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RACISMO ABJETO: PRECISAMOS FALAR SOBRE ELE

No documento marcelodossantoscampos (páginas 60-66)

1 APRESENTAÇÃO

2.6 RACISMO ABJETO: PRECISAMOS FALAR SOBRE ELE

Realizada essa incursão no processo de construção ocidental do conceito de raça, apreendendo-o em suas especificidades e intencionalidades, faz-se primordial, para a validação das análises propostas por esta pesquisa, adentrar no terreno árido do racismo, alvo de silenciamentos, negações e resistências, particularmente pelo branco, e em especial o branco brasileiro.

Vivemos ainda sob a influência do mito da democracia racial, a despeito das inúmeras evidências empíricas que comprovam não apenas a existência do racismo, mas, sobretudo, que ele é estrutural na formação da sociedade brasileira. Para nós brancos, a aproximação com o legado histórico da escravidão e com a responsabilidade pela produção e manutenção do racismo e das desigualdades raciais representa o desvelamento de um pacto, nem sempre consciente, porém sempre presente, com o ideal da supremacia racial branca. Ideal abjeto tão naturalizado, que, por assim o ser, torna o privilégio branco investido de uma suposta isenção, que se materializa em uma série de discursos defensivos diante de qualquer tentativa de implicação com a questão.

O mais comum desses discursos é que, no Brasil, a desigualdade é reflexo de mecanismos discriminatórios de classe, e não uma consequência direta do racismo. Outra explicação para as desigualdades raciais é que estas são resultantes de características

geográficas desfavoráveis, já que os negros são mais propensos a residir em áreas com poucos recursos. Justificativas frágeis que não sustentam o fato de que tais desvantagens de recursos se devem a uma diversidade de fatores, tais como condições históricas de vida, educação, riqueza, acesso a certos círculos sociais, capital social e autoestima. Portanto, a realidade imposta a negros e negras historicamente quanto à escassez de recursos nada mais é do que o resultado direto do que se conhece por racismo, embora seja considerado um fenômeno complexo,

É uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam (ALMEIDA, 2018, p. 25).

O racismo, portanto, surge nas sociedades ocidentais a partir do momento em que a chamada “ciência moderna”, ao tornar o homem o seu objeto de estudo, criou uma ideologia que postulava uma diferença imanente entre os seres humanos, a partir da qual os brancos europeus ocupavam o ponto mais alto dessa hierarquia, constