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2 MORALIDADE ADMINISTRATIVA: UMA CONTROVÉRSIA BRASILEIRA

2.2 A RELEITURA BRASILEIRA DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA

2.2.2 Tentativas dispersas de situar e conceituar a moralidade do ato administrativo

Antônio José Brandão, no artigo supracitado, reproduz a seguinte frase de Henri Welter, da obra Le Contrôle Jurisdictionnel de la Moralité Administrative - Étude de Doctrine et de Jurisprudence25, como se fosse a chave para o desvelamento dos sentidos subjacentes ao conceito em exame:

A moralidade administrativa, que nos propomos estudar, não se confunde com a moralidade comum; ela é composta por regras da boa administração, ou seja: pelo conjunto de regras finais e disciplinares suscitadas, não só pela distinção entre o bem e o mal, mas também pela idéia geral de administração e pela idéia de função administrativa.

Insistentemente referenciada no âmbito doutrinário26 e jurisprudencial27 até os dias de hoje, a máxima de Welter traz conceitos fluidos e abertos (“boa administração”, “bem

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Cuidadosamente analisada por José Guilherme Giacomuzzi (2002, p. 295), que encontra o trecho em questão na pág. 77 da citada obra, publicada em Paris pela Recueil Sirey, em 1929.

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Por todos, considerando inclusive referência errônea ao autor da frase, confiram-se: MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 39ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2013, p. 92; BRANDÃO, Antônio José. Moralidade Administrativa. Revista de Direito Administrativo (RDA). Rio de Janeiro, v. 25, jul./set. 1951, p.459; MADEIRA, José Maria Pinheiro. Administração Pública. 10 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 19; LIMA, Rogério Medeiros Garcia. O Direito Administrativo e o Poder Judiciário. 2 ed. rev. atual e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 136; BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Processo administrativo disciplinar. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 199.

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TRF-3 - AC: 1199 SP 2002.61.14.001199-5, Relator: JUIZA RAMZA TARTUCE, Data de Julgamento: 08/03/2004, Data de Publicação: DJU DATA:06/04/2004, PÁGINA: 403 (inteiro teor); TRT-4 - ROREENEC:

e mal”, “ideia geral de administração” e “função administrativa”) que, longe de delimitarem o sentido e a aferição da moralidade nas condutas praticadas no seio da Administração Pública, carecem de uma extensa digressão conceitual – que quase nunca se segue à sua menção.

Assim, a moralidade administrativa permanece sendo referenciada no direito brasileiro com base em referências de autores que fizeram referência aos autores franceses, que se referem a termos igualmente indeterminados, sem ao menos ir-se consolidando uma interpretação doutrinária orientada em torno de parâmetros concretos de análise.

O próprio Antônio Brandão, ao analisar o conceito proposto por Welter, julga que dele resulta a “mais clara noção de moralidade administrativa”, em virtude da especificação de que se trata de uma “moralidade especial”, distinta da moralidade comum (gênero do qual aquela seria espécie), com caráter disciplinar, composta por juízos sobre o bem e o mal a serem formulados a partir da concepção da função administrativa. A única ressalva que Brandão faz acerca da precisão do conceito de Welter é no tocante à “boa administração”. Ele afirma que, pelo contexto, a expressão trata da gestão administrativa, “que consiste em aplicar normas de direito público, satisfazer intêresses (SIC) gerais mediante serviços burocráticos apropriados e exercer poderes de polícia dentro dos próprios fins assinalados ao poder público pela função administrativa”, de modo que a “boa administração” requereria o exercício do senso moral comum juntamente com a não violação da ordem institucional. (BRANDÃO, 1951, p. 459)

À luz dessas ideias, o advogado português arremata que:

“(...) tanto infringe a moralidade administrativa o administrador que, para atuar, foi determinado por fins imorais ou desonestos, como aquêle (SIC) que desprezou a ordem institucional e, embora movido por zêlo (SIC) profissional invade a esfera reservada a outras funções, ou procura obter mera vantagem para o patrimônio à sua guarda. Em ambos êstes (SIC) casos, os seus atos são infiéis à idéia (SIC) que tinha de servir, pois violam o equilíbrio que deve existir entre tôdas (SIC) as funções, ou, embora mantendo ou aumentando o patrimônio gerido, desviam-no do fim institucional, que é o de concorrer para a criação do bem-comum.” (BRANDÃO, 1951, p. 459)

1083012 RS 01083.012, Relator: TÂNIA MACIEL DE SOUZA, Data de Julgamento: 04/11/1999, 12ª Vara do Trabalho de Porto Alegre (inteiro teor); TJ-MG - AC: 10143090224740001 MG, Relator: Belizário de Lacerda, Data de Julgamento: 05/08/2014, Câmaras Cíveis / 7ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 08/08/2014 (inteiro teor); TJPE – AC: 0420279-9 (Proc. Originário n.º 0000496-12.2013.8.17.1170), Relator Substituto: Des. Alfredo Sérgio Magalhães Jambo, Data de Publicação: 01/02/2016 (inteiro teor); TJPE – AC: 0393663-2 (Proc. Originário n.º 0000654-67.2013.8.17.1170), Relator: Des. José Ivo de Paula Guimarães, Data de Publicação: 05/10/2016 (inteiro teor); TJ-MG - AC: 10134110048896001 MG, Relator: Teresa Cristina da Cunha Peixoto, Data de Julgamento: 28/11/2013,Câmaras Cíveis / 8ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 09/12/2013 (inteiro teor); entre tantas outras.

Observa-se, portanto, que Brandão enquadra como violação à moralidade administrativa não apenas a conduta do administrador que age motivado por fins “imorais e desonestos”, no sentido de contrários à moral comum (cujo conteúdo não é problematizado), mas do administrador incompetente (que age fora de sua atribuição funcional) e daquele que superpõe ao bem comum o patrimônio sob sua guarda, ou seja, prioriza o interesse público secundário sobre o interesse público primário – sendo essas duas últimas condutas as violadoras da “ordem institucional”.

Embora faça uma digressão autêntica sobre o conteúdo do princípio da moralidade, Brandão parece estreitar em demasia os pormenores da moralidade, ao ponto de enxergá-la violada até mesmo no vício de competência do ato administrativo, o qual em muito dista da ideia inicial de controle dos móveis subjetivos do agente público.

Nessa senda, cabe relembrar que se pode constatar vício em qualquer dos cinco elementos do ato administrativo: 1) competência (do sujeito), 2) forma, 3) finalidade, 4) objeto e 5) motivo. Sobre o elemento motivo, Carvalho Filho (2016, p. 118) explica que se subdivide em duas classes: motivo de direito e motivo de fato – o primeiro, a situação de fato eleita pela norma legal como ensejadora da vontade administrativa; o segundo, a própria situação de fato ocorrida no mundo empírico. Se a situação de fato já está delineada na norma legal, trata-se de um ato vinculado ao motivo de direito; quando a lei não delineia a situação fática que deve motivar determinada atuação estatal, o agente é que deve eleger ou não determinado motivo de fato para subsidiar o ato administrativo, atendendo aos critérios da conveniência e oportunidade, tratando-se de um ato discricionário.

Assim, havendo um motivo de direito, a violação do ato administrativo a esse motivo seria uma questão de legalidade. Porém, havendo apenas um motivo de fato, eleito como intencionalidade do ato administrativo pela discricionariedade do agente público, o controle de legalidade restaria prejudicado, ao menos em seu aspecto formal, qual seja, de conformação à lei escrita. Foi justamente visando ao controle dessa eleição de motivos de fato, ou seja, da motivação dos atos discricionários da administração, não abarcados pela noção formal de legalidade, que surgiu a ideia de moralidade administrativa.

