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2. A ABORDAGEM DA PSICODINÂMICA DO TRABALHO

2.4. As estratégias de mediação do sofrimento

2.4.1 As estratégias de defesas

eufemização da percepção que os trabalhadores têm da realidade que os faz sofrer. Trata-se de um processo mental, visto que não altera a realidade da pressão exercida pela organização do trabalho. As estratégias de defesa têm o papel de adaptar o trabalhador às pressões de trabalho com vistas a conjurar o sofrimento e se diferenciam dos mecanismos de defesas do ego porque estes estão interiorizados e persistem mesmo sem a presença de uma situação externa. No ambiente de trabalho, as estratégias defensivas podem ser categorizadas como coletivas e individuais.

As estratégias de defesa coletiva se organizam como regras, em acordo partilhado e por consenso; elas dependem das condições externas que envolvem as relações intersubjetivas no coletivo de trabalho e, por isso, constituem objeto de interesse para a Psicodinâmica do Trabalho. Na sua construção, as contribuições individuais são coordenadas e unificadas pelas regras do grupo e deixam de funcionar a partir do momento que os trabalhadores não desejam mais vê-las funcionando de comum acordo, por exemplo, quando alguém do grupo rompe ou trapaceia as regras acordadas entre os participantes em relação a alguma ação no trabalho.

Desse modo, as estratégias coletivas de defesa contribuem de forma decisiva para a coesão do coletivo no enfrentamento do sofrimento engendrado pela pressão da organização do trabalho. Elas possibilitam a estabilização psíquica do trabalhador e contribuem para a construção do sentido do sofrimento no trabalho.

As defesas de negação são operadas coletivamente e expressam a negação do próprio sofrimento e do sofrimento do outro. São caracterizadas pela naturalização do sofrimento e das injustiças, e supervalorizam os resultados positivos, as desvantagens da produção e os fracassos. Também são expressas pelas atitudes de isolamento, desconfiança, individualismo e banalização dos riscos e das adversidades do trabalho. As estratégias de racionalização expressam a evitação e a eufemização da angústia, do medo e da insegurança vivenciados no trabalho. Essa modalidade de defesa busca justificativas socialmente aceitas para as situações desagradáveis e dolorosas, impõe a aceleração do ritmo de trabalho e de produtividade; é manifestada pelos comportamentos de apatia, resignação, indiferença, passividade, conformidade, controle sobre as pessoas e situações, presenteísmo, individualismo e outros (Dejours, 1992, 1994, 2001; Mendes, 1996; Mendes e Morrone, 2002; Ferreira e Mendes, 2003; Barros e Mendes, 2003).

Em relatos de pesquisas empíricas, Dejours (1992) evidencia que as estratégias defensivas coletivas são específicas para cada profissão, como é o caso dos trabalhadores da construção civil, cuja natureza do trabalho coloca em risco a sua integridade física. Assim,

para lidar com o medo de danos físicos esses trabalhadores adotam estratégias que consistem em zombar dos riscos, lançar-se aos perigos e desafios, negligenciar medidas de segurança, organizar provas de coragem para os recém-chegados como ritual de iniciação, como uma forma de testar a coragem e aceitação às regras do grupo mediante a demonstração de um comportamento de virilidade.

Nas circunstâncias de enfrentamento de riscos impostos pela atividade, o comportamento de virilidade do trabalhador expressa uma luta contra o medo e está associado ao exercício da força, da sedução, da agressividade e da capacidade de dominação e poder. Se não exercitá-las poderá ser considerado covarde e fraco, por isso, a estratégia defensiva coletiva depende da validação e do julgamento do outro.

Dejours (2001) estabelece uma articulação da estratégia defensiva viril com as práticas gerenciais adotadas pelas empresas nas situações em que, nas incumbências gerenciais de ameaça de demissão e de precarização contra seus pares e subordinados, os gerentes, para superar o medo e as pressões, apelam mais para a virilidade defensiva do que para a coragem moral. Essa estratégia converte o mal em bem, o trabalho sujo em virtude e coragem, como um meio para justificar suas condutas diante das imposições para infligirem sofrimento a outrem.

Quanto às estratégias de estatuto individuais utilizadas pelos trabalhadores para resistirem psiquicamente às pressões presentes em determinadas formas de organização de trabalho, Dejours (1992, p. 37) cita como exemplo o trabalho repetitivo presente na linha de produção, no trabalho por peças, nos escritórios de informática ou nos bancos.

A maioria das atividades existentes nesses setores segue o modelo de trabalho taylorizado, em que predominam regras, modos operatórios e tempos rígidos, além da separação da atividade intelectual de execução e divisão do coletivo de trabalho. Esse modelo de organização do trabalho engendra mais divisões entre os trabalhadores do que pontos de união; mesmo que eles partilhem coletivamente da vivência de um mesmo local de trabalho (Dejours, 1992, p. 39).

Embora atualmente esse tipo de organização tenha adotado outros contornos, em face da necessidade de redução de custos de produtividade, como foi indicado no presente trabalho pelas idéias de Kocyba (2007), também ocorre a intensificação dessas divisões, encobertas pelas novas formas de gestão que utilizam mecanismos mais sutis de vigilância, de submissão, de instauração da competição e de pressão.

