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O desejo de Eros e a multiplicidade dos amantes

No documento O AMOR E A CURA DA ALMA EM PLATÃO E JUNG (páginas 45-48)

Capítulo 1- Platão e a Filosofia dos Amantes

2. O Amor no Banquete

2.4. O desejo de Eros e a multiplicidade dos amantes

O próximo questionamento de Sócrates é quanto à serventia de um dáimon, com essas características, aos seres humanos. Sua insistência em não perceber o jogo lógico apresentado por Diotima, a faz impulsioná-lo com mais firmeza e didática, como observa Macedo (2001, p. 78). Mas, em vez de repisar informações é lançada uma nova etapa de compreensão sobre

Eros. Propor uma nova questão significa que é preciso avançar no caminho. Pois, é mais proveitoso abranger o alcance, já que o amor é um gênio mais expansivo que apreensível.

Antes, porém, é importante deixar claro, qual o desejo de Eros, para além de sua origem e caráter, já descritos. Ele é principalmente o amor por coisas belas, as coisas belas são boas, e o desejo contido no amor do amante de boas coisas é que elas passem a ser suas. Pois, aquele que obtém coisas boas terá felicidade, que é o propósito final (204d - 205a).

Em Platão, o Belo tem íntima relação com o Bem. Na verdade, todos os valores supremos comungam uns com os outros. O modo de vida filosófico serve ao homem, em última instância, para atingir a felicidade. Se essa vida for organizada em torno de um desses valores supremos, como a Sabedoria, a Beleza, o Amor, a Justiça, a Verdade, os outros virão em acréscimo e a Felicidade será alcançada. A ética platônica é antes uma experiência de educação ou formação da alma (cujos efeitos serão a felicidade), em vez de uma oferta de regras de conduta.

Mas o que é o Bem? Em uma metáfora expressa na República (508e-509a)24, Platão compara o Bem ao sol. Assim como a luz do sol faz ver todas as coisas sobre a Terra, o Bem transmite a verdade aos objetos cognoscíveis. A luz é o terceiro elemento necessário entre a visão e o objeto, para que se dê a percepção. Sem o sol o olho perde o poder de ver e sem o Bem não se reconhece as virtudes.

A analogia entre o sol e a ideia do bem alteia que sem a orientação axiológica correta não é possível conhecimento algum. Esse pensamento é aprofundado no símile da caverna, e a analogia gnosiológica é completada por uma ontológica. Assim como o sol com seu calor garante devir às coisas em crescimento, sem que seja ele próprio o devir, também a ideia do bem garante o ser aos entes. Ainda que ele próprio esteja acima do ser em dignidade e força (SCHÄFER, 2012, p. 46).

Platão elege a Beleza como o mais compreensível e atrativo dos bens, no Banquete ele elege essa tríade, o Bem, a Beleza e o Amor como princípio, destino e caminho. Jaeger (1989, p. 512), compara o “belo e o bem” como dois aspectos gêmeos de uma única realidade, que na

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“É a ideia do bem que confere verdade ao que está sendo conhecido e capacidade ao que conhece. Deves pensá-la como causa da ciência e da verdade na medida em que esta é conhecida, mas, embora a ciência e a verdade sejam belas, pensarás com acerto se pensares que a ideia do bem não se confunde com elas e as supera em beleza. Como aqui é correto considerar que a luz e a visão são semelhantes ao sol, mas não é correto tê-las como o sol, assim também é correto considerar que lá sejam semelhantes ao bem, mas não é correto considerar que uma ou outra seja um bem. Ao contrário, deve-se atribuir um valor ainda maior à natureza do bem” (República, 508e-509a).

língua grega é fundida em uma só palavra “Kalokagathia”. Ela designa a suprema aretê25 do Homem como ser belo e bom, que apreendida em sua essência pura resulta no princípio supremo de todo desejo e conduta humana. Ao mesmo tempo em que é motivo último, que age por uma necessidade interior, é também o fundo determinante de tudo o que sucede na natureza. Por isso, em Platão, existe harmonia integral entre o cosmos moral e o cosmos físico.

