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Sócrates, o porta-voz de Diotima no Banquete

No documento O AMOR E A CURA DA ALMA EM PLATÃO E JUNG (páginas 37-41)

Capítulo 1- Platão e a Filosofia dos Amantes

2. O Amor no Banquete

2.2. Sócrates, o porta-voz de Diotima no Banquete

Aristodemo, o narrador titular do banquete, era um amante de Sócrates, como disse Apolodoro, e isso explica o fato de ele ter adotado o estilo de vida ascético de seu amado. Ele estava descalço, sem os cuidados com a aparência que uma festa exige. Sócrates, por sua vez, escolhe professar seu amor por Agaton, estava de acordo com a imagem que este acabara de fazer de Eros. Apesar de Agaton ter criticado seus predecessores por elencarem as qualidades e não a natureza do objeto, ele acaba incorrendo no mesmo erro. Assim, o Eros de Agaton é feliz, belo, corajoso, temperante, jovem, sábio e poeta. No discurso do poeta trágico, Eros é dotado de todas as qualidades, se aproximando ao máximo da imagem do próprio Agaton.

Esse hiato entre o que Agaton se propõe a fazer e o que ele de fato fez, corresponde ao da aparência de Sócrates e seu discurso. A escolha de Sócrates, de se apresentar de acordo com as características do anfitrião, é uma forma de respeito a ele, por seu comemorado prêmio. Dessa forma, ele não nega aplausos a todos os discursos. Mas ele não pode amá-los senão assim, em aparência. Pois quando ele tem seu momento de fala, vemos que seu reconhecimento se limita à aparência e que esta não vale mais que seu discurso.

Assim, Sócrates começa elogiando o aplaudido discurso de Agaton. Alega estar em real dificuldade para tecer sua fala, depois de ouvir tanta beleza e variedade. Na sequência,

em uma transição quase imperceptível, emenda suas críticas e oposição no tom de sua habitual ironia. Em sua avaliação, a maior parte do discurso do poeta não foi tão maravilhosa, mas o desfecho foi de tirar o folêgo. Isso o faz lembrar a retórica envolvente do “terrível” Górgias, usando propositalmente um trocadilho entre Γοργιοσ (Gorgioy) e Γoργφ (Gorgo), ou seja, Górgias e a Górgona de Homero, cuja visão petrificava as pessoas (198c).

Não é sem razão que Sócrates faz essa menção irônica, pois Agaton é discípulo do sofista Górgias. E qual o desejo por trás do discurso destes sofistas? Se diferir do desejo de aprender que sustenta o discurso filosófico, já não se enquadra como tal. Daí o relevo que Platão dá ao poeta trágico, à sua condição de premiado e à sua posição de antecessor direto do discurso socrático. Como contextualiza Macedo (2001, p. 46), o estilo poético de Agaton representa uma verdadeira tendência cultural na Grécia Antiga. Ele, como o Górgias, são mestres da linguagem, moldam seus dotes artísticos à técnica de falar bem. Por isso, a construção de seu elogio é sofisticada, porém artificial e vazia.

Que os sofistas sejam apresentados como amantes do ganho mais que do saber, ou que os poetas amem mais o elogio que a verdade, nisso não há condenação. Mas é preciso não tomar certas coisas por outras, e para estabelecer a distinção é preciso identificar a orientação do desejo que define cada discurso. É assim que Platão vai realocando o lugar da poesia, da opinião, da filosofia e contextualizando cada domínio aos seus respectivos efeitos.

Essa necessidade se expressa também, porque até bem pouco, os mestres da experiência humana muito antes de serem filósofos, foram os poetas, que eram chamados de sábios. Esses competidores audaciosos pretendiam dominar todos e cada um dos campos bem definidos e, ao constituí-los como uma tese, supunham desvelar a filosofia dentro deles. No Banquete, tem-se o poeta trágico Agaton, e o poeta cômico Aristófanes expresando a tragédia e a comédia da vida, tomadas como o entendimento compreensivo da vida humana. São, porém, a imagem fantasma de seu verdadeiro entendimento, e a filosofia que não é nem o trágico nem o cômico, poderia ser tomada erroneamente por um ou por outro (BENARDETE, 1999, tradução nossa)20

Sendo assim, Sócrates se opõe a todos os outros discursadores. Ele se recusa em dar seguimento ao que estava sendo feito, não podia elogiar Eros àquela maneira. Após adverti- los por terem se preocupado mais com as aparências de louvor à verdade dos elogios, Sócrates faz-se de rogado para iniciar seu discurso. Assume que não poderia rivalizar com os discursos anteriores, já que de sua parte estava pronto para dizer somente a verdade.

20 Todas as citações de Seth Benardete, Socrates and Plato: The Dialectics of Eros. Munich: Carl Friedrich

O que acho é que eu estava completamente equivocado quanto ao método a ser adotado; e foi como um ignorante que concordei em participar dessa rodada de louvor. Portanto. „a língua‟ se comprometeu, mas não „a mente‟. Assim sendo, digo adeus a esse compromisso. Não estou disposto a tecer um elogio nessa linha... nem tenho capacidade para isso. Entretanto, estou pronto, se é do vosso desejo, a falar a mera verdade do meu próprio jeito... não de modo a rivalizar com vossos discursos e ser o alvo de vosso riso. (Banquete, 199b)

Ante a rogativa de todos para que falasse à sua maneira, Sócrates pede permissão para iniciar interpelando Agaton (199c). Neste momento fica clara a coincidência entre filosofia e dialética em Platão. Os recursos da dialética são empregados desviando os superlativos poéticos do discurso de Agaton, para reconduzi-lo ao campo da realidade psicológica.

