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AS FACES DA BRANCURA: A IDENTIDADE RACIAL BRANCA

No documento marcelodossantoscampos (páginas 56-60)

1 APRESENTAÇÃO

2.5 AS FACES DA BRANCURA: A IDENTIDADE RACIAL BRANCA

A compreensão da dimensão racial na constituição de nossa sociedade tem sido objeto de estudo em diversas áreas de produção de conhecimentos. Fato que traz, devido à complexidade envolvida na temática, um esforço de se repensarem as análises tidas como clássicas e, junto a elas, categorias e conceitos que necessitam de avaliações mais aprofundadas, por serem essenciais para o entendimento das relações raciais (SILVA, 2017).

Nesse sentido, esta pesquisa traz a branquitude como um dispositivo analítico a partir do qual analiso o pensamento racial de médicos de família brancos, numa perspectiva, como demonstra Silva (2017), de se tentar apreender as subjetividades desses sujeitos em contextos aparentemente não racializados, mas que produzem a hierarquia racial numa sociedade estruturalmente racializada.

Para a realização das discussões das categorias que emergiram nesta pesquisa e para que o conceito de branquitude seja melhor compreendido, optei por realizar uma breve abordagem dos principais elementos que se apresentam nos estudos críticos da branquitude. Da mesma forma, julgo relevante apresentar um suscinto histórico do surgimento dos estudos críticos da branquitude, que se deu, segundo Silva (2017), a partir da percepção de que era essencial contextualizar o papel da identidade racial branca como elemento ativo nas relações raciais de sociedades marcadas pelo colonialismo europeu.

Tal percepção nasceu da reflexão de alguns intelectuais, como Du Bois (1920; 1935), Frantz Fanon (1952), Albert Memmi (1957), Steve Biko (1978) e Alberto Guerreira Ramos (1978), os quais, em contextos sócio-históricos distintos, enfatizaram os efeitos de uma política de colonização e de racismo na produção das subjetividades tanto dos negros quanto dos brancos (CARDOSO, 2010; 2017). Assim, as pesquisas desses intelectuais passaram a desestabilizar a norma de que, nos estudos das relações raciais, apenas os negros eram tidos como objetos privilegiados, passando o branco também a ser tematizado (SILVA, 2014).

Na década de 1990, inúmeros intelectuais iniciaram uma reflexão sistemática sobre os fenômenos da branquitude e seus efeitos, difundindo esse tema por diversos campos do conhecimento, entre os quais direito, arquitetura, geografia, antropologia, psicologia, sociologia, tornando o branco um objeto de análise para a compreensão da dinâmica das relações raciais (WARE, 2004). O objetivo desses acadêmicos que se dedicavam a estudar a branquitude era, segundo Henry A. Giroux (1999),

[...] acumular uma quantidade substancial de conhecimento, explorando o significado da análise da branquitude como uma construção social, cultural e histórica. Esse trabalho se caracterizou por várias tentativas para situar a branquitude como uma categoria racial e analisá-la como um locus de privilégio, poder e ideologia. Além disso, esse trabalho procurou examinar criticamente de que modo a branquitude, como identidade racial, é experienciada, reproduzida e tratada pelos homens e mulheres brancos que se identificam com suas pressuposições e valores (GIROUX, 1999, p. 101).

Existe um consenso por parte dos pesquisadores de que a branquitude é um conceito fluido que, ao sofrer as influências dos diversos contextos sociais e históricos, vai modificando- se. No entanto, as diversas pesquisas voltadas para esse tema identificam características recorrentes, o que não subtrai a complexidade desse fenômeno e, consequentemente, a dificuldade para sua definição (SILVA, 2017).

A branquitude, portanto, é entendida como a identidade racial do branco. Concebida como um constructo ideológico de poder e produzida em um contexto do projeto moderno de colonização europeia, tem como importante característica a não marcação, ou seja, o silenciamento, por parte do branco, dos privilégios materiais e simbólicos provenientes da pertença à cor branca (BENTO, 2002; SCHUCMAN, 2012; STEYN, 2004).

Objetivando promover uma melhor compreensão desse conceito, Frankenberg (2004), a partir dos resultados de suas pesquisas, constrói um quadro de “marcação” da branquitude com oito elementos estruturais:

1. A branquidade é um lugar de vantagem estrutural nas sociedades estruturadas na dominação racial; 2. A branquidade é um ponto de vista, um lugar a partir do qual nos vemos e vemos os outros e as ordens nacionais e globais; 3. A branquidade é um locus de elaboração de uma gama de práticas e identidades culturais, muitas vezes não marcadas e não denominadas como nacionais ou normativas, em vez de especificamente raciais; 4.A branquidade é comumente redenominada ou deslocada dentro das denominações étnicas ou de classe; 5. Muitas vezes, a inclusão na categoria branco é uma questão controvertida e, em diferentes épocas e lugares, alguns tipos de branquidade são marcadores de fronteira da própria categoria; 6.Como lugar de privilégio a branquidade não é absoluta, mas atravessada por uma gama de outros eixos

de privilégio ou subordinação relativos; estes não apagam nem tornam irrelevante o privilégio racial, mas modulam ou modificam; 7. Branquidade é produto da história e é uma categoria relacional. Como outras localizações raciais, não tem significado intrínseco, mas apenas significados socialmente construídos. Nessas condições, os significados podem parecer simultaneamente maleáveis e inflexíveis.8. O caráter relacional e socialmente construído da branquidade não significa, convém enfatizar, que esse e outros lugares raciais sejam irreais em seus efeitos materiais e discursivos (FRANKENBERG, 2004, p. 312-313).

