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As deficiências estruturais e as intrincadas relações intra e interinstitucionais

3.4 O ARQUÉTIPO ATUAL DAS POLÍCIAS BRASILEIRAS

3.4.2 As deficiências estruturais e as intrincadas relações intra e interinstitucionais

Não somente no aspecto gerencial, como visto anteriomente, mas também no aspecto estrutural, as polícias estaduais ainda enfrentam sérias inadequações.

De modo geral, embora nos últimos anos tenham sido realizados vários investimentos com o escopo de reaparelhamento das policias dos estados e oferta de apetrechos típicos da atividade policial, inclusive equipamento de proteção individual, ainda podem existir em número inferior a demanda organizacional, ou ainda que esses equipamentos existam nas unidades, nem sempre estão disponíveis a todos os servidores, especialmente aqueles que trabalham no interior.

Se o efetivo de policiais militares vem passando por um aumento e uma renovação gradativa, nem sempre o mesmo ocorre nas Polícias Civis em todo o Brasil, que passam por um envelhecimento do quadro de servidores, que também diminui anualmente em razão de aposentadorias, afastamentos em razão de doenças ou mortes em razão do serviço.

As Polícias Civis por vezes demonstram não reunir todas as condições necessárias para apurar o grande volume de delitos que lhes são encaminhados diariamente, apresentando deficiências no quadro de servidores qualificados para a prestação adequada do serviço de policiamento, além da manifesta escassez de recursos materiais necessários para o atendimento adequado e seguro das ocorrências policiais.

As delegacias de polícia são unidades policiais fixas para a manutenção da administração de operações policiais, investigações criminais, o atendimento ao público, servindo também para a custódia temporária de suspeitos e presos em flagrante delito. Essas

unidades são emblemáticas na materialização das deficiências institucionais acima elencadas e de muitas outras.

Há uma deficiência quanto aos recursos humanos institucionais relativo às questões de vitimização dos profissionais da segurança pública dos estados. Esta temática que foi estudada por Moraes (2010), que destacou que os registros estatísticos marcam um significativo número de policiais civis e militares, bombeiros e agentes penitenciários mortos ou lesionados nos últimos anos, tanto em horário de trabalho ou, fora dele, mas em razão do mesmo.

Todavia, os casos de vitimização não ficam circunscritos apenas às mortes ou lesões físicas, justamente em razão do número expressivo e constante de policiais com problemas psicológicos ou problemas em sua saúde física, somatizados devido ao stress inerente a atividade policial ou a carga horária excessiva de trabalho, cujas jornadas podem ultrapassar às 24 horas ininterruptas, a depender da necessidade do serviço. Sob esse aspecto, verifica-se que são mais frequentemente noticiados casos de ansiedade, descontrole emocional, neurose, paranoia, hipertensão, gastrite, úlcera, câimbras, dores na coluna e nos músculos, além de micoses e alergias (MORAES, 2010).

O fato é que há pouca atenção institucional à questão da vitimização dos policiais tanto no horário de serviço quanto na folga e há o desconhecimento da sociedade em relação a problemas dessa natureza, inclusive de casos de assédio moral, tão comumente praticados nas repartições policiais.

No cenário nacional, as condições de trabalho dos policiais também acabam sendo alvo de severas críticas feitas por servidores, sindicatos, associações, pesquisadores e pela imprensa, ainda que em menor proporção por esta última.

A pouca atenção dada à segurança e saúde ocupacional destes profissionais, pode gerar neles uma sensação de que são desprovidos de qualquer proteção institucional e social, sendo seu sentimento expresso no pensamento difundido entre a classe policial de que os direitos humanos só existem para proteger os bandidos, carecendo as polícias de qualquer tratamento político humanitário em relação às precariedades das condições de trabalho.

Para ilustrar esse problema, destaco que Amorim e Barbosa (2009) apresentam um estudo que verificou o uso de medicamentos ansiolíticos, drogas depressoras do sistema nervoso central por policiais do 4º Batalhão de Polícia Militar do município de Cacoal RO.

Na referida unidade policial foram selecionados 80 policiais militares de um efetivo de 193, tendo sido noticiado que 30 policiais militares, o equivalente a 37,5%, em algum momento da vida, já fizeram uso de medicamentos ansiolíticos em razão da sua atividade policial.

Como apontam Amorim e Barbosa (2009), a frequência de uso na amostra pesquisada é superior aos índices da população em geral, conforme dados da Organização Mundial de Saúde, e essa incidência ocorre provavelmente devido a tensão inerente a ocupação policial que, de alguma forma, pode potencializar o aparecimento de alterações psíquicas e emocionais no referido grupo de servidores.

Poucos os governos estaduais que pensam e efetivamente desenvolvem programas visando à redução dos fatores causadores do estresse e dos transtornos mentais que alcançam os policiais. Mesmo porque há um preconceito do próprio policial em aderir a ações desta natureza, resistindo a tratamentos psicológicos e psiquiátricos, por puro desconhecimento ou por receio de sofrer discriminação de seus colegas de trabalho, ou ainda retaliações institucionais manifestas na possibilidade de afastamento de sua atividade profissional ou o acautelamento de sua arma e distintivo policial.

Outro problema estrutural de grande expressão diz respeito à formação e o aperfeiçoamento profissional dos policias, que encontra uma série de limitações de ordem técnica, funcional e cultural. A prática reflexiva é pouco utilizada nos cursos oferecidos pelos centros de formação policial, o que se verifica na atualidade é uma educação policial de caráter meramente instrucional, descontínuo e em dissonância com a demanda real do trabalho policial nas ruas.

