecido é movido visto sofrer ação, o que afirmamos não pode ocorrer com aquilo que está em repouso.

Correto.

Mas por Zeus, será que nos deixaremos ser facilmente convencidos de que é verdade que o movimento, a vida, a alma e a inteligência não estão realmente presentes naquilo que absolutamente é, que o ser nem vive nem pensa, mas que solene e sagrado, destituído de inteligência, é fixo e imóvel?

Seria admitirmos algo chocante, Estrangeiro.

Mas estaríamos facultados a dizer que tem inteligência, mas não vida? E como poderíamos?

Mas diremos que ambas estão nele, continuando, não obstante, a dizer que ele não as possui numa alma?

Mas que de outra maneira podería possuí-las?

Então diremos que ele possui inteligência, vida e alma, mas que, embora animado, é completamente imóvel?

Ora, todas essas coisas me parecem irracionais.

Assim, deve ser admitido que tanto aquilo que é movido quanto o movimento são. Não há dúvida.

Então, Teeteto, a conclusão é que se não houver movimento, não haverá inteligência em ninguém a respeito de nada em lugar algum. (Sofista 248e-249a-b)

Vizualizar na alma a origem do movimento, é uma maneira de entendê-la sem substancializá-la, e sem separá-la do corpo. Todavia, Dixsaut encontra um termo melhor e retifica sua própria visão, que coincidia com a descrita acima, de que o movimento é o termo genérico que compõe a alma. Ela mantém a finalidade de não dar à alma uma realidade substancial, mas entende que movimento não foi o melhor termo para tal fim. Passa então a dar atenção à noção de potência considerando essa hipótese mais justa. A potência enquanto inerente à alma propicia sua organização (DIXSAUT, 2017, p.14).

De fato, o termo grego δσναμις (dynamis) aparece em toda a obra de Platão como um fio condutor e é curiosamente pouco percebido. Pode-se apreender um desenvolvimento gradativo, de uma lógica da noção de potência, especialmente na República. Sócrates levanta um problema no livro V da República (477c): como definir uma coisa que, não sendo nem essência nem objeto sensível, possui, no entanto, uma natureza própria? Ao diferenciar o filósofo de um amante de espetáculos é preciso diferenciar conhecimento de opinião. Um busca o saber o outro opina, assim, todo exercício de uma capacidade deve ter em sua causa uma potência.

Desse modo, é forçoso reconhecer “que as potências são um número determinado de seres, graças aos quais podemos o que podemos e, em geral, toda coisa pode precisamente o que ela pode” (República 477d). Nesse trecho, Sócrates diferencia as capacidades, poderes ou potências, pelos efeitos que produzem nos objetos sobre os quais atuam, quando não são, em si, legíveis ou definíveis. Para lubrificar a compreensão, segue o texto na íntegra.

_ Diremos que os poderes são um gênero de seres que nos tornam capazes, a nós e a todos os outros agentes, das operações que nos são próprias. Por exemplo, digo que a visão e a audição são poderes. Compreendes o que entendo por este nome genérico?

_ Compreendo.

_ Escuta, pois, qual é o meu pensamento a respeito dos poderes. Não vejo neles cor, nem figura, nem qualquer desses atributos que muitas outras coisas possuem e em relação aos quais faço em mim mesmo distinções entre estas coisas. Não considero num poder senão o objeto ao qual ele se aplica e os efeitos que opera: por este motivo, dei a todos o nome de poderes e denomino idênticos aqueles que se aplicam ao mesmo objeto e operam os mesmos efeitos, e diferentes aqueles cujos efeitos e cujos objetos são diferentes. (República 477c)

Para definir uma potência, Sócrates diferencia seu gênero de manifestação, mas isso não significa que haja uma divisão entre o efeito e aquilo sobre o que o efeito se manifesta. Quando uma potência atua, ela se encontra naquilo sobre o que ela age, sofrendo os efeitos disso tanto quanto opera sobre ele.

No Fedro, cada physis é caracterizada por no mínimo uma dynamis, ou seja, cada natureza possui pelo menos uma potência que a diferencia das demais. Para empreender uma investigação sobre a natureza de algo, o primeiro passo seria pensar se essa natureza é simples ou múltipla. Caso seja simples, é preciso investigar em sua natureza qual a potência que se manifesta, em quê e de que forma sofre e produz seu efeito. Se for múltipla, o mesmo procedimento deve ser adotado para cada um de seus poderes. Esse método permitirá chegar com precisão à essência da natureza do que se investiga (Fedro 270b-e).

No início do mesmo diálogo, Sócrates se recusa a utilizar seu tempo e lazer investigando os mitos que não lhe dizem respeito, enquanto desconhece sua própria natureza. Então, diante de Fedro ele interroga-se: “Será que sou um animal mais complexo que Tífão ou simples e delicado, cuja natureza talvez participe de um misterioso e divino destino, que não se enche com os fumos do orgulho?” (Fedro 230a). Depois propõe buscar a verdade a respeito da natureza da alma (divina e humana) através da observação de seus estados e obras (245c).

Monique (2017, p. 16) encontra em Platão, que toda alma humana ao ser capaz de ser simples e multiforme, não é por natureza nem unificada, nem separada do corpo, nem mesmo indestrutível ou sempre ela própria. Sua unidade/separação, imortalidade, fidelidade a si, são

tarefas, não propriedades, e é executando-lhes ou não que ela manifesta o que ela é. Por isso, depois de sua retificação de termos, Dixsaut conclui que seria por meio da diversidade de suas potências que a potência da alma se revela e, consequentemente, sua natureza.

Quais serão, então, as potências da alma e como elas se articulam e enredam? Como não recuar o problema da alma enquanto suporte no qual se manifesta essas potências? No caso do corpo, as potências que dele participam, se fundem em sua physis ou fisiologia. Já as possuídas por Formas inteligíveis são a expressão de sua própria maneira de ser (ousia). Elas participam de outras Formas e fazem com que estas participem de si, determinando, dessa maneira, sua exclusividade de participação. Mas nenhum desses casos é o que ocorre na alma. Em Platão, a alma é soberanamente especial em atuar sobre e ser afetada por uma realidade, sem ser coisa sensível ou inteligível.

A realidade da alma em Platão parece erguer-se à maneira de uma flor de lótus, que tendo suas raízes em lama submersa, eclodem simétricas pétalas acima da superfície da água. Vê-se a flor, mas não suas origens abaixo do espelho do lago, sobre o que se sustenta de si mesma. Também as potências da alma desabrocham como aponta Monique (2017, p. 16), de um “terceiro gênero de ser”, em que sua physis identifica-se com sua dynamis.

No Fedro, Platão parte do princípio de que o ser vivo é um conjunto de alma e corpo, em que a alma é imortal54. Pois aquilo que tem em si o princípio de movimento, sem sair de si, jamais cessará de mover-se e tudo aquilo que move a si mesmo é imortal (245a).

A alma é imortal por manter-se em contínuo movimento, mas aquilo que move a algo ou é movido por algo e que tem findo esse movimento, deixa de viver. Assim, somente é imortal aquilo que move a si mesmo e que nunca cessa de mover-se, constituindo também a fonte e princípio de movimento para todas as demais coisas que se movem. Retirado das coisas movidas o princípio de movimento, elas se tornam inanimadas (245d).

A imortalidade da alma provém, então, da autonomia de seu movimento que nunca foi gerado. Seu movimento não provém de nada externo, pelo contrário, é princípio gerador que imputa movimento a tudo que nasce. Uma vez que o movimento da alma não teve princípio, haverá de ser, também, indestrutível. Pois, se o princípio perecesse, não poderia renascer, assim como dele nada nasceria, uma vez que seria necessário um princípio. Disso resulta que a fonte da vida e do movimento não teve início e não terá fim, sob pena de estagnar toda a geração das coisas (245d-e).

54 A imortalidade da alma é tema no diálogo Fédon, no qual Sócrates apresenta, detalhadamente, mais

cinco argumentos que sustentam sua hipótese: o argumento dos contrários (70c-72e); da afinidade (78b-84b); a prova negativa da harmonia (84c-86a); e da essência das Ideias (102a-107a).

Visto que não é possível que haja princípio anterior ao princípio, nada pode gerar aquilo que já é princípio. Além de não poder ser gerado, o princípio não pode ser destruído, porque ele não poderia nascer de novo, já que o princípio não é gerado. Essa ligação entre princípio e movimento, implica a determinação do princípio no movimento. Ou seja, o movimento se explica por seu princípio, se não existe este não haveria aquele. A não- existência do princípio do movimento reduziria todas as coisas existentes a uma irreversível imobilidade (CARDOSO, 2006, p. 133, 134).

A outra ligação necessária se dá entre movimento e imortalidade. Aquilo que é princípio de movimento é imortal, justamente porque o princípio não pode ser destruído. Tudo isso se aplica à alma, quando ela passa a compreender, o princípio do movimento do corpo. Para isso, infere-se que o estado característico da matéria seja a imobilidade. Pois, salvo quando a matéria recebe um estímulo exterior, ela tende a permanecer imóvel. Os corpos participando da matéria, só podem movimentar-se espontaneamente porque há neles o princípio de movimento, a alma (CARDOSO, 2006, p. 134).

A alma é, seguramente, para Platão, uma realidade “dinâmica”: nela não há senão movimentos e choques de movimentos – que se pense na imagem da biga alada e no fato de que a descoberta de forças impelindo na alma humana opera-se em favor de seus conflitos. Mas movimentos e conflitos são a expressão de sua potência de animar, fazer viver, orientar- se em direção a certos objetos, de padecer ou disso desviar-se, potência tanto de se pregar ao que é corpóreo quanto de dele separar-se, potência de cuidar de seu corpo e de si mesma, potência de autoconstituição e de autoquestionamento (DIXSAUT, 2017, p. 16,17).

É por isso que a alma não pode ser dialeticamente conhecida, e por isso não há, em Platão, questão mais complexa e mais multiplamente mediatizada que a questão da alma. Como o exposto acima, Sócrates confessa em sua palinódia que dizer o que é a alma, seria o objeto de uma exposição “absolutamente divina e muito longa”. Ele se contentará, então, em dizer com o que ela se parece, pois isso não excede as forças humanas (230a).

Se o famoso questionamento socrático “o que é?” não se aplica à alma, seguimos munidos para a questão sobre quais elementos ela pode atuar e de que pode ela sofrer ação. Uma vez que a alma é princípio e movimento, que no Fedro, o ser vivo é composto de alma e corpo, teremos a vida do corpo condicionada à presença de uma alma. Esta convivência entre eterno e gerado, imortal e mortal, deve resultar na manifestação das potências do terceiro gênero de ser. Neste diálogo Platão satisfaz a inteireza do ser oferecendo uma concepção de alma a partir de uma imagem, ou seja, do mito.

No documento O AMOR E A CURA DA ALMA EM PLATÃO E JUNG (páginas 83-88)