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6.1 AS ORGANIZAÇÕES POLICIAIS QUE APRENDEM

6.1.1 Interações e cotidiano no âmbito da Polícia Civil

Após realizar uma narrativa e uma descrição sobre as realizações da gestão da segurança pública no Brasil, em seus variados aspectos, e de dissertar sobre dois dos conceitos que considero formar os pilares de um novo modo de pensar a gestão da formação policial, a partir dessa parte do trabalho, passo a tecer considerações sobre aplicabilidade da segurança humana e do agir comunicativo às ações formativas propriamente ditas de polícia investigativa e ao gerenciamento delas, bem como para a gestão de organizações policiais numa perspectiva aprendente.

Para estabelecer uma base para o processo argumentativo a ser realizado nas organizações, quer seja nas relações hierarquizadas entre os setores e departamento, ou no trabalho interno das equipes de investigação, ou ainda nas relações firmadas entre os atores parceiros da gestão da segurança pública, podemos buscar em Habermas a aplicação dos seguintes pressupostos para o diálogo e o entendimento:

 inclusão (ao menos virtual) de todos os afetados pela questão em pauta;

 distribuição equitativa dos direitos de comunicação, assim, todo sujeito capaz de falar e agir participa das instâncias argumentativas e validativas;

 possibilidade de todo e qualquer sujeito problematizar ou introduzir qualquer asserção processo comunicativo;

 situação isenta de coações ou constrangimentos internos ou externos, isto é, uma situação na qual se admite apenas a força do melhor argumento; e

 sinceridade de todos os participantes na manifestação de suas atitudes, desejos e necessidades (HABERMAS, 2012, p. 112)

O clima organizacional pode melhorar consideravelmente com a diminuição de práticas gerenciais pautadas nos comportamentos individualistas, competitivos e manipuladores e nos cálculos egocêntricos de sucesso, típicos da racionalidade instrumental.

De modo contrário, poderá haver uma acentuada e positiva elevação naquele clima, se a realização dos objetivos individuais dependerem do intercâmbio de atos comunicativos e ficarem subordinados à harmonização de planos coletivos de ação. Ou seja, um falante só poderá alcançar seus objetivos individuais com a cooperação e o reconhecimento da pluralidade de falantes com a qual ele interage.

Esse entendimento pode ser realizado cotidianamente em momentos especiais antes ou depois de ser deflagrada uma operação policial ou como em reuniões das equipes de trabalho. Os participantes podem tomar o roteiro acima para servir de parâmetros para assegurar os padrões produtivos de suas discussões diárias, sem que se foque excessivamente numa racionalidade técnica e instrumental. Justamente para que haja entre todos os falantes e ouvintes o reconhecimento recíproco não como objetos que serão conduzidos para uma ação de êxito, mas sim um reconhecimento subjetivo livre de coação que atribua a todos os policiais civis participantes do processo comunicacional, independentemente de cargo ou classe, a possibilidade de contribuir sinceramente para a melhoria do trabalho investigativo e para o engrandecimento institucional.

Esses encontros ou reuniões cotidianas poderiam ser verdadeiras de sessões de comunicação e diálogo, nas quais os investigadores encontrarão um espaço e um momento apropriado para articularem com os desdobramentos da sua atividade investigativa todos os valores e todas as pretensões organizacionais.

O trabalho colaborativo a ser derivado das sessões de comunicação e diálogo poderá ser bastante proveitoso na medida em que se apresenta como a forma apropriada para realizar diversas tarefas organizacionais, tais como:

 agregação de conhecimentos e experiências da equipe de investigadores, facilitando o trabalho em situações complexas ou atribuindo flexibilidade para mudar a orientação do trabalho em situações novas;

 aumento da qualidade das decisões em equipe é normalmente maior do que a qualidade das decisões individuais;

 incremento da capacidade das equipes que estão na base organizacional influenciarem a trajetória da organização, mais do que se as classes de policiais agissem individualmente.

Em suma, equipes de investigadores atuando de forma coordenada, como propõe o agir comunicativo, gera uma dinâmica positiva para a organização justamente porque, ao agir buscando os intercâmbios comunicativos entre seus integrantes, estabeleça um processo interativo brindado pelo compartilhamento de percepções e ideias, ultrapassando a exclusividade do pensamento do delegado de polícia, autoridade responsável pela presidência do inquérito policial.

Em termos de ação pública, encontramos a ação monológica, centrada na figura do Estado, e a dialógica, compartilhada entre Estado e sociedade. Assim, a segurança pública possui sua dimensão material, focada na razão instrumental, e uma dimensão simbólica, que abre espaço para a ação pública dialogada, permitindo compreender o espaço público como um local para que as questões sociais sejam reconhecidas, debatidas, legitimadas e remetidas para as autoridades, para que sejam elas transformadas em políticas públicas.

