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As vivências de prazer-sofrimento no trabalho

2. A ABORDAGEM DA PSICODINÂMICA DO TRABALHO

2.2 As vivências de prazer-sofrimento no trabalho

Colocada no centro da relação sociopsíquica entre o homem e o trabalho, a compreensão do sofrimento passa por uma visão dialética em que de um lado está o trabalhador, com suas necessidades, desejos e pensamentos em torno das relações de trabalho, às quais atribui sentido, e de outro lado, as exigências, as pressões e as ações de trabalho que modificam as percepções dos trabalhadores sobre si mesmos, os outros e o próprio trabalho.

A intersubjetividade resultante dessa relação homem-trabalho permite a atribuição de sentido ao trabalho de forma compartilhada, que poderá ser de prazer e/ou de sofrimento. Por ser o prazer-sofrimento um construto único e dialético, originado das mediações utilizadas pelos trabalhadores para manter a saúde e evitar o sofrimento, é fundamental a análise dessas estratégias de mediações, pois, graças a elas, os trabalhadores criam condições para mitigar o sofrimento, resistir aos efeitos patogênicos dos riscos do trabalho, no intuito de transformar e ressignificar o sofrimento como fonte de prazer (Dejours, 2004; Ferreira e Mendes, 2003).

A concepção do sofrimento como uma experiência vivenciada não significa que ele seja totalmente consciente, dadas suas particularidades; porém, ele é indissociável de uma corporalidade. O sofrimento é sempre do corpo engajado no mundo e nas relações com os outros e pode ser definido como uma vivência - às vezes inconsciente, individual e/ou coletiva

de um grupo de trabalhadores - de experiências dolorosas, como angústia, medo e insegurança, provenientes de conflitos e contradições originadas tanto do confronto entre desejo e necessidades do trabalhador quanto das pressões e exigências do trabalho.

O sofrimento se instala quando a organização de trabalho não permite ao trabalhador uma margem de liberdade para efetuar ajustes, rearranjos de modo a atender os seus desejos e as suas necessidades. A manifestação do sofrimento surge mediante vivências de ansiedade, insatisfação, indignidade, inutilidade, desvalorização e de desgaste no trabalho; ainda, pelo medo e desconfiança dos colegas e por morosidade, desânimo e desengajamento na realização das tarefas. Há também vivências de sentimentos de não reconhecimento dos méritos, de injustiça e iniqüidade em face da remuneração recebida.

Tomado em uma dimensão mais ampla, o sofrimento é manifesto no desaparecimento das comemorações coletivas nos locais de trabalho; na presença de tensões e conflitos entre as equipes; nas crises e rompimento da confiança recíproca; e na ausência de cooperação, de solidariedade entre os trabalhadores, que desencadeia atitudes individualistas, provoca desorganização dos vínculos afetivos e profissionais no ambiente de trabalho (Dejours, 1992, 1994, 2001; Ferreira e Mendes, 2003; Mendes e Morrone, 2002).

Por sua vez, o prazer é considerado, por um grupo de trabalhadores, como uma vivência individual e/ou coletiva de experiências de gratificação, de liberdade provenientes da satisfação dos desejos e das necessidades do trabalhador quando da mediação bem-sucedida dos conflitos e das contradições gerados pela organização do trabalho. O prazer também está relacionado ao bem que causa ao corpo e à mente e é manifestado por sentimentos de gratificação, realização, valorização, reconhecimento e de liberdade no trabalho. A vivência de prazer constitui um dos indicadores de saúde no trabalho, por viabilizar a estruturação psíquica, a identidade e a expressão da subjetividade individual vinculada à subjetividade no trabalho e por permitir a articulação de compromissos e a negociação da organização prescrita (Ferreira e Mendes, 2003; Mendes e Cruz, 2004).

Outro modo de obtenção de prazer no trabalho é mediante a ressonância simbólica, ou seja, quando os desafios colocados pelos objetivos da organização do trabalho fazem eco, simbolicamente, com a curiosidade subjacente às origens do trabalhador. Desse modo, articulam o teatro privado da história singular do sujeito com o teatro atual do trabalho. Dito de outro modo, o prazer é vivenciado quando a sublimação é possível, uma vez que a organização, as condições e as relações de trabalho permitem uma descarga do investimento pulsional. A luta pela prevalência do prazer é justificada pelo fato de ser o trabalho um

estruturante psíquico e que por isso, deveria ser uma forma de encontro com o prazer, embora historicamente nem sempre tenha assumido esse sentido (Dejours, 2001, 1994; Ferreira e Mendes, 2003; Mendes 1999).

Por estar em uma relação dialética, o prazer pode decorrer da ressignificação do sofrimento por via do reconhecimento do trabalho realizado. Esse processo ocorre quando a qualidade do trabalho, os esforços, as angústias, as dúvidas, as decepções, as preocupações, os desânimos, enfim, todo o investimento pessoal adquirem sentidos. O reconhecimento do trabalho contribui para a mobilização subjetiva da inteligência, para a construção da identidade e para transformar o sofrimento em prazer e, assim, assegurar a saúde.

As vivências de prazer-sofrimento ocorrem quando são colocados em confronto o funcionamento psíquico do trabalhador e a organização do trabalho. O trabalho provoca um sofrimento que não é patológico, e sim um sinal de alerta sobre as doenças ocupacionais, que poderão ser mascaradas ou ressignificadas por meio das estratégias de mediação (Dejours, 1999; Ferreira e Mendes, 2003; Mendes e Morrone, 2002).

Para Dejours (1992, 1994, 1996, 2001, 2004), o palco do sofrimento psíquico é a organização do trabalho, cuja concepção é inspirada nos princípios da Organização Científica do Trabalho formulada por Taylor e que estabelece a separação entre a concepção e a execução do trabalho, o que configura uma divisão entre corpo e pensamento. Esse modelo de organização do trabalho não contempla o psiquismo, que é o lugar do pensamento, da imaginação, dos afetos e do desejo, e provoca a desapropriação de um conhecimento. São desarticuladas as práticas coletivas, a livre organização do trabalho (na perspectiva do trabalho dos artesãos), as necessidades do trabalhador, restando assim uma poderosa vigilância sobre os corpos isolados, dóceis e desprovidos de iniciativa.