No entanto, será que algumas pessoas amam e outras não? Instiga Diotima e logo responde como quem aproveita a porta aberta pela dúvida, dizendo que na verdade, aquilo que denotamos como “amor” é uma forma isolada de amor, mas existem outras formas com outros nomes. A poiesis26 (criação), por exemplo, tem múltiplos significados. Tudo aquilo que não era e vem a ser tem como causa a poiesis, de modo que tudo que se produz nas artes são formas de criação dos criadores (dêmiourgoi). No entanto, os criadores não são chamados de criadores e sim de artistas ou artesãos, que são outros nomes que destacam uma parte dos criadores, o mesmo acontece quanto ao amor (205b-c).

De modo geral, o amor – soberano e contraditório - é todo esse desejo de coisas boas e felicidade, no entanto, recorre-se a ele sob outros nomes. Quem se dedica às finanças, ao esporte ou à filosofia não são designados como quem esteja amando, porém, se dedicam ao amor exclusivamente em uma de suas várias formas, mesmo que esteja sob o nome do todo. E mesmo os que são designados de apaixonados, por buscarem alguém como uma metade que os complete, só é digno de tal alcunha se o bem estiver envolvido. Disso se conclui que os seres humanos amam o Bem e desejam que lhe pertença para sempre (205d-e – 206a).

Diotima antecipa a universalidade e alcance de Eros, para adiantar Sócrates nas etapas do longo caminho a ser percorrido. Trata-se da educação dialética do mestre para com o discípulo, que o capacita na execução das tarefas em matérias de amor. Essa pedagogia erótica libera o discípulo da ilusão, de que o amor exclusivo a uma pessoa seja verdadeiro.

25 Geralmente o termo aretê é traduzido como virtude, mas no grego a palavra tem um campo

semântico consideravelmente maior. Estende-se a fatos éticos, à ontologia, psicologia ou à epistemologia e por isso pode ser entendida como excelência, aptidão, eficiência e perfeição. Tudo isso evidencia a proximidade entre o termo aretê e o bem, pois a presença de determinada virtude condiciona o bem daquilo que ela consiste. A aretê pode ser, assim, considerada o conceito central da obra dialógica, cujo oposto reside no phaulotês ou malignidade (SCHÄFER, 2012, p. 320).

26 O termo poiesis no grego também tem sentido mais abrangente que o de sua tradução como

“poesia”, que indica o trato criativo com as palavras segundo regras e medidas (metra) artísticas. Ela compreende também “criação” ou “produção”. Ainda assim a tradução é insuficiente para reproduzir o jogo de palavras realizado por Diotima, que abre no pano de fundo o tema do fazer demiúrgico. Essa definição está totalmente a serviço da teoria do arrebatamento com que Diotima caracteriza a vida filosófica. Sua introdução como mulher da Mantinéia tem referência intencional com mantis, os videntes em êxtase, que contrastam com o arrebatamento poético, insinuando a antiga dissidência entre filosofia e poesia. Desponta também a censura severa de Platão à arte poética não inspirada (SCHÄFER, 2012, p. 255).

Fixar-se em um único ser reflete a conformação à aparência e ilusão, sem se dar conta da abrangência da realidade inesgotável do belo (MACEDO, 2001, p. 86).

Nessa diferenciação ontológica entre real e aparente, transpõe-se a realidade verdadeira das Formas e o plano mimético das coisas sensíveis. Apesar da perspectiva do sensível carecer da verdade das Formas, ela delineia o início dessa jornada enquanto estímulo. Se ela configura empecilho ou obstáculo devido à ilusão de que a realidade material esgota-se em si mesma, por outro lado, ela intercede o impulso que leva ao ser real. O conhecimento demanda intermediários, e se constitui graças a eles, que são condição da alma em movimento entre dois limites, a ignorância e a totalidade do saber (MACEDO, 2001, p. 86, 87).

Uma vez definido o objeto do amor, Diotima avança e explica que os amantes agem, praticam e se empenham em dar à luz no belo, seja através do corpo ou da alma.

„Ora, se esse é sempre o objeto do amor‟, prosseguiu ela, „como agem os que o perseguem e qual a prática cuja ansiedade e zelo chamamos de amor? O que é efetivamente esse empenho? Podes informar-me?‟

„Bem, Diotima‟, eu disse, „se pudesse fazê-lo, dificilmente seria teu admirador e de tua sabedoria, e estaria sentado junto a ti para ser instruído acerca precisamente dessas questões.‟

„Bem, eu te direi‟, ela disse, „é dar à luz no belo recorrendo para isso tanto ao corpo quanto à alma.‟(206b).

No documento O AMOR E A CURA DA ALMA EM PLATÃO E JUNG (páginas 45-48)