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6.1 AS ORGANIZAÇÕES POLICIAIS QUE APRENDEM

6.2.3 Fragmentos significativos e sua relação com o conceito de segurança

Para a garantia do equilíbrio desta análise, aos termos-chave, categorias e indicadores receberam tratamento proporcional nas buscas, porém, alguns documentos possibilitaram análises mais detalhadas que os demais conforme o conteúdo abordado em cada um deles, a exemplo do que ocorreu com a unidade de análise segurança humana e seu grupamento.

A segurança humana reforça os direitos humanos, promove o desenvolvimento humano e complementa a segurança pública que é oferecida pelo Estado, porque dá relevância as inseguranças que não foram consideradas uma ameaça para a segurança do Estado, mas que impedem o exercício livre das pessoas em suas escolhas e o crescimento de suas potencialidades. A segurança humana estabelece conexões entre a liberdade de viver sem necessidades, sem medo e a liberdade de agir em prol dos seus interesses pessoais (SEN, 2009).

No âmbito do governo estadual, as políticas públicas saúde, educação, proteção social e de desenvolvimento econômico estão totalmente associadas às políticas de segurança, foi essa constatação que embasou a criação do Programa Pacto pela Vida, que defende essencialmente o direito constitucional à vida dos cidadãos. Por trabalhar de modo transversal com a ideia de segurança pública que deve perpassar as ações desenvolvidas pelas secretarias de estado e ao defender o direito a uma vida plena dos cidadãos, o referido documento acaba abordando de modo difuso e indireto o conceito de segurança humana.

Como o PPV não menciona o termo chave segurança humana e também não traz uma base epistemológica conceitual consistente que pudesse caracterizar as teorias de fundo nele utilizadas, não foi possível vislumbrar uma intenção explícita no documento que evidenciasse o conceito de segurança humana.

Por outro lado, o documento trabalha com a perspectiva de garantia da vida, o bem mais precioso de um ser humano, e a articulação de todas as secretarias de estado. É percebida uma intenção de extirpar todos os principais empecilhos para uma vida digna, preceito este compatível com as dimensões da segurança humana.

Há também um trecho no qual aduz que as ações planejadas para as áreas críticas em termos de criminalidade priorizadas pelo PPV serão realizadas com o objetivo de afirmar direitos e dar acessos a serviços públicos à população-alvo , esse aspecto é elemento defendido por Amartya Sen como um daqueles que faz parte do conceito de desenvolvimento social, ligado ao exercício das liberdades e ao acesso a oportunidades (BAHIA, 2010, p. 1-2).

Ao falar sobre questões do cotidiano da segurança pública, o PLANESP argumenta que as questões de segurança pública ocupavam um lugar secundário nos planos de governo, sendo apresentada como coadjuvante dos projetos sociais e da política econômica desenvolvidos no Estado.

O PLANESP constata que não há como se alcançar o bem-estar social e o desenvolvimento econômico de forma duradoura se a sociedade for predominantemente marcada pela insegurança, de certa forma, ainda que implicitamente, contempla indiretamente o conceito de segurança humana. Num trecho o documento (BAHIA, 2011, p. 16) aduz que:

[...] a criminalidade provoca uma redução na qualidade de vida da sociedade, principalmente pelos danos e perdas decorrentes do sentimento de insegurança, pela diminuição das relações sociais, pela mudança de hábitos da população e pela real perda de vidas.

Vale relembrar que a ideia de segurança deve englobar a ausência do risco de vitimização em relação às práticas delituosas, assim como alcançar a ausência do medo da violência praticada por cidadãos comuns ou por prepostos do serviço público.

O aludido programa deixa de mencionar que a criminalidade limita o uso das liberdades pessoais e que, por esta razão, conforme se vê nesse trabalho, é preciso redirecionar os esforços da segurança pública.

Analisado sob a temática de Amartya Sen, o texto se equivoca ao atribuir ênfase aos aspectos econômicos para medir o desenvolvimento social ao falar que todos os indicadores apresentados no texto, uma vez somados, vêm trazendo os reais prejuízos para o desenvolvimento econômico de nosso país. Nesse sentido, o documento avalia que no Brasil, o avanço da criminalidade, especificamente nos grandes centros urbanos, tem ocasionado grandes custos sociais e econômicos (BAHIA, 2011, p. 47). Também destaco a passagem a seguir (BAHIA, 2011, p. 16-17):

Podemos destacar, pelo menos, três indicadores capazes de demonstrar os reais prejuízos decorrentes do crime: os relacionados à expectativa de vida, os correlatos

ao montante de gastos com a saúde e os que dizem respeito ao desenvolvimento econômico. Os custos sociais e econômicos se dão não apenas pelo volume de recursos econômicos roubados ou gastos em segurança pública e privada, mas, principalmente, pela redução da eficiência do setor legal da economia e da própria migração de recursos e agentes para a atividade econômica ilícita, os quais poderiam estar sendo utilizados no setor legal da economia, com ganhos para toda a sociedade.

Nesse diapasão de ideias, a liberdade dos cidadãos é o que o desenvolvimento promove, é o principal fim do desenvolvimento, mas também, o seu principal meio. Portanto, para que haja desenvolvimento social, é imprescindível que se removam as principais fontes de privação social, sendo a violência uma delas, pois no cenário atual da segurança pública nacional, o que mais se verifica é a negação das liberdades elementares das pessoas.

Para Sen (2009) o desenvolvimento social somente será possível se houver um efetivo processo de expansão das liberdades substantivas, i.e., das liberdades reais que as pessoas desfrutam no dia a dia, que dependem de disposições sociais, disposições econômicas, direitos civis e do progresso tecnológico.

Ao traçar uma nova estratégia que associa medidas de combate e repressão à criminalidade com ações de cunho preventivo, o PLANESP passou a integrá-las às iniciativas sociais e econômicas que objetivam a inclusão social e a ampliação de oportunidades voltadas para as populações mais vulneráveis. De certo modo, esse direcionamento poderia ser encaixado no conceito mais amplo de segurança defendido por Amartya Sen.

O PLANESP/BA - 2012/2015 destaca que a violência provoca inúmeras mortes prematuras, ficando evidente a redução na expectativa de vida especialmente dos grupos vulneráveis, além disso, ela aumenta os gastos públicos com a saúde e as ações de contenção da criminalidade (BAHIA, 2011, p. 47).

O documento ressalta ainda que da criminalidade e da violência emergem danos e perdas decorrentes da mudança de hábitos dos cidadãos, que recebe interferências diretas na sua qualidade de vida haja vista que na medida em que aumenta seu sentimento de insegurança e diminui substancialmente suas relações sociais (BAHIA, 2011, p. 47).

A repercussão negativa da (in)segurança pública na vida das pessoas é notada quando o PLANESP apresenta gráficos comparativos em relação às ações sociais e às estradas, demonstrando claramente que os percentuais da população insatisfeita em relação à segurança pública chegam a 45% (quarenta e cinco por cento).

Amartya Sen (2009) nos faz compreender que esses índices se apresentam dessa forma porque, entre os três aspectos comparados, a segurança pública é aquele que mais interfere no dia a dia do cidadão, porque traz privação no exercício da soberania normal das pessoas em

relação às suas liberdades substantivas, causando um sentimento de impotência devido à passividade enfrentada, casando perfeitamente com o conceito de crise apresentado por Habermas e utilizado nesta pesquisa (2002, p. 12).

Como destaca Amartya Sen (2000), visões mais estreitas de desenvolvimento social levam em consideração apenas as contribuições indiretas, obtidas a posteriori, considerando as relevâncias das liberdades individuais substantivas numa relação causal pura e simples, que influencia o crescimento do Produto Nacional Bruto PNB ou do aumento de renda das pessoas ou da promoção do avanço tecnológico, da industrialização e da modernização social. Entretanto, Sen (2000) aduz que o desenvolvimento social deve ser visto de forma mais fundamental e mais ampla, uma vez que as liberdades substantivas que os indivíduos desfrutam no dia a dia são componentes constitutivos do desenvolvimento. A relação causal é significativa nesse contexto, porém adicional na medida em que o desenvolvimento social requer que se removam as principais fontes de privação das liberdades, que privam os indivíduos da fazerem escolhas, por exemplo, a negligência dos serviços públicos, onde podemos inserir a prestação do serviço policial.

A criminalidade e a violência privam as pessoas de exercer plenamente suas liberdades, devendo ser objeto de intervenção política que busque demovê-las, pois, convergindo nesse sentido, assim reconhece o Plano Estadual, ao ressaltar que condições mínimas de segurança são imprescindíveis para que os indivíduos e a própria sociedade para o alcancem todas as suas potencialidades.

O projeto da Universidade Internacional de Segurança Pública apela para a prevenção e o controle das várias formas de crime, conflitos e violência, na mesma medida em que atribui maior ênfase ao desenvolvimento social e à amplitude da segurança, ressaltando que estes devem sustentar os múltiplos valores do relacionamento humano e que a desenvoltura do conhecimento ali produzido esteja à disposição do aprimoramento da qualidade de vida das pessoas (UNESCO, 2010, p. 5, 1ª parte).

Ao definir segurança pública, o projeto de criação da UISPNU o faz de modo bastante ampliado e assemelhado ao de segurança humana, ultrapassando a mera contenção da criminalidade e redução dos índices, o texto diz que (UNESCO, 2010, p. 8):

[...] isto poderia incluir interesses da aplicação de lei, elementos diferentes como combate de terrorismo ou corrupção onde este é um problema, mas igualmente inclui o meio ambiente, o alimento, a água, a saúde pública, a prevenção de doenças infecciosas, o papel da alfândega relativas a carga e mercadoria, inspeções internacionais da produção alimentar e da manipulação no ponto da origem e no trânsito e em mais.

Para corroborar, o referido documento questiona how can we define a concept like public security ? e como resposta apresenta dois conceitos de segurança humana (UNESCO, 2010, p. 16).

O primeiro deles diz que segurança humana está ligado a qualidade de vida das pessoas e da sociedade ou a qualidade da política governamental a ser adotada. Essa visão assegura que as pressões demográficas, que qualquer coisa que diminua a qualidade de vida ou o acesso aos acervos e potencialidades individuais, que diminua o acesso aos recursos pessoais, e assim por diante, significam ameaças à segurança humana.

De modo diametralmente oposto, qualquer coisa que aumente a qualidade de vida, como o crescimento econômico, as melhorias de acesso aos recursos, o empoderamento social e político e qualquer outro elemento que atue nesse sentido, levará ao aprimoramento da segurança humana:

Human security refers to the quality of life of the people of a society or polity. Anything which degrades their quality of life, demographic pressures, diminished access to or stock or resources, and so on, is a security threat. Conversely, anything which can upgrade their quality of life, economic growth, improved access to resources, social and political empowerment, and so on is an enhancement of human security (UNESCO, 2010, p. 16).

A segunda conceituação diz que segurança humana pode ser vista sob dois aspectos, englobando o sentido de estar seguro, a salvo das ameaças crônicas tais como fome, doenças e repressões. Alcançando também a proteção em relação aos nocivos e inesperados rompimentos que ocorrem no padrão da vida cotidiana, manifestado nos lares, nos trabalhos das pessoas e nas comunidades. Essas ameaças podem existir em todos os níveis de renda e de desenvolvimento, alcançando todos os cidadãos indistintamente:

Human security can be said to have two main aspects. It means, first, safety from such chronic threats as hunger, disease, and repression. And second, it means protection from sudden and hurtful disruptions in the patterns of daily life -- whether in homes, in jobs, or in communities. Such threats can exist at all levels of national income and development (UNESCO, 2010, p. 16).

O documento da UISPNU, nesse trecho, divide a segurança humana nas seguintes categorias: economic security, food security, health security, environmental security, personal security, community security e political security (UNESCO, 2010, p. 16). Essas dimensões também foram contempladas no conceito de segurança humana apresentada nessa pesquisa, o leva a crer que existe uma confluência de sentidos entre a perspectiva dessa pesquisa e o

documento ora analisado. O projeto da UISPNU diz que segurança e liberdade são fatores essenciais para a proteção do planeta (UNESCO, 2011, p. 15).

O texto arremata que segurança humana significa todas as coisas que as pessoas no mundo desejam, ou seja, comida suficiente para sua família, proteção adequada, boa saúde, escolaridade para seus filhos, proteção contra a violência praticada pelos homens ou pela natureza e, ainda, que o Estado não oprima os cidadãos com suas regras, ainda que haja o consentimento destes:

What do we mean by human security? We mean, in its most simple expression, all those things that men and women anywhere in the world cherish most: enough food for the family; adequate shelter; good health; schooling for the children; protection from violence whether inflicted by man or by nature; and a State which does not oppress its citizens but rules with their consent (UNESCO, 2010, p. 17).

O conceito de desenvolvimento humano utilizado neste trabalho (SEN, 2000; HAQ, 2008 apud OLIVEIRA, 2010) é holístico e resulta da confluência de quatro fatores expressos na igualdade de oportunidades para todos os indivíduos em uma sociedade (1), na garantia do acesso às oportunidades no presente e no futuro (2), na viabilização do crescimento econômico e investimento nas pessoas de modo que lhes permita alcançar seu potencial máximo (3) e nas constatações fáticas de que as pessoas estão em condições de fazer escolhas segundo sua livre vontade, estando aptas a influenciar nas decisões políticas que afetam suas vidas (4).

Ainda que modo implícito, ao ressaltar importância da geração de oportunidades à população, o documento menciona um dos aspectos da segurança humana ligados ao desenvolvimento, pois, apesar de não utilizar expressamente o referido termo-chave em questão nesse trecho, faz com que o referido termo se consubstancie em uma das dimensões que integram o conceito de desenvolvimento humano, ou seja, a geração de oportunidades (UNESCO, 2010, p. 5, 1ª parte).

Para Sen (2000) a construção da cidadania está diretamente relacionada à expansão das liberdades humanas e na perspectiva do paradigma da segurança cidadã desenvolvida no PRONASCI, se o foco do programa é o cidadão, a violência é percebida como uma ameaça ao gozo pleno de sua cidadania, então há sintonia entre as duas propostas.

Interessante notar que ao tratar da justificativa para a criação da UISPNU, o documento reproduz o discurso ligado ao caráter transfronteiriço da criminalidade e da necessidade de uma colaboração global, ressaltando que nenhum país pode enfrentar sozinho a epidemia do

crime e da violência, todavia, a cooperação entre governos ainda está muito aquém da cooperação entre as redes do crime organizado (UNESCO, 2010, p. 12).

Se considerado em sua totalidade de ações e projetos, que possuem escopos tão amplos, a acepção de cidadania expressa no PRONASCI poderia ser considerada uma manifestação do conceito defendido por Amartya Sen, porque se assim não for, ficaria difícil compreender porque ações de cunho social estariam inseridas em um programa que trata especificamente da segurança pública, tanto que o programa recebeu de especialistas em ciências criminais críticas nesse sentido, que não são objeto desta pesquisa.

A ideia de segurança humana, apesar de não vir explícita no referido documento, aparece de modo oculto nele quando são trabalhados os objetivos de prevenção, controle e repressão da criminalidade (BRASIL, 2007, p. 3).

Na medida em que se manifesta num conceito de segurança pública que ultrapasse o compromisso de combater a violência cotidiana e reduzir a criminalidade, alcança o aspecto objetivo do conceito de segurança pública, mas, tomada sob o aspecto subjetivo, se ocupa também da diminuição a sensação de insegurança que invade a vida cotidiana das pessoas, quando traz soluções para atacar as causas da violência ao desenvolver as ações sociais dentro do contexto do PRONASCI (BRASIL, 2007, p. 4 e 19-24).

Ainda sob a análise do termo segurança humana, em nenhum trecho do documento Modernização das Polícias Civis Brasileiras foi localizado qualquer palavra, expressão ou frase que pudesse denotar uma necessidade de articular todas essas mudanças decorrentes do processo de modernização com a importância de contribuir para a realização da segurança humana, na medida em que seus direitos e liberdades substantivas são tolhidos pela expansão da criminalidade das ruas e/ou constatação da violência estatal.

De forma mais contundente, mas não menos instrumental, e numa perspectiva aquém daquela fixada pela segurança humana, o referido documento aduz que

a Polícia Civil do século XXI têm esse compromisso, assumir efetivamente seu papel no sistema de justiça criminal, numa maior dimensão, de agência pública cuja missão é a redução e o estabelecimento de estratégias de controle da criminalidade (BRASIL, 2005, p. 69).

O documento Modernização das Polícias Civis Brasileiras trabalha com a estrutura organizacional das polícias civis, que foi considerada dimensão essencial na efetivação da sua atividade investigativa (BRASIL, 2005, p. 36-46).

No tocante a estrutura de recursos humanos contemplou a instituição de duas carreiras administrativas e fixou três carreiras estritamente policiais, com sua redefinição paradigmática defendendo que elas deveriam sair do paradigma estático de mero atendimento nos balcões das delegacias para migrarem para um paradigma de ação investigativa permanente, condizente com a perspectiva da segurança humana (BRASIL, 2005, p. 47-58).

É a segurança humana que estabelece conexões entre a liberdade de viver sem necessidades, sem medo e a liberdade de agir em prol dos seus interesses pessoais (SEN, 2000). Ela reforça a defesa dos direitos humanos, promove o desenvolvimento humano e, na medida em que dá relevância as inseguranças que inicialmente não foram consideradas uma ameaça para a segurança pública, mas que acabam sendo um empecilho para o livre exercício das liberdades das pessoas em suas escolhas e o crescimento de suas potencialidades.

Já a MCN aborda sobre a necessidade de cada ação formativa na área da segurança pública oferecer a oportunidade de conhecer e refletir sobre a realidade social, considerando as diversidades conflituosas existentes no espaço público (BRASIL, 2008, p. 16). Contudo, o documento não chega a mencionar o termo segurança humana, o que impossibilitou estender a análise dos conteúdos em relação à temática, diferentemente aos demais documentos.