Prosseguindo com as explicações anteriores, na organização do trabalho repetitivo os trabalhadores são confrontados, individualmente e na solidão, às violências produtivas. Para Dejours (2004), o trabalho repetitivo e sob controle de tempo leva à monotonia e ao tédio, pois, a repetição dos movimentos entra em conflito com o funcionamento psíquico espontâneo. Nesse tipo de tarefa, a subjetividade do trabalhador, ou seja, o seu pensamento e a sua criatividade torna-se um estorvo para a execução da atividade, porque provoca desatenção, faz cair a cadência da produtividade e altera a concentração, o que poderá levá-lo ao erro.

Diante desse risco, para conseguir enfrentar os constrangimentos da tarefa repetitiva, as demandas por produtividade e abreviação do tempo de contato com a tarefa, os trabalhadores aceleram as cadências dos movimentos. Então, mediante a estratégia de auto- aceleração, os trabalhadores obtêm a paralisia do pensamento. O trabalhador auto-acelera seu ritmo até que o seu sistema de percepção-consciência esteja saturado pela cadência (Dejours, 2004, p. 176). Esse é o estado de pensamento operatório descrito pela psicossomática.

Por conseguinte, a auto-aceleração dos movimentos, marcada pela repressão pulsional nas tarefas repetitivas e sob pressão de tempo (Dejours, 2004, p.50), é uma estratégia de estatuto individual para o trabalhador mitigar o sofrimento engendrado pela organização. E diante da impossibilidade de expressão do sentimento de insatisfação, tanto em relação ao conteúdo da tarefa quanto ao conteúdo ergonômico do trabalho, resta ao trabalhador a evasão da pulsão pela via sensório-motriz para manter o equilíbrio psíquico (Pezé, 2002).

Dado o fato de essas estratégias defensivas funcionarem como uma repressão pulsional, os trabalhadores submetidos a um trabalho repetitivo, com imposição de prazos, correm riscos de perder a autonomia subjetiva e moral para um modo operatório rigidamente concebido, que impede a atividade fantasmática e criativa. Em conseqüência, os trabalhadores aumentam a cadência e aceleram os seus ritmos de trabalho como uma forma de lutar contra a emergência de pensamento e de não desorganizar as atividades, permanecendo apenas o movimento frenético do corpo. Desse processo instala-se um embrutecimento, um torpor psíquico, um semi-embotamento em que o trabalhador não percebe mais o seu sofrimento.

Essa estratégia também tem o seu lado paradoxal. Ao mesmo tempo em que possibilita o enfrentamento do tédio, da monotonia e da insatisfação da tarefa repetitiva, ela também poderá levar à alienação. O seu uso constante poderá impedir o trabalhador de se dar conta do

que se passa consigo mesmo e ao seu redor, e levá-lo à alienação.

É importante enfatizar que a paralisia do pensamento é o resultado da defesa caracterizada pela auto-aceleração dos movimentos (Dejours, 2007). Entre as conseqüências do seu uso freqüente estão o aparecimento de doenças somáticas (como as LER/DORT) e a internalização das cadências e manutenção do pensamento operatório mesmo fora do ambiente de trabalho.

De um modo geral, a auto-aceleração, como estratégia defensiva individual, tem dupla função: de um lado, é necessária para a saúde mental, minimiza o sofrimento e, por isso, é positiva porque protege o trabalhador contra os efeitos deletérios do sofrimento, pois ela mantém o seu equilíbrio psíquico. De outro lado, ao ser apropriada pela organização do trabalho, favorece o aumento da produtividade. Neste último caso, essa estratégia corre o risco de alimentar um jogo perverso: o aumento da produtividade alimenta a possibilidade de reconhecimento para o trabalhador, porém, também funciona como armadilha que o insensibiliza contra aquilo que o faz sofrer, podendo levar à alienação, à não percepção dos limites do próprio corpo, à banalização do próprio sofrimento. Ainda, ela pode se tornar em uma ideologia e provocar distúrbios como as doenças ocupacionais: LER/DORT, depressão e desordens endócrino-metabólicas (Dejours, 1992; Dejours e Jayet, 1994; Dejours e Abdoucheli, 1994; Ferreira e Mendes, 2003; Mendes e Cruz, 2004).

As estratégias defensivas se tornam ideologia quando passam a ter um objetivo em si mesmas, ou seja, quando percebem algum tipo de ameaça a elas os trabalhadores defendem e alimentam uma resistência à mudança. Nesse caso, as estratégias correm o risco de serem transformadas em objetivo. O trabalhador toma o sofrimento como decorrente da ineficácia, da fragilidade e da impotência das estratégias defensivas para defendê-los contra o sofrimento e não como conseqüência do enfrentamento dos perigos e riscos das tarefas. Conseqüentemente, a estratégia de defesa passa a ser vista como uma promessa de felicidade é elevada à condição de ideologia, desencadeando conflitos que não geram soluções para o sofrimento de que é vítima. A passagem da estratégia de defesa coletiva à ideologia defensiva se dá mediante o deslocamento da ordem da realidade para a ordem do imaginário, do pensamento para o domínio da alienação.

Ainda para Dejours (2001), as práticas das estratégias e da ideologia defensivas convertem o mal em bem, ou seja, o trabalho sujo passa a ser visto como coragem. Surgem então o desprezo àqueles que são excluídos da empresa ou que não conseguem atingir as demandas da produção. Tal como a alienação, esse é também o lado perverso da estratégia

defensiva, pois poderá provocar retraimento da consciência intersubjetiva e insensibilizar o trabalhador contra aquilo que o faz sofrer.