A formação da Polícia Militar é pautada no condicionamento do policial ao cumprimento de regras e a formação dos policiais civis ainda é essencialmente jurídica, não obstante os esforços realizados pela SENASP no sentido de conceber, planejar e executar ações específicas voltadas à educação policial, numa perspectiva voltada aos princípios democráticos.

No aspecto funcional, a maioria dos gestores das polícias não possui uma formação adequada na área da administração e/ou disciplinas afins, o que, na prática, pode resultar e equivocadas ou inadequadas medidas administrativas na gestão de pessoas e na gestão dos recursos materiais.

Apesar de as organizações policiais reconhecerem a necessidade de qualificação do trabalho das policias, o que passa necessariamente pela reformulação das suas políticas de educação e formação, o que ocorre efetivamente, em razão da demanda social por mais segurança, é a reprodução de cursos de formação cada vez mais curtos e pouco aprofundados.

A mencionada superficialidade se manifesta na preparação apressada de instrutores em razão da ausência de profissionais fixos no quadro dos centros de formação. Outro ponto de superficialidade consiste em conteúdos essencialmente técnicos e de caráter não humanistas,

que não são capazes de formar um polical preparado para a lida com os complexos problemas sociais emergentes.

Lamentavelmente, até agora, não houve tempo e espaço para uma profunda e extensa discussão sobre o atual modelo de formação profissional policial. Ainda não surgiu um projeto educacional na área da segurança pública que seja apto a viabilizar uma formação policial pautada em novos parâmetros, valores e padrões de comportamento ético, que valha por toda a vida do servidor para a sedimentação do conhecimento tipicamente policial e que seja mais condizente com a atual apresentação dos conflitos sociais, essencialmente mutantes e complexos.

Historicamente, a atuação policial seguiu vieses que se pautavam no tratamento diferenciado atribuído às pessoas atendidas e às ocorrências policiais, mantendo seus serviços a favor das elites políticas e econômicas, realizando um controle social seletivo, alcançando as classes populares e as minorias socialmente vulneráveis.

Ao atuar dessa forma, a polícia acaba refletindo a realidade social brasileira, i.e., uma estrutura hierarquizada economicamente e uma cultura patrimonialista e clientelista. Neste sentido, Almeida e Mota Brasil (2004, p. 173-74) ao abordarem sobre a atuação da Polícia Civil do estado do Ceará destacam que:

Há dois problemas que envolvem os atendimentos realizados por delegados e inspetores. O primeiro diz respeito à seleção dos casos que realmente são atendidos e que merecem atenção das autoridades , pois ocorrem, muitas vezes, em função do conhecimento que o queixoso ou queixosa tem com o delegado ou com algum policial, como se o trabalho de polícia fosse uma troca de favores. Outro problema está relacionado à falta de preparo da polícia para lidar com problemas emocionais e psicológicos. Algumas vezes, os policiais são muito ríspidos e agressivos e, outras vezes, brandos demais. A busca da solução justa dos casos fica prejudicada pelo rigoroso cumprimento da lei, nos casos que interessa. Noutros, a lei é desprezada na tentativa de conciliação para evitar a realização de inquérito ou amenizar a situação de um conhecido ou alguém acompanhado de advogado que negocia a conciliação.

De modo geral, a atuação da Polícia Civil acaba apresentando deficiências, manifestado num atendimento desqualificado que se verifica nas delegacias, com precária prestação de serviço ao cidadão e pouca efetividade na contenção da criminalidade.

Em regra, o trabalho colaborativo não faz parte do menu das polícias, que encontram nas disputas de cargos e chefias, bem como no contato com os subordinados e na competitividade institucional na contribuição do processo de contenção do crime, inúmeras relações conflituosas entre representantes das duas polícias estaduais ou entre servidores de uma mesma instituição. A lógica que conduz as relações internas e institucionais no âmbito

policial é uma lógica típica de organizações tradicionais, cujos valores advém do princípio do mando e controle.

Sem falar na dificuldade de diálogo externo com as demais instituições parceiras no controle da violência e criminalidade no âmbito estadual ou local, ou seja, os demais atores de segurança pública.

As carências apresentadas pelas polícias estaduais transitam desde a falta de pessoal qualificado e escassez de recursos materiais, passando pelas práticas cotidianas de caráter abusivo, violento e desviante, a falta de transparência nas metodologias aplicadas, a ausência de padrões objetivos de atuação, falhas na formação policial, chegando até o insatisfatório tempo de resposta para o atendimento das ocorrências e os baixos índices de elucidação dos crimes praticados, cuja taxa de esclarecimento estima-se não passar do patamar de 15% (quinze por cento).

A sobrecarga de trabalho e o sobre-empenho da mão de obra policial, o estresse inerente à atividade policial e as demandas resultantes da pressão social e política pela produção crescente de resultados mensuráveis e visíveis, também são integrantes de um problema de base.

Tais aspectos somados resultam em outros efeitos negativos, especialmente em relação à saúde e bem estar dos policiais, que juntamente com as demais deficiências estruturais organizacionais, acabam corroborando para o desprestígio institucional, a ausência de confiança dos cidadãos nas organizações policiais, apontando para a necessária de reorganização do trabalho policial.