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Rui Miguel Zeferino Ferreira

4. As desigualdades e o federalismo

É possível que alterações nas estruturas do governo e da soberania nacional tenham um efeito sobre a desigualdade. Assim, o impacto nas desigualdades dentro de um mesmo Estado pode constituir um fator determinante na modificação dos modelos organizativos de governação. Igualmente, as desigualdades entre os diferentes Estados influem na viabilidade de existência de uma estrutura de organização das soberanias a nível global.

Neste contexto, importa ter em atenção qual o critério de bem-estar que será utilizado para determinar o bem-estar do conjunto dos cidadãos. A clarificação deste critério mostra-se necessária quando nos debruçamos sobre as propostas relativas ao número e dimensão dos Estados, tendo em atenção que para além de garantir a eficiência institucional é necessário que não implique a perda do bem-estar pré- existente para nenhum grupo de indivíduos. Em particular, é necessário perceber se esse bem-estar deve ser aferido pela situação prévia de uma nação, de uma parte da nação ou pelo conjunto da humanidade. Por exemplo, KYMLICKA (2003) adotou um critério universalista, segundo uma visão liberal igualitária, bem como progressista, em que se defende a impossibilidade de sustentar que o bem-estar de alguns indivíduos se faça com o prejuízo de outros. Assim, com base nesse entendimento ter-se-á de avaliar os efeitos que decorreriam da implementação de um projeto federalista, tanto de teor universalista como de teor regional.

Deste ponto de vista, o federalismo só se tornará inaceitável se implicar efeitos negativos sobre o bem-estar de determinados indivíduos para atingir o igualitarismo defendido por algumas teorias de justiça social, que entendemos não ser de acompanhar. Ora, bastará existir um único indivíduo a ser prejudicado no seu bem-estar, mesmo que obtido algum igualitarismo para que não se justifique a introdução de uma modificação. Nessa lógica, o federalismo de escala universal deverá ter-se por afastado, porque o igualitarismo da humanidade seria obtido em prejuízo de muitos indivíduos, o que nesta visão é totalmente inaceitável, tornando-se, pelo contrário, defensável o federalismo de natureza regional, por garantir a existência de uma maior homogeneidade, que levará a que a modificação não acarrete prejuízo no bem-estar para nenhum individuo. Logo, entendemos como adequado o modelo federalista de dimensão mais reduzida, até porque o comércio internacional tornou menos premente a existência de grandes mercados internos, com a vantagem adicional de ser mais favorável pela qualidade e eficiência obtida na governação, que num modelo universalista seria muito complexo de obter.

A questão do bem-estar tem de ser vista em conexão com a questão da desigualdade, sendo que esta se pode verificar dentro de cada Estado-nação e entre os diferentes Estados-nação. Ora, na questão dos diferentes níveis de desigualdade podemos encontrar uma dificuldade momentânea de implementação do modelo federalista europeu, uma vez que recorrendo à comparação das desigualdades existentes entre os diferentes Estados dos Estados Unidos da América e entre os diferentes Estados-membros da União Europeia, resulta que as diferenças são acentuadamente maiores entre os diferentes Estados-membros da União Europeia, o que se agravou progressivamente com o alargamento aos países da europa central e de leste, bem como entre cidadãos dentro do Espaço da União Europeia15. A dificuldade resulta aqui da falta

de homogeneidade no rendimento, que induz a dificuldade de implementar o modelo federalista, por não ser aceitável a quebra de bem-estar quanto a algumas jurisdições e indivíduos sujeitos à agregação. Contudo, este problema não invalida o modelo federal, uma vez que este encontrará a adequada solução com a continuação das políticas de coesão, com vista à aproximação dos rendimentos entre Estados-membros e indivíduos, na mesma lógica em que se obteve uma maior homogeneidade para se atingir a moeda única16.

O sucesso do modelo federalista europeu depende assim da maior homogeneidade dos rendimentos entre as unidades integrantes e entre os diferentes indivíduos, mas sem que isso implique a consagração de limitações à liberdade individual dos indivíduos, pelo que o desafio passa por garantindo a referida liberdade, em especial a económica, atingir uma maior homogeneidade nos rendimentos, caso contrário a governabilidade ou o próprio federalismo serão impraticáveis.

Desta questão resultam também os problemas que se colocam no presente século ao nível das migrações, bem como da pressão ambiental. Alguns autores confrontados com estes problemas têm vindo a defender soluções irrealistas, como a proposta de THOMAS PIKETTY (2013),que não passa de uma quimera utópica. O seu objetivo aparente passaria por eliminar as desigualdades a nível mundial, em especial por entender existir novas desigualdades decorrentes da conexão da globalização com a dinâmica de acumulação de riqueza conseguida pelo capitalismo. Diz-me aparentemente porque subjacente a uma ideia que poucos ousarão criticar está um programa ideológico de puro igualitarismo e de crítica ao modelo capitalista de mercado, que terá como consequência inevitável a limitação da liberdade individual dos cidadãos, em que o federalismo se torna o meio mais adequado de salvaguarda. Essa visão de igualitarismo, que não acompanhamos, esquece os notáveis benefícios conseguidos pelo mercado e pelo capitalismo para a humanidade, não sendo comparável a situação hoje existente com aquela que existia anteriormente ou a que existiria com um modelo marxista. Aliás, nunca como na atualidade a qualidade de vida e a eliminação da pobreza obtiveram resultados tão notáveis.

O referido autor francês identifica como nefasto o facto do modelo de mercado capitalista implicar uma taxa de crescimento do rendimento médio do capital muito superior à taxa de crescimento da economia e da produtividade, com os rendimentos de capital a crescer mais do que o rendimento do trabalho, bem como o facto de gerar uma taxa mais elevada de crescimento do rendimento de capital para as grandes fortunas do que para os pequenos aforradores. Contudo, não se vê que tal seja contrário a um modelo adequado de justiça, pelo que pretender limitar este efeito é que seria contrário ao princípio da liberdade.

Estados Unidos da América um índice de 6 na comparação entre as diferentes jurisdições internas (entre Estados); de 40 entre cidadãos; com um total de 15% a título de percentagem da desigualdade total. Na europa detetou dois factos, por um lado, um nível maior de desigualdade e, por outro, um crescimento da desigualdade à medida que se foram adicionando mais Estados à UE de 15 países. Na UE (15 Estados-membros) apurou um índice de 10 na comparação entre as diferentes jurisdições internas (entre Estados); de 33 entre cidadãos; com um total de 30% de desigualdade total. Estes valores evoluem negativamente quando aprecia uma UE de 27 membros e de 39 membros, com o índice entre jurisdições a atingir respetivamente 23 e 30, e o índice entre cidadãos os valores de 40 e 45, ao que correspondem percentagens de 57% e 67% de desigualdade total.

16 Apesar da grande heterogeneidade no modelo federalista da Índia, na questão dos rendimentos existe uma maior

Ainda assim, com as referidas discordâncias, concorda-se com a conclusão que os novos problemas deste século, como a crise das dívidas soberanas, as migrações e as questões ambientais exigem outro tipo de ferramentas, uma vez que aquelas que têm sido utilizadas pelos tradicionais Estado-nação são insuficientes. Nesse sentido, o modelo federalista regional apresenta-se como adequado, mas não com o objetivo de implementar soluções como um imposto progressivo mundial, porque tal representa um atentado à escala global contra a liberdade individual dos cidadãos, que teria como único escopo condicionar o individuo, e do ponto de vista económico-financeira teria o efeito inverso ao pretendido. Pelo contrário, o modelo federalista é antes necessário para lá das razões que se vem referindo, como a melhoria da governação e a maximização dos mercados capitalistas, para o controlo da democracia, pois conforme afirmou Lord Acton (HAYEK, 2014, P. 259), “o sistema federalista limita e restringe o poder soberano dividindo-o e

atribuindo ao Governo apenas alguns direitos bem determinados. É o único método de condicionar não só a maioria mas também o poder do Povo”. Pois, como adverte HAYEK (2015, p. 269) qualquer autoridade que não esteja sujeita

a um poder político superior poderá facilmente exercer um poder tirânico e irresponsável, pelo que se mostra fundamental que exista um poder que limite as atuações mais nefastas das diferentes nações. Nestas circunstâncias, o princípio federalista corresponde ao único modelo de associação de diferentes povos que pode criar uma ordem internacional que preserve a independência e salvaguarde verdadeiramente a democracia. Isto é, tratar-se-á do único modelo que concretiza os ideais do direito internacional, o qual deve garantir para além de tudo o resto a inexistência de tiranias do Estado sobre o individuo. Assim, torna-se necessário continuar a avançar com o federalismo, em especial na União Europeia apesar das dificuldades identificadas, não apenas ao nível legislativo, mas também no patamar da cultura federativa, que será um dos poucos elementos que falta no processo integrativo, para lá da referida homogeneidade de rendimentos.

5. Conclusões

A dimensão dos Estados pode na realidade afetar o nível de vida dos indivíduos, mas torna-se necessário compreender os efeitos sobre as desigualdades dentro dos Estados e entre os diferentes Estados, bem como a correlação existente entre os mercados e as instituições. Nesse âmbito, torna-se cada vez mais urgente o debate entre o modelo federalista e a supremacia da conceção de Estado-nação, numa época de pós-modernidade e de grandes mutações económicas, sociais e políticas.

O atual Estado de bem-estar foi construído com fundamento num contrato social baseado na ideia da existência de Estados-nação soberanos, mas a globalização, o comércio internacional, a integração económica e a revolução tecnológica são fenómenos que implicam um novo contrato social, que por sua vez exigem uma nova arquitetura institucional, baseada num novo modelo governativo de natureza federalista. O federalismo permite a valorização do indivíduo, da sua liberdade e da sua individualidade, e não o egoísmo como alguns criticam as teorias individualistas. As bases económicas do federalismo têm a capacidade de melhor se adaptarem às novas características deste século, que serão a existência de sociedades cada vez mais heterógenas, de uma economia de serviços e não tanto industrial, de uma sociedade de

informação massificada, de mobilidade internacional de pessoas e capitais, de pressões migratórias, de concentração mundial da riqueza e de instabilidade económica, financeira e climática.

Neste âmbito, entendeu-se que a melhor forma de lidar com os novos desafios passaria por contabilizar a democracia política com a globalização, através de formas de governação federativas, prescindindo da ideia de Estados-nação. De acordo com o apresentado este modelo permitiria assegurar que a humanidade seria mais eficiente e equitativa, uma vez que esta última não pode ser alcançada sem um modelo consolidado de eficiência. Por fim, concluiu-se, em termos de eficiência, sobre as vantagens da existência de mercados de maiores dimensões.

Num mundo real em que não existem modelos perfeitos, e que o próprio mercado dentro das instituições imperfeitas não deixa de ser o mais perfeito, as formas de governação por recurso ao federalismo podem ajudar a combinar os mercados, a satisfação dos interesses dos indivíduos e as economias de escala. Em particular na União Europeia, quando se olha para o seu projeto no século XXI, o mesmo não poderá deixar de exigir a edificação de um federalismo regional europeísta, pacifista e democrático, no qual o pacto político e o contrato social têm de se adaptar às características do capitalismo deste século e aos desafios globais que se colocam a toda a humanidade.

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