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5.1 A PERSPECTIVA DA SEGURANÇA HUMANA E A CONCEPÇÃO DA IDEIA DE

5.1.2 A ideia de justiça de Amartya Sen

O ponto central da ideia de justiça cunhada por Amartya Sen (2009) é a percepção da existência de injustiças evidentes, com a identificação daquelas que podem ser vencidas. Essa é uma teoria da justiça no sentido lato que visa eliminar ou afastar as severidades da injustiça manifesta e reforçar a justiça, nunca se propondo a ser uma justiça perfeitamente idealizada.

Trata-se de conseguir que aquelas de injustiças manifestamente remediáveis e/ou superáveis sejam somadas a vontade de eliminá-las. Não se trata tentar conseguir um mundo perfeitamente justo, mas remover as injustiças evidentes na medida do que lhes fosse possível. Assim, neste diapasão de ideias, o ponto de partida para a atuação humana para participação de discussões críticas sempre será o diagnóstico da injustiça.

A ideia de justiça de Sen é central para a tomada de decisões acerca das instituições, dos comportamentos e de outros determinantes da justiça. Ela se propõe a fazer isso na medida em que discorre sobre o que se deve fazer, auxiliando no modo pelo qual se chega a tais decisões, enfim, sendo um guia para a razão prática. Ela inclui os meios para refletir como reduzir a injustiça e incrementar a justiça, procedimento este que serve para determinar se uma particular alteração social pode contribuir para um incremento de justiça na vida cotidiana. Afinal, é preciso fazer uma conexão entre prossecução da justiça e busca da democracia, esta é vista por Sen (2009) como uma argumentação pública.

O uso da razão na ideia de justiça de Amartya Sen está relacionado com a necessidade de se fazer uma argumentação objetiva quando se trata de refletir sobre questões de justiça e injustiça. Assim, faz-se necessário determinar se uma particular alteração social é capaz de trazer incremento de justiça, porque os processos de tomada de decisão dependem disso.

Sen (2009) propõe o uso da razão no diagnóstico da justiça e injustiça, de modo a fazer com que as pessoas saiam de um sentido geral de injustiça, pois os casos de injustiça podem ser bem mais complexos e extremamente sutis, de modo que a verificação de alteração percebida tal como as calamidades observáveis nem sempre se constatará.

Sen (2009) providenciou estabelecer uma base intelectual, através do uso da razão, para permitir aquela saída do sentido geral de injustiça, visando alcançar um diagnóstico raciocinado e então, depois, analisar os meios pelos quais é viável fazer progredir a justiça, e não apenas aperfeiçoá-la.

O mencionado autor defende que a ideia de justiça não é totalmente pautada numa questão de raciocínio, mas exige também que se tenha faro para as injustiças e seja suficientemente sensível a ponto de realizar diagnósticos cotidianamente.

A racionalidade prática pretende viabilizar o incremento da justiça e a redução da injustiça na sociedade ao invés de buscar caracterizar sociedades perfeitamente justas, onde o comportamento das pessoas deve ser inteiramente conforme com as exigências de funcionamento das instituições. Este é um papel instrumental significativo que as instituições acabam ocupando na busca de uma justiça perfeita.

A maximização do interesse próprio e da busca unidirecional dos próprios objetivos representa uma visão exígua de racionalidade humana, contrariando a maximização do cumprimento dos objetivos, que acata as constrições autoimpostas próprias de um comportamento decente, afastado do fundamento exclusivo do autointeresse, conformando-se às exigências mais amplas de racionalidade (SEN, 2009, p. 257).

A teoria de justiça de Amartya Sen não pretende oferecer soluções para as questões acerca da natureza da justiça perfeita, como pretendia John Rawls com a sua teoria de justiça como equidade, mas sim clarificar como haveremos de amplificar ou reforçar a justiça. Como assevera Sen (2009), essa teoria não se manifesta por intermédio de um procedimento analiticamente disjuntivo que procura da caracterização das sociedades perfeitamente justas que sirva para identificar os arranjos ou combinações de fatores perfeitamente justos.

Para a perspectiva de justiça que segue uma rota transcendental, o foco está nas regras e nas instituições perfeitamente justas e apresenta uma visão de justiça centrada em arranjos, como aquela difundida por John Rawls.

Para a perspectiva de justiça que segue uma rota comparativa, como defende Sen (2009), o foco estará nas realizações efetivas das sociedades e nas formas de se obter o progresso, apresentando uma visão de justiça centrada em realizações. Aqui, o ponto de partida será investigar as comparações oriundas das realizações sociais e estas, por sua vez, visam observar os avanços e recuos da justiça na vida cotidiana.

Sen (2009) combate a rota transcendental baseando-se em dois argumentos: a viabilidade e a redundância. Pode não haver um acordo entre as pessoas acerca do que seria a natureza de uma sociedade justa, não sendo viável pautar nesse conceito possivelmente divergente uma teoria de justiça. Alega ainda que não basta identificar e caracterizar uma situação tida como perfeita, mas que não pudesse ser transcendida, que fosse inacessível na prática; então é imperativo escolher entre situações viáveis e fazer comparações entre elas.

O autor fez uma comparação entre ambas vertentes, realizando inicialmente a identificação de quais são as exigências da justiça perfeita, justamente para demonstrar que, quando confrontada com a vida cotidiana, a visão de justiça centrada em arranjos está equivocada em suas abordagens.

Para esta visão, a concepção de justiça é tomada em termos de arranjos ou combinações organizacionais, ou seja, a existência de certas instituições com certas regulamentações e certas regras de comportamento que, se tiverem uma presença ativa delas na sociedade, este seria um indicador de que se estaria a cumprir a justiça.

Diferentemente, para a visão de justiça centrada em realizações conseguidas estará a se fazer justiça quando esta efetivamente progredir, afinal é preciso examinar o que se passa na sociedade, incluindo nesse exame os diferentes tipos de vida que, na realidade, as pessoas conseguem levar perante determinadas regras e instituições, contemplando também nesse escrutínio outras influências que inevitavelmente acabariam afetando as vidas das pessoas e os seus comportamentos. Nesse sentido, Sen (2009, p. 57) aduz que:

A necessidade de um entendimento de justiça assente nas realizações conseguidas liga-se ao argumento de que a justiça não pode ser indiferente à vida que as pessoas podem efectivamente [sic] viver. A importância das vidas dos homens, das experiências e realizações não podem ser suplantadas pela informação que nos chega sobre instituições existentes e regras que funcionam. As instituições e as regras, são, com certeza, de grande importância pela influência que exercem sobre tudo o que acontece, e também elas são parte inseparável do mundo real, todavia essa que é a realidade vigente e realizada vai muito além do quadro puramente organizacional, e inclui em si as próprias vidas que as pessoas conseguem ou não conseguem viver.

Todavia, não é conveniente manter a atenção volvida apenas para o que acontece ou deixa de acontecer, ignorando por completo os processos, esforços e condutas presentes nas realizações sociais e as questões deontológicas subjacentes. Nesse sentido, Sen defende que os resultados de culminação, típicos da perspectiva consequencial de justiça, devem ser evitados e que os resultados compreensivos, representativos da perspectiva deontológica de justiça, são mais apropriados, justamente por fazer em uma ligação mais adequada entre os processos que eventualmente ocorram.

Para exemplificar, Sen (2009, p. 63) diz que uma detenção arbitrária é mais do que a mera captura e detenção de alguém, é precisamente o que a expressão nos diz, uma detenção arbitrária , enfim, não basta olhar o resultado da captura, mas é importante observar quais processos e questões deontológicas estão envolvidas nessa prisão.

Centrar atenção nas realizações efetivas e observar o significado dos processos sociais constituem os fatores imprescindíveis para que se possa fazer uma consideração do tipo compreensiva. Já os processos sociais contemplam o exercício dos deveres e as responsabilidades individuais, porém a efetivação de ambos pode levar a uma reflexão dupla, i.e., fazer o que é certo e não ser bem sucedido ou obter de modo acidental um bom resultado e ficar na ilusão de que foi feita justiça.

O que Sen (2009, p. 132) reforça é que, ao cunhar uma ideia de justiça comparativa, tenta lutar contra as injustiças do mundo, no qual é encontrado um mesclado de lacunas institucionais e comportamentos inadequados, sendo esta a razão que deve mobilizar os homens a montarem instituições que tornem possível o progresso da justiça através do reforço das liberdades, das garantias e do bem estar das pessoas.

Com a sua teoria, Amartya Sen abraça o desafio conceitual de fornecer uma base bem articulada para uma ideia de justiça e o desafio prático de tornar a democracia mais efetiva.

Sen (2009, p. 199) assevera que a existência de eventuais acordos relativos a particulares passos que tendem à ampliação da justiça não implica na obrigatoriedade de se chegar a unanimidades ou acordos totais, sendo possível conviver bem com a incompletude ou com uma boa dose de conflitos não resolvidos. Para resolver os conflitos basta uma ordenação parcial, porém as conclusões devem ter utilidade e ser bem firmadas, de modo a serem plausivelmente justas ou, ao menos, não manifestamente injustas (SEN, 2009, p. 198-199).

É preciso dar uma atenção especial à argumentação pública quando se trata das exigências da justiça, porém, tal argumentação pode ser limitada pela maneira como as pessoas leem o mundo em que vivem, porque elas sofrem uma perigosa influência da posicionalidade individual, que obscurece o entendimento que se pode ter do mundo, trazendo dificuldades no processo de avaliação da justiça e da injustiça. Por essa razão, Sen (2009, p. 238) recomenda que criticamente se tome boa nota das várias perspectivas posicionais e que seja realizado um diagnóstico transposicional, um alargamento comparativo, i.e., encontrando pontos de comparação, em vez de se buscar o objetivo utópico da transcendência.