No entender habermasiano, esse espaço de discussão e interação é denominado de esfera pública, nela podem ser manifestadas opiniões, comunicados conteúdos e realizadas tomada de posição e todos os assuntos podem ser debatidos na esfera pública, bastando que eles ganhem o status político de temáticas de interesse geral.

Habermas defende a existência de uma esfera pública, ou seja, um espaço público no qual os indivíduos estão livres do domínio político, sendo sujeitos capazes de expor e discutir suas ideias, desde que elas estejam fundamentadas a opinião baseada na razão e tenham a capacidade de serem confrontadas por argumentos racionais (HABERMAS, 2012).

Diante da necessidade de os indivíduos terem a sua cidadania reconhecida pelo Estado, políticas públicas são instituídas e nelas está inserido um conjunto de medidas que visam dar vida ao que está estabelecido normativamente, isso é a chamada validação habermasiana, que se desdobra no reordenamento institucional em face desta nova realidade, que consiste na facticidade habermasiana (HABERMAS, 2012). Por exemplo, a criação e atuação dos conselhos oriundos da sociedade civil, com os quais se amplia o espaço de participação social, com a deliberação e o controle das políticas públicas desenvolvidas e executadas.

Nessa esteira de ideias, apesar dos limites estruturais e das dificuldades operacionais inerentes à implantação de novos processos que demandem mudanças do comportamento, a segurança pública depende da participação ativa dos membros da sociedade. Em suma, a gestão da segurança pública e sua efetivação na vida das pessoas deverão resultar da ação dos mais variados atores sociais e não apenas da ação monológica estatal.

Assim, todos os atores sociais poderão compartilhar da função gerencial, contribuindo para a administração da coisa pública, para a ampliação dos espaços de discussão, a participação nas esferas de controle social e para conquistar avanços significativos na constituição da política de segurança pública no Brasil.

Existem duas vertentes para a efetivação do controle social, em uma delas o Estado exerce seu controle sobre a sociedade e, em outra, a ação de controle se dá por parte da sociedade em relação às ações do Estado, na qual é possível haver o monitoramento, a fiscalização e a avaliação sobre as condições em que as políticas públicas se constituem e se desenvolvem, por exemplo, como ocorre no campo da segurança pública.

Os conselhos comunitários de segurança podem ser espaços privilegiados para o pleno exercício dessa última vertente de controle social, garantindo a preponderância dos interesses públicos sobre os interesses particulares ou restritos a apenas alguns grupos sociais.

Enfim, cabe à sociedade influenciar, de modo dialogado, na fixação da agenda governamental de segurança pública, sendo protagonista nas decisões político-administrativas, além de influenciar nos parâmetros de legalidade, licitude, eficiência e efetividade.

Para Habermas, a sociedade pode ser compreendida tanto como um sistema caracterizado pela racionalidade estratégica quanto como um mundo vivido pautado na racionalidade comunicativa, haja vista que vários problemas sociais podem resultar do processo de colonização do mundo vivido, tais como, o desgaste dos laços sociais, a diminuição do sentido de pertencimento a um grupo, a redução do sentido de compartilhamento, provocar um sentimento de desmoralização e a desestabilização da ordem social, esta última demasiadamente importante para as questões de segurança pública.

Devido ao aumento do dissenso e dos conflitos entre os atores sociais, a atuação da ação comunicativa poderá não ser suficiente para realizar sozinha a integração social, então Habermas (1996) sugere a haja um complementação da comunicação com o ordenamento jurídico, devendo haver uma regulação normativa de interações estratégicas em relação às quais os sujeitos se entendam por intermédio de processos públicos de opinião.

Para Habermas o sistema jurídico realiza a coordenação normativa, devido à plena racionalidade de método pertencente ao Direito, não cabendo à moral fazê-lo, justamente em

razão da sua inacabada irracionalidade de método. Ele entende que existam trocas interativas entre o direito e a moral para que o primeiro possa compensar os déficits cognitivos, motivacionais e organizacionais da segunda (HABERMAS, 2012).

O que se verifica no bojo deste trabalho é a existência de dois modos distintos de gerenciamento organizacional, i. e., uma gestão tecnoburocrática/monológica versus gestão participativa/dialógica e, nesse contexto de contradição, a comunicação exerce papel fundamental na substituição da primeiro modo de gerenciamento pelo segundo modo, sendo trabalhado numa perspectiva de gestão aprendente.