Voltando às tentativas de conceituação da moralidade administrativa, outro autor que propõe uma exegese bastante ampla do instituto, identificando sua violação em todos os possíveis vícios de motivo e objeto do ato administrativo, é o advogado e professor titular de Direito Administrativo da Universidade Cândido Mendes, Diogo de Figueiredo Moreira Neto.

Ele busca situar a moralidade administrativa na escolha dos motivos e objetos do ato administrativo, e não na intenção do agente – território da moral comum, para o autor. Assim, o autor visa fugir ao subjetivismo da matéria, embora a partir de uma relação direta entre os motivos e objetos do ato administrativo e o interesse público específico identificado com o elemento finalidade.

Moreira Neto designa como vício de moralidade administrativa o fato de o agente público praticar ato administrativo (contrato administrativo ou ato administrativo complexo) fundando-se em motivo: a) inexistente28; b) insuficiente29; c) inadequado30; d) incompatível31; ou e) desproporcional32. Da mesma forma, para o autor, haverá vício de moralidade administrativa se o agente público praticar ato administrativo (contrato administrativo ou ato administrativo complexo) cujo objeto seja: a) impossível, fática e juridicamente33; b) desconforme34; e c) ineficiente35. (MOREIRA NETO, 1992, p. 11-14)

Porém, ao tentar restringir a análise da moralidade administrativa a fatores “objetivos”, desvinculados dos móveis subjetivos do agente público, Moreira Neto deixa de considerar, por exemplo, a possibilidade de tais vícios serem causados por equívocos ou inabilidades do gestor. Dessa forma, pode-se concluir que a construção teórica de Moreira Neto, assim como a de Antônio Brandão, ao tentar fugir ao subjetivismo da matéria, cai num objetivismo que ignora a intenção do agente público, não diferenciando sua consciência e vontade, afastando-se da noção de imoralidade proposta por Hauriou, no sentido de desonestidade do agente público amparado pela lei formal.

Optando por uma abordagem ainda mais larga, Di Pietro (2001, p. 154) aduz que a moralidade deve ser identificada na intenção do agente, nos meios de ação escolhidos por ele, no objeto/conteúdo do próprio ato administrativo e, por fim, na sua interpretação. Ou seja, a

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Cujo exemplo seria a concessão de período de férias remuneradas a servidor que já tenha gozado esse benefício relativamente ao mesmo período.

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Cujo exemplo seriam atos punitivos praticados exagerando-se o motivo. 30

Cujo exemplo seria a utilização de motivos indiciários para aplicar sanções extremas que, por sua própria natureza categorial, exigiriam provas concludentes.

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Cujo exemplo seria a retenção da carteira de habilitação de um motorista pela autoridade de trânsito porque em seu veículo são encontrados petrechos de pesca predatória.

32

Cujo exemplo seria a retenção da carteira de habilitação apenas porque o agente de trânsito não se agradou de uma atitude do motorista.

33

Cujo exemplo seria um prefeito que pretender estabelecer uma barreira sanitária para proibir o ingresso de aidéticos em sua cidade.

34

Cujo exemplo seria um prefeito que, não satisfeito com a qualidade do ensino ministrado nas escolas municipais, resolver encerrar as atividades escolares até que sejam admitidos novos professores.

35

Cujo exemplo seriam as encampações ideológicas de concessionárias de serviços públicos, tão dispendiosas para os tesouros públicos quanto catastróficas para os usuários, embora vantajosas para a clientela política e para a captação de votos radicais.

moralidade administrativa deveria ser aferida durante todo o agir administrativo, desde a concepção até a feitura e execução do ato. Tal afirmação nos remete à pergunta: o que se deve buscar observar em todos esses momentos a fim de identificar a violação à moralidade administrativa? A resposta, porém, parece ser dada pela autora apenas na forma de exemplos:

[Há imoralidade] quando o conteúdo de determinado ato contrariar o senso comum de honestidade, retidão, equilíbrio, justiça, respeito à dignidade do ser humano, à boa-fé, ao trabalho, à ética das instituições. A moralidade exige proporcionalidade entre os meios e os fins a atingir; entre os sacrifícios impostos à coletividade e os benefícios por ela auferidos; entre as vantagens usufruídas pelas autoridades públicas e os encargos impostos à maioria dos cidadãos. [...] Por isso mesmo a imoralidade salta aos olhos quando a Administração Pública é pródiga em despesas legais, porém inúteis, como propaganda ou mordomia, quando a população precisa de assistência médica, alimentação, moradia, segurança, educação, isso sem falar no mínimo indispensável à existência digna. (DI PIETRO, 2001, p. 155)

Tal caminho doutrinário parece mais “seguro”, ao evitar polêmicas em torno da conceituação e da indicação de critérios identificadores da moralidade administrativa. Outra saída popular entre os doutrinadores é remeter o conteúdo da moralidade administrativa a outros princípios ou normas da administração pública, muitas vezes sem se debruçar sobre o significado desses, como se a simples vinculação da moralidade a outros institutos jurídicos ou valores sociais sanasse sua indeterminação conceitual. É o que se percebe da leitura da obra do administrativista brasileiro Celso Antônio Bandeira de Mello, ao relacionar a moralidade administrativa aos conceitos de lealdade e boa-fé:

De acordo com ele [o princípio da moralidade administrativa], a Administração e seus agentes têm de atuar na conformidade de princípios éticos. Violá-los implicará violação ao próprio Direito, configurando ilicitude e assujeita a conduta viciada a invalidação, porquanto tal princípio assumiu foros de pauta jurídica, na conformidade do art. 37 da Constituição. Compreendem-se em seu âmbito, como é evidente, o chamado os princípios da lealdade e boa-fé, tão oportunamente encarecidos pelo mestre espanhol Jesús Gonzáles Perez em monografia preciosa. Segundo os cânones da lealdade e da boa-fé, a Administração haverá de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo-lhe interdito qualquer comportamento astucioso, eivado de malícia, produzido de maneira confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos por parte dos cidadãos. (MELO, 2013, p. 122-123)

Esse padrão repete-se nos escritos de administrativistas de renome na matéria, tais como Juarez de Freitas e Carmem Lúcia Antunes da Rocha, que discorrem sobre a moralidade administrativa remetendo-a a valores sociais como honradez, lealdade, honestidade e justeza, conforme ilustrado nos trechos abaixo destacados:

Decerto, o princípio determina que se trate a outrem do mesmo modo ético pelo qual se apreciaria ser tratado, isto é, de modo virtuoso, honesto e leal. [...]. Tudo no combate contra qualquer modalidade de corrupção ou de lesão exclusivamente moral e imaterial provocada por intermédio das condutas omissivas e comissivas dos agentes públicos, destituídas de probidade e honradez. (FREITAS, 2012, p. 87-88)

Pelo princípio da moralidade administrativa, põe-se a conduta administrativa conformada aos valores de honestidade e justeza devida a cada qual dos cidadãos e dos administrados na base das condutas públicas. Quer-se por ele atingir-se a juridicidade administrativa justa, a dizer, havida com a justeza determinada segundo os paradigmas do Direito traçados como norte e limite da atuação dos agentes da Administração Pública. A moralidade administrativa desempenha, então, um papel preponderante e diretivo na garantia dos direitos subjetivos dos administrativos no exercício do poder manifestado pela função administrativa. (ROCHA, 1997, p. 9-10)

A respeito de conceituações como essas, José Guilherme Giacomuzzi afirma que compor o sentido da moralidade com noções, conceitos ou princípios tais como os de interesse público, proporcionalidade e razoabilidade, significa apenas dar a uma mesma realidade fenomênica nomenclatura diversa. (GIACOMUZZI, 2013, p. 175)

Percebe-se, portanto, a dificuldade dos doutrinadores em apontar um conteúdo ou uma definição mais tangível ou específica acerca do princípio da moralidade, bem como sobre em quais elementos do ato administrativo repousaria a violação a esse princípio. Resta, assim, inviabilizada a segurança jurídica de sua aferição no caso concreto.