Tais estudos tentam dar subsídios para a compreensão das construções sócio-históricas e das forças contemporâneas que sustentam a branquitude nas sociedades modernas, bem como as representações que constituem e determinam a identidade racial branca. Assim, sendo a branquitude produto de uma construção social, a produção acadêmica sobre esse tema estrutura- se numa perspectiva de se elaborarem estratégias antirracistas que possam tentar neutralizar ou mitigar, nessa identidade, características opressoras e, consequentemente contritas, ressignificando o próprio lugar do branco nas sociedades racistas (WARE, 2004).

Partindo dessas primeiras considerações sobre a branquitude, é importante reafirmar a relevância do quesito cor no processo de construção da identidade racial branca, visto que, ao longo da história da humanidade, a coloração da pele adquiriu diversos significados que influenciaram sobremaneira na estruturação do pensamento racial branco. Durante séculos, como bem detalhado na primeira seção deste trabalho, ela permaneceu fortemente ligada às questões de ordem religiosa e moral, servindo como critério de inclusão e exclusão social, o qual, apenas com o passar do tempo, foi desafiado e substituído pelo que se denominava racismo científico. Neste, a partir especialmente da biologia, ideias mais naturalizadas a respeito das diferenças humanas mantiveram a binaridade com enaltecimento e supervalorização da cor branca em detrimento da não branca.

Tais pensamentos e ideias que atribuíam significados valorativos à cor da pele podem ser observados na dinâmica das relações raciais na sociedade brasileira, a qual, a despeito da multiplicidade observada na classificação racial, consequência do processo de miscigenação, tem as desigualdades sociais agrupadas em brancos e não brancos. Comprovação de que, “apesar das diferentes cores com as quais os brasileiros se autoidentificam, os acessos às oportunidades sociais obedecem a uma lógica hierárquica bipolar” (SCHUCMAN, 2014, p. 94). Nesse sentido, os estudos da identidade racial branca procuram desvelar o poder simbólico da branquitude como significante da corporificação do privilégio, o que ocorreu a um custo imensurável para os não brancos e, em certa medida, para os brancos, apontando para a construção de projetos políticos que visem investigar as possibilidades futuras de

desconstrução desse status quo em que a branquitude se encontra nas sociedades racializadas (WARE, 2004).

Para esta pesquisa, interessa-nos o que Cardoso (2010) discute ao imergir na complexidade de uma identidade não homogênea e que se modifica no decorrer do tempo e espaço, demonstrando que o consenso está no que se refere ao fato de a branquitude ser um lugar de privilégios simbólicos, subjetivos, objetivos, que colaboram para a construção social e reprodução do racismo. De acordo com o contexto, ser branco significa ser e estar no poder.

Segundo Cardoso (2017), a branquitude pode ser categorizada em uma identidade racial branca crítica e uma acrítica. A crítica seria aquela pertencente ao indivíduo ou grupo de brancos que são conscientes de seus privilégios materiais e simbólicos e, consequentemente, desaprovam publicamente o racismo. A branquitude acrítica geralmente está relacionada aos grupos e indivíduos brancos que coadunam com o ideal de supremacia racial branca e, com isso, de forma silenciosa ou explícita, não desaprovam os pensamentos e comportamentos racistas.

Tal discussão, por contextualizar essas características da branquitude, faz-se essencial quando objetivamos implicar o branco na problemática das relações raciais, especialmente no que tange à sua suposta invisibilidade dentro de tais relações. Invisibilidade que, segundo Cardoso (2017), é delegada bem mais à falta de percepção sobre os privilégios inerentes à pertença ao grupo branco, do que à inexistência de percepção do sujeito branco como ser racializado.

Nessa perspectiva, Miranda (2017) criou uma diferença conceitual entre invisibilidade e neutralidade relacionada à branquitude, apontando como invisibilidade a inconsciência, que pode ser variável da situação de privilégios, bem como um posicionamento passivo de acomodação diante dos mesmos, o que leva a uma ausência de autocrítica com consequente colaboração para manutenção dos padrões de privilégios. Já a neutralidade seria a consciência constante do lugar de privilégios, com um posicionamento ativo, dissimulado e intencional a respeito dos mesmos, tendo a ausência de autocrítica como a motivadora para a manutenção de uma zona de conforto.

Logo, a invisibilidade pode ser considerada relativa a uma fase, de modo que diversas situações podem colaborar para o despertar reflexivo do sujeito branco a respeito de seus privilégios materiais e simbólicos. O autor destaca como caminho para esse despertar reflexivo do branco o convívio com pessoas negras, compreendido como condição essencial para a emergência de uma autocrítica a respeito de tais vantagens, visto que as mesmas se evidenciam

na relação direta com a negritude, para a qual tais benefícios historicamente foram negados (MIRANDA, 2017).

As diferenças sociais estruturais entre brancos e negros, nas quais os primeiros são detentores de vantagens e os segundos de prejuízos acarretados pela concessão de privilégios aos brancos que retroalimentam práticas racistas no cotidiano, corroboram a construção identitária negativa dos negros em nossa sociedade. Segundo Jesus (2017), essa negatividade das subjetividades individual e coletiva de negros e negras, a negação de direitos e a descaracterização da discussão racial são resultantes do privilégio da branquitude, na medida em que esta se apresenta como a base principal para a manutenção da estrutura racista, impondo perdas simbólicas e concretas nesse processo de inferiorização e marginalização dos negros.

Assim, verifica-se que a construção sócio-histórica da branquitude nas sociedades racializadas, como a brasileira, constituiu-se enquanto padrão de normalidade, a partir das representações que são produzidas a respeito dessa identidade racial e do consequente processo de disseminação de tais representações entre as diversas gerações e classes sociais.

No documento marcelodossantoscampos (páginas 56-60)