Assim, é preciso identificar possibilidades e obstáculos para que a comunicação vingue como um instrumento de interlocução entre cidadãos e poder público nesse ambiente de diversidade. É preciso ter alteridade, fortalecer os espaços de socialização, descentralizar o poder, ampliar os espaços públicos para a participação social na gestão e não somente para participar do amplo debate sobre os temas a ser incluídos na agenda pública, tudo isso como pressupostos para a democratização se efetivar no país.

Nesse contexto habermasiano, é possível avaliar as possibilidades de implantar políticas públicas que consolidem os processos de comunicação em cada localidade com os representantes do poder público como instrumento de gestão e fortalecimento da participação do cidadão, por exemplo, no acesso à informação e a canais permanentes de comunicação que permitam a expressão de diferentes atores no espaço social.

Vale lembrar que isso não inclui somente a comunicação midiática como canal para viabilizar o espaço de mediação necessário para os processos de gestão organizacional. Resta entender qual seria a medida para que a comunicação do poder público não se restringisse à visibilidade midiática, mas que pudesse ser estabelecida em outro patamar, em outros canais, nos quais a argumentação rumo ao entendimento estivesse presente num espaço de debate e de negociação, visando redirecionar os processos de tomadas de decisões relativas à segurança pública, por exemplo.

Esse potencial de articulação e argumentação social existe e ganha mais força dentro da teoria do agir comunicativo de Habermas, apesar de existirem dificuldades práticas para a implantação de espaços públicos democráticos e plurais de participação e articulação social da segurança pública, seguindo movimentos de publicização das ações do Estado e de controle social a ser exercido pelos cidadãos.

Em que pese ser a participação social resultado de um esforço e de uma construção coletivamente realizados, ela requer da gestão pública desenvolver um forte trabalho educativo que viabilize a população empoderar-se dos mecanismos de gestão, integrando-se a elas. Sem

essa ação educativa intencionada e direcionada, espaços que inicialmente venham a ser destinados à interação entre os atores da segurança pública poderão ser palco de uma reprodução inconsequente e inútil de velhas práticas gerenciais tais como, o clientelismo, do gerencialismo puro, do fisiologismo burocrático etc.

No entender de Habermas, é possível existir uma esfera pública permeável às opiniões, reivindicações e propostas oriundas de segmentos menos participativos, menos expressivos ou simplesmente menos escutados da sociedade, i. e., uma esfera pública que permita a inclusão de outros tantos atores sociais na gestão da segurança pública, no entendimento do que seja interesse público e na definição das prioridades para as políticas públicas, bem como na incorporação de propostas ao processo decisório estatal.

Habermas nos ensina que é possível que a esfera privada, ao se manifestar de modo interativo por meio do agir comunicativo, pode sim passar a integrar e a modificar definitivamente a esfera pública (HABERMAS, 2003a, p. 286).

As redes digitais podem funcionar como uma boa opção de canal de comunicação onde as pessoas disseminam informações e conhecimentos que são do interesse público, onde mobilizam inúmeras pessoas para realizarem ações conjuntas e auxiliam na formação do senso comum e/ou da opinião pública, podendo servir para influenciar os processos decisórios das autoridades públicas ou para direcionar os encaminhamentos das políticas públicas.

Uma vez constatado esse perfil inato e todo esse potencial expressivo, as redes sociais podem funcionar como um espaço público onde acontecem trocas interativas e relações entre sujeitos não associados, capazes de fala e de comunicação, que partilham de interesses e opiniões diversos, que ora podem convergir ou divergir, sem que isso seja um ponto de conflito no processo comunicativo.

Diante de um mundo cosmopolita e globalizado, considerando a velocidade com a qual as informações são disseminadas, a aceitação das redes sociais como um canal democrático para expressão, manifestação e ação das pessoas. Habermas (2012) identifica a comunicação existente entre os homens com a orientação de comportamentos, a formação de identidades e a viabilização de sociabilidades.

A utilização desse veículo como mais um canal pelo qual os cidadãos podem manifestar suas vontades, expressar suas necessidades e expor suas ideias de modo a articulá-las de modo coordenado com outros cidadãos e com o próprio poder público, pode ser algo surpreendente, se tomado sob a ótica da teoria habermasiana da ação comunicativa. Assim, a comunicação é utilizada na construção e transformação de espaços públicos e na ampliação do conceito de

cidadania, atribuindo uma dimensão ainda maior para espaço que Habermas denomina de esfera pública.

Nas relações estabelecidas entre investigadores e cidadãos, na busca da verdade dos fatos criminosos, quer na condição de informantes, testemunhas ou investigados, o agir comunicativo poderia funcionar como um freio para as ações midiáticas da polícia, as sessões de tortura e os abusos de modo geral.

As organizações laboram baseadas na integração das ações dos indivíduos e das equipes de trabalho por eles formada. Essa integração se opera por intermédio dos processos de comunicação interna, haja vista que o resultado do trabalho surge com a coordenação das atividades individuais, nelas há espaço para fixação e verificação do cumprimento de compromissos através da troca de mensagens escritas e faladas entre pessoas e equipes, mas também devem surgir oportunidades para interação, negociação e canalização de confiança entre os sujeitos interlocutores. No plano externo, interinstitucional e com a população, os processos de comunicação também são absolutamente necessários para a manutenção do fluxo contínuo de conversações e negociações.

No aspecto administrativo, agindo de modo intencional na difusão dos valores e diretrizes organizacionais, os gestores das polícias e as lideranças das equipes de investigação devem propiciar o diálogo por toda a organização, promovendo a comunicação bidirecional.

Os gestores devem dar espaço para que escrivães e investigadores, peritos e delegados possam conhecer detalhadamente a agenda organizacional, em termos de prioridades e orientações procedimentais, de modo a contribuírem também para a realização o aperfeiçoamento delas por intermédio de canais de comunicação especialmente concebidos, por exemplo, blogs, fóruns de discussão, teleconferências, comunidades de prática, grupos em redes sociais, sempre trabalhados na perspectiva do agir comunicativo habermasiano.

Para se buscar uma efetivação do intercâmbio de atos comunicantes e da verdadeira interatividade, dentro das organizações policiais tomadas por uma perspectiva aprendente, as lideranças intermediárias e os gestores dos mais variados níveis devem praticar e promover a troca e as interações entre os indivíduos, falando com seus subordinados e não para eles, buscando uma comunicação pessoal e direta, de modo a priorizar a confiança, a verdade, a sinceridade, a legitimidade e a retidão, conforme recomenda a teoria do agir comunicativo.

Faz-se necessária a interação linguística com o outro para encontrar a própria autonomia individual, porque a liberdade não é um atributo de um sujeito monológico, mas sim de um sujeito dialógico, que precisa interagir com outro para encontrar a si mesmo. Os mecanismos de coordenação da ação possibilitam a fixação de uma rede de interações estáveis e regulares, viabilizando a integração social.

A informação sozinha não muda o comportamento, então o objetivo dos gestores deve ser sempre ouvir seus colegas de trabalho, quer sejam seus pares ou subordinados, ao invés de apenas ditar ou repassar ordens e encaminhamentos, deixando a comunicação restrita à superficialidade de transmissão de informações. Assim, será possível estabelecer em sessões de diálogo e comunicação troca de ideias e inverter ou atribuir dupla direção ao fluxo comunicacional que geralmente se dá em único sentido, i.e., de cima para baixo.

No aspecto operacional de polícia investigativa, a liderança organizacional deve ceder algum controle do conteúdo de suas decisões, de modo a partilhar com os integrantes de suas equipes, seus pensamentos, sentimentos e opiniões. Agindo de modo a harmonizar os planos coletivos, coordenando as ações individuais com as mensagens e valores organizacionais, os gestores encontrariam um modo de trazer a racionalidade comunicativa para as suas práticas cotidianas.

Num círculo virtuoso, os investigadores também poderiam participar da atividade investigativa juntamente com sua chefia imediata colaborando de modo autônomo, na medida em que a ação comunicativa estabelece espaços e momentos para que os processos argumentativos ocorram de modo harmonioso e sem coerção interna ou manipulação por parte das autoridades policiais, livres do cumprimento irrestrito de ordens dos seus superiores.

Não será o bastante escolher os futuros membros de uma equipe de governo no âmbito da segurança pública ou de uma equipe de trabalho investigativo dentro de cada unidade policial, assim como também não será suficiente reunir os policiais civis e procurar dizer claramente , ou simplesmente fixar em lei orgânica institucional, o que cada um fará no seu âmbito de atuação esperando que todos saiam trabalhando de modo a cumprir as diretrizes da cúpula.

Essa nova forma de realizar o diálogo organizacional faz nascer um sentimento de pertencimento e de integração entre os policiais civis e a organização policial como instituição fazendo com que todos possam efetivamente compreender a missão institucional, executá-la com maestria e autonomia. Onde cada policial acabaria figurando como embaixador da moralização e do aperfeiçoamento da atividade de polícia judiciária, atuando como membros formadores de opinião e com respeitabilidade social.

Deve ser evitada a utilização excessiva de uma racionalidade instrumental no âmbito das organizações policiais, pois ela provoca a cultura do individualismo e da competitividade como característica gerencial preponderante, geradora de insatisfações, disputas internas, empecilhos para o trabalho colaborativo, frustrações de ordem administrativa e pessoal, dificuldades de relacionamentos entre os pares e instâncias hierárquicas etc..