Esse método socrático apresenta um duplo movimento, que parte da unidade à multiplicidade ou o inverso. Essa ciência de reunir ou dividir precisamente os conceitos, visa determinar, corretamente, a essência dos objetos em análise. Então, a dialética é a verdadeira arte retórica para Platão, que se diferencia das técnicas de persuasão que vigoravam na Grécia em seu tempo (CARDOSO, 2006, p. 95, 98).

Através de um diálogo indutivo, o pensamento de Sócrates e Agaton desemboca no fato de que Eros é necessariamente amor de algo, em vez de não o ser de coisa alguma. Tendo Eros algo a amar, deseja amar esse objeto antes de amá-lo. Considerando que todo aquele que deseja alguma coisa a deseja em virtude de não possuí-la, depreenderam que antes que Eros deseje e ame seu objeto ele não o possui (199d-200b).

Pois então, visto que fizeste uma bela e magnífica descrição de Eros, responde-me o seguinte: devemos entender seu caráter no sentido de tomar Eros como sendo o amor de algum objeto ou de nenhum? Não estou perguntando se ele nasceu de alguma mãe ou pai, pois seria ridículo perguntar se Eros é amor de mãe ou pai, mas é como se eu estivesse perguntando sobre a ideia de pai, se o pai é um pai de alguém ou não. Certamente dirias, se estivesse disposto a dar a resposta correta, que o pai o é do filho ou da filha. Não é o que dirias? (Banquete 199d)

Essa é a primeira orientação sobre Eros, que destaca completamente do princípio de todos os outros discursos. Sócrates chama a atenção para o caráter relacional do amor. Localiza a força explicativa no amante e não no amado, especificamente na necessidade ou falta por parte do amante. Já não há espaço para qualquer tentativa de explicar o amor com base na beleza do amado (OSBORNE, 1994, p. 102). Então, de início e provisoriamente, encontramos o amor identificado com o desejo de algo. O desejo não surge em alguém que tem a posse, mas alguém que carece de algo. Do que se conclui que o deus do amor não é possuidor de todas as qualidades que ele ama, como afirmou Agaton.

Mas o sábio filósofo resolve transitar pela possibilidade contrária à exposta. Suspendendo o que foi admitido e considerando que alguém desejasse o que já possui, aduziu Sócrates, deve-se entender que o que se deseja é a permanência futura daquilo que se possui. Por exemplo, se um indivíduo forte, deseja ser forte, ou ser saudável já sendo saudável, ele é no momento presente forte, ou saudável, ele queira ou não. Mas se ainda assim, ele deseja ser forte ou saudável certamente ele os deseja para seu futuro, que permaneça de posse de tais qualidades no tempo vindouro (200d).

Retornando ao postulado anterior, surge a seguinte questão: Qual o desejo de Eros? Agaton havia afirmado em seu discurso, que Eros ama as coisas belas, e Sócrates acrescentou que as coisas belas são também boas, do que se conclui que, Eros carece tanto de beleza como de coisas boas, porque não as possui. Diante desse resultado, Agaton declara nada saber acerca do deus que acabara de elogiar (201). Então, Sócrates o libera para reproduzir o discurso que ouviu em certas ocasiões de Diotima, uma mulher sábia tanto nessas questões de amor como em várias outras.

Sócrates ao refutar Agaton, relata como foi, por sua vez, refutado por Diotima nos mesmos termos que ele. Essa postura aproxima, novamente, Sócrates de seu anfitrião e os outros convivas. Além da sua aparência concernente à ocasião, ele se junta àqueles que foram refutados, não por ele, mas por Diotima. Esta é uma postura elegante para um amante adotar frente a um anfitrião celebrado, e acaba por gerar empatia para com todos.

No entanto, para Catherine (1994, p. 93) o fato de Sócrates renunciar a autoridade à Diotima, e citá-la como a origem de tudo que ele sabe sobre o amor, é em si, um exemplo da negação socrática do conhecimento. Embora, neste caso, seja de maneira moderada, porque esse conhecimento ele possui, pois já foi iniciado por ela. Verifica-se em 177b ele admitindo que seu único saber seja o da arte do amor, e ele confirmará essa informação no Fedro21.

Então, tece o filósofo os feitos dessa mulher originária da Mantinéia, cidade da Arcádia, lembrando que ela já havia instruído os atenienses quanto à peste, os livrando desta doença por um período de dez anos. Foi ela quem o iniciou nos mistérios da arte erótica, com o sistema de perguntas e respostas, levando-o à mesma situação em que colocara Agaton agora a pouco (201e). A partir deste ponto, Sócrates segue no diálogo com Diotima, deixando-se levar pela ideia dos opostos: “se Eros não é belo e bom, será disforme e mau? Se assim for, não pode ser um deus, será então um mortal?” (202a-d).

21

No Fedro, (257a) Sócrates abre e encerra seus discursos com orações aos deuses. No final da sua palinódia, ora ao Amor, pede perdão pelo primeiro discurso e oferece o segundo como indulgência. Pede que lance sobre ele um olhar benevolente e amigo e que não diminua em nada, nem o prive dessa arte de amar, da qual esse próprio deus lhe fizera um dom.

No documento O AMOR E A CURA DA ALMA EM PLATÃO E JUNG (páginas 37-41)