• Nenhum resultado encontrado

Université de Reims Champagne-Ardenne (França)

Sumario

Introdução – 1. A espetacularização do Tribunal – 2. O incentivo à individualização e politizaçao do Tribunal – 3. A ausência de claridade das decisões – 4. Conclusão

Introdução

Se a Constituiçao brasileira impõe o caráter público das sessões de julgamento dos órgãos jurisdicionais brasileiros (art. 93, IX), essa obrigação foi amplificada no caso do Supremo Tribunal Federal – STF.

Através da Lei n. 10.461 de 2002, a TV Justiça foi criada para “divulgação dos atos do Poder Judiciário e dos serviços essenciais à Justiça” (art. 1°). Trata-se de um canal público de televisão, não-lucrativo, administrado pelo próprio STF e com uma programação restrita a temas do Judiciário. É através deste casal que, no 14 de agosto do mesmo ano, iniciou-se a prática de transmitir ao vivo as sessões de julgamento do Plenário do STF.

Muito embora não seja exclusividade da justiça constitucional brasileira a transmissão de tais sessões de julgamento,50 no Brasil ela possui o diferencial de ser ao vivo e não submetida a uma aprovação prévia do

Tribunal. Além disso, o STF também se diferencia por ser a primeira Corte suprema (e/ou constitucional) do mundo a possuir um canal no Youube para a retransmissão da programação da TJ Justiça, após assinatura de um accordo com a Google Inc. em 2009.

À época da promulgação da referida Lei, o Ministro Marco Aurélio defendia a transmissão de tais sessões de julgamento em nome da transparência do Tribunal e sua aproximação com a sociedade.51 No mesmo

sentido, outros membros do STF também defendem a transmissão ao vivo das sessões de julgamento em nome da visibilidade e da transparência do Tribunal52 - um discurso bastante justificável face a importância

adquirida pelo STF na atualidade.

49 Doutoranda contratual na Université de Reims Champagne-Ardenne, Mestre em Direito Constitucional e Direitos Fundamentais pela Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne e Mestre em Direito Publico pela Université Paris V – Descartes. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná.

50 Sobre o tema, ver: CARTER Edward L.. “Supreme Court Oral Argument Video: A Review of Media Effects Research and Suggestions for Study”. Brigham Young University Law Review, 2012, iss. 6, p. 1745 e HO Y Kyu, “Cameras in the Courtroom in the Twenty-First Century: The U.S. Supreme Court Learning from Abroad?”. Brigham Young University Law Review. December 2012, iss. 6, p. 2010-2011.

51 TV Justiça. Documentário TV Justiça 10 anos. 13.8.2012. Acesso em 1.5.2017. URL:

https://www.youtube.com/watch?v=CamBItfAuGQ.

52 Neste sentido: TV Justiça. Documentário TV Justiça 10 anos. 13.8.2012. Acesso em 1.5.2017. URL :

https://www.youtube.com/watch?v=CamBItfAuGQ; GOMES Joaquim Benedito Barbosa. “Barbosa diz que juízes têm mentalidade pró impunidade”. In HAIDAR Rodrigo. Consultor Jurídico. 2.3.2013. Acesso em 1.5.2017. URL:

Porém, se a transmissão de tais sessões de julgamento possui o mérito de aproximar a justiça constitucional da sociedade, ela não é sem riscos. Assim, muito embora o tema mereça um estudo empírico mais aprofundado, a transmissão ao vivo das sessões de julgamento do STF pode ser criticada por transformar as audiências do Tribunal em um espetáculo (I), incentivar o individualismo de seus membros (II) e impactar a qualidade de suas decisões (III).

I. A espetacularização do Tribunal

Em 2009, o vídeo do então Ministro do STF Joaquim Barbosa e do Ministro Gilmar Mendes discutindo agressivamente em plena sessão de julgamentos foi extensivamente divulgado e debatido na mídia.53 Ainda,

durantes os anos de 2012 e 2013, caracterizados pela Presidência de Joaquim Barbosa no STF e do julgamento da ação popular n. 470 (popularmente chamada de “mensalão”), o Plenário do STF foi palco de diversas discussões, acusações entre seus membros e discursos agressivos – o que, mais uma vez, atraiu a atenção popular.

Mesmo se episódios como esses não são a regra das audiências do STF, a agressividade dos debates e as acusações pessoais realizadas nestes episódios ultrapassam as fronteiras de um debate jurídico – o que instiga a reflexão sobre o o estímulo provocado pelas câmeras na sala de julgamentos a este tipo de comportamento.54 Na realidade, o sentimento teatral do STF existe pelo simples fato das sessões de

julgamento serem realizadas publicamente – como indica a doutrina.55 Porém, quão tonificado é este tipo

de comportante pela amplificação da exposição pública do Tribunal através das câmeras?

Nos Estados-Unidos, onde há uma forte mobilização em favor da transmissão ao vivo das audiências, os membros da Suprema Corte se opõem especialmente em razão deste risco. Como a então Justice Souter afirmou: “o poder judiciário nao é uma instituição política nem uma indústria de divertimento.”56 Na

realidade, o risco da transmissão dos vídeos das audiências é o de fazer prevalecer a lógica do espetáculo que não condiz com o Poder Judiciário.57

Neste sentido, Eros Grau, posicionando-se contra a presença das cêmeras nas salas de audiência, já afirmou que o julgamento exige uma enorme serenidade que é dificilmente obtida quando os Ministros estao submetidos à uma lógica de mediatização incentivada pelas câmeras.58 Na mesma linha,

Dalmo de Abreu Dallari afirma que o STF deve transmitir uma atitude de “sobriedade e respeito »59 - o que

é impossível quando as audiências sao transmitidas ao vivo e integralmente a todos os telespectadores.

53 A título de exemplo: https://www.youtube.com/watch?v=ioWehAoxoa0 com mais de cem mil visualizações

https://www.youtube.com/watch?v=1Vp_gp2F_-U com mais de duzentos e cinquenta mil visualizações.

54 MEDINA José Miguel. “Juízes do Supremo são mediáticos”. Consultor jurídico. 27.4.2014. Acesso em 1.5.2017. URL:

http://www.osconstitucionalistas.com.br/juizes-do-supremo-sao-midiaticos.

55 GARAPON Antoine. Le gardien des promesses: le juge et la démocratie. Paris: Éd. Odile Jacob, 1996, p. 87.

56 À l’original: “The judiciary is not a political institution, he said, "nor is it part of the entertainment industry." (On Cameras in Supreme Court, Souter Says 'Over My Dead Body'”, New York Times, 30.3.1996. Acesso em 1.5.2017 15.2.2016. URL:

http://www.nytimes.com/1996/03/30/us/on-cameras-in-supreme-court-souter-says-over-my-dead-body.html - tradução da autora).

57 GARAPON Antoine. Le gardien des promesses: le juge et la démocratie. Paris: Éd. Odile Jacob, 1996, p. 87.

58 GRAU Eros. “O Ministro do Supremo que virou a página”. In NEITSCH, Joana, Gazeta do Povo, 13.4.2012. Acesso em 1.5.2017. URL: http://www.osconstitucionalistas.com.br/o-ministro-do-supremo-que-virou-a-pagina.

Muito embora a chamada espetacularização das sessões de julgamento não consista necessariamente um problema por si só – sendo o prejuízo maior à “imagem” da instituição e do Poder Judiciário – fato é que ela é porta de entrada para um problema mais grave: o do individualismo dos membros do Tribunal.

II. O incentivo à individualização e politizaçao do Tribunal

Parcela da doutrina aponta que com a transmissão das sessões de julgamento, os membros do STF se transformam em personagens centrais mais concentrados em sua própria imagem do que na elaboração de um bom raciocínio jurídico - o que enfraquece a colegialidade da instituição e impõe um raciocício perigosamente populista no Tribunal.60

Em outras palavras, em razão da presença das câmeras na sala de audiência, uma lógica de espetáculo é imposta aos membros do STF o que provoca ações teatrais a fim de gerirem sua imagem face ao público. Assim, “juízes são promovidos a celebridades, quase onipresentes pela via tecnológica.”61

O exemplo maior desta afrimação esta no status político alcançado pelo ex-Ministro Joaquim Barbosa. Em razão de sua maneira de conduzir o julgamento da ação penal n. 470 (criticada pelos juristas por seu “sensacionalismo” e “mediatização” e venerado pela opinião pública por sua defesa da “moralidade”), ele se tornou um dos personagens mais populares du Brasil, sendo inclusive cotada sua candidatura à Presidência da República nas eleições de 2014. 62

Mas se a Constituição e as leis exigem publicidade e transparência na atuação do STF, tal exigência se impõe ao processo e ao Tribunal enquanto instituição – e não diretamente aos seus membros.63 O risco é

de decisões serem proferidas mais em função de sua recepção mediática e popular e menos por razões jurídicas.64 E há muito a doutrina alerta para os riscos de um Poder Judiciário que julga em função da opinião

pública – dado especialmente a imparcialidade, a autonomia e a independência que devem imperar neste poder.65

No que se refere ao processo decisional do STF, este tipo de comportamento é prejudicial à colegialidade e à unidade da instituição. Neste sentido, mesmo o ex-Ministro Joaquim Barbosa reconheceu que este modelo de julgamento impede uma deliberação fundada no diálogo entre os Ministros. Segundo afirma, “a individualidade prevalece sobre o colegiado” – o que impede que seja proferida uma única e harmoniosa decisão.66

60MACHADO Joana de Souza. “Luz, câmera, jurisdição: tecnologia de comunicação e o mito da justiça transparente no Brasil”. Boletim Cedes, jul./set. 2013, p. 47.

61 MACHADO Joana de Souza. “Luz, câmera, jurisdição: tecnologia de comunicação e o mito da justiça transparente no Brasil”. Boletim Cedes, jul./set. 2013, p. 47.

62MACHADO Joana de Souza. “Luz, câmera, jurisdição: tecnologia de comunicação e o mito da justiça transparente no Brasil”. Boletim Cedes, jul./set. 2013, p. 48.

63 MOREIRA Barbosa. “A justiça no limiar de novo século”. Rev. TRT 9 Região. Curitiba, v. 17, n. 1, jan/dez 1992, p. 131. 64 MOREIRA Barbosa. “A justiça no limiar de novo século”. Rev. TRT 9 Região. Curitiba, v. 17, n. 1, jan/dez 1992, p.

131.

65 SCHREIBER Simone. “Notas sobre o princípio da publicidade processual no processo penal”. Revista SJRJ. Rio de

Janeiro, v. 20, n. 36, abr. 2013, p. 13.

66 GOMES Joaquim Benedito Barbosa. “Superexposição contamina julgamentos no STF, diz Barbosa”. Consultor Jurídico, 25.1.2014. Acesso em 2.5.2017. URL: http://www.conjur.com.br/2014-jan-25/superexposicao-contamina- julgamentos-stf-joaquim-barbosa

Como explica Conrado Hübner Mendes, em uma audiência realizada a portas fechadas é mais facil de obter um consenso, mudanças de opinião ou reconhecer um erro.67 A partir do momento em este processo

é público, o debate se torna enrijecido e mudanças de opinião são mais difíceis. Assim, fato é os debates júridico-argumentativos se tornam raros e os Ministros trazem seus votos já prontos para as sessões de julgamento. Consequentemente, o Tribunal não decide enquanto instituição única, mas como o somatório dos votos de seus membros.68

Em realidade, por adotar um modelo de deliberação colegiada externa (ou seja, em presença do público e nao à portas fechadas) com espaço para a existência de opiniões divergentes, o STF já se fundamenta mais sobre os indivíduos que o compõem do que sobre a instituição em si. 69 Mas tais críticas já existentes antes

mesmo da criação da TV Justiça são amplificadas a partir do momento que o Tribunal e os debates entre seus membros sao expostos, sem edição, ao público.

III. A ausência de claridade das decisões

Finalmente, na medida em que a unidade e a harmonia de uma decisão são condições de claridade e de inteligibilidade, sua ausência torna o entendimento do STF por vezes incompreensível. Assim, o excessivo individualismo do Tribunal, reenforçado pela presença das câmeras nas salas de julgamentos, expõe um terceiro problema: o da obscuridade das decisões do STF. Assim, através da transmissão ao vivo de suas audiências o STF alcança o efeito inverso do pretendido: a opacidade da justiça constitucional.

A apresentação institucional do resultado de uma deliberação colegial com a presença de opiniões divergentes segue, tradicionalmente, dois modelos: o per curiam (texto unico) ou o per seriatim (texto composto).

No primeiro caso, é divulgada a decisão do Tribunal acompanhada do eventual(is) voto(s) dissidente(s) – o que faz com que exista a ratio decidendi da decisão do Tribunal e a ratio decidendi da opinião divergente que poderá, futuramente, se tornar a ratio de outras decisões. No segundo caso, o acordão é composto de diversas opiniões e intervenções dos membros do Tribunal – o que torna a compreensão da ratio decidendi do Tribunal mais difícil.70

O STF, em razão de sua característica individualista, adota o segundo modelo: o dispositivo do acordão é publicado acompanhado da sucessão de opiniões e intervenções de cada Ministro.71 Assim, mesmo que o

resultado do julgamento tenha sido por unanimidade, a argumentação adotada por cada um dos Ministros pode ser absolutamente distinta. O dispositivo do acordão é unico, mas a argumentação juridíca é variavel e heterogênea. 72

67 CARVALHO Luiz Maklouf. “Data Venia, o Supremo”. Revista Piauí. Agosto 2010. Acesso em 2.5.2017. URL :

http://piaui.folha.uol.com.br/materia/data-venia-o-supremo/

68 SILVA Virgílio Afonso da. “Deliberação e diálogo no STF”. Revista de Direito Administrativo, v. 250, 2009, p. 217.

69 GARAPON Antoine. Le gardien des promesses: le juge et la démocratie. Paris: Éd. Odile Jacob, 1996, p. 87. No mesmo sentido: SCHAUER Frederick, ZECKHAUSER Richard. “Regulation by Generalization”. 1 Regulation & Governance. N. 68, 2007. 70 VALE André Rufino do. “É preciso repensar a deliberação no Supremo Tribunal Federal”. Consultor Jurídico. 1.2.2014. Acesso

em 2.5.2017. URL: http://www.osconstitucionalistas.com.br/e-preciso-repensar-a-deliberacao-no-supremo-tribunal-federal. 71 MACHADO Joana de Souza. “Luz, câmera, jurisdição: tecnologia de comunicação e o mito da justiça transparente no Brasil”.

Boletim Cedes, jul./set. 2013, p. 38.

Como afirmado, a adoção de um modelo de deliberação externo, com a presença de opiniões divergentes e a transmissão de tais audiências através da TV Justiça criam um ambiente propício para a transformação das audiências em espetáculos e Ministros em celebridades. Por consequência, as sessões plenárias se tornam também o espaço para longas exposições argumentativas excessivamente detalhadas e que por vezes extrapolam em muito o tema jurídico. Assim, “ existe um apego à beleza literária e, sobretudo, à erudição dos votos, e pouca atenção à especificidade dos fatos de cada caso”. 73 Por consequência, o

conhecimento do conteúdo das decisões proferidas pelo STF é menos acessível.

A titulo de exemplo, a opinião do Ministro Marco Aurélio na ação relativa ao aborto de fetos anencéfalos inicia-se com uma citação do sermão do primeiro domingo do advento, de um padre católico, a respeito do tempo – o que não possui nenhuma relevância jurídica para a questão jurídica analisada – e prossegue com uma análise de dados sobre o número destes fetos no mundo – o que, mais uma vez, é pouco relevante para a análise do caso concreto.74

Assim, Marcelo Lamy afirma que “os próprios julgadores transformaram a exposição pública em uma palestra, em uma colocação de uma sabedoria e erudição, deixando de lado a explicação, para o povo, do que está sendo decidido”.75 Não é, portanto, raro encontrar em um acórdão longas exposições sobre temas

da história do pensamento jurídico ou mesmo uma compilação de diferentes opiniões da doutrina jurídica nacional e estrangeira sobre o tema. E tudo isso agravado por uma linguagem jurídica pouco acessiva a um público de não juristas.

No caso dos fetos anencéfalos mencionado anteriormente, 110 notas de rodapé foram utilizadas para apresentar as obras jurídicas utilizadas, legislação complementar e os debates das audiências públicas realizadas. Ainda, para o princípio da laicidade no direito constitucional brasileiro, 10 páginas foram a ele dedicadas – mesmo se este tema já foi exaustivamente analisado em outros casos. Enfim, o que também é frequente é a utilização de expressões ou citações estrangeiras – como as em espanhol e italiano presentes neste acordão. 76

Ainda, a extensão das decisões é outro fator importante. Como indicado pelo próprio STF, desde a transmissão ao vivo das audiências da sessão plenária houve um aumento de cerca de 59% na quantidade de páginas de um acordão para uma ação direta de inconstitucionalidade. Muito embora a causalidade de tal aumento possa ser debatida, fato é que a motivação de uma decisão se relaciona pouco com sua extensão e mais como sua qualidade e inintengibilidade.77 A título de exemplo, a decisão sobre a união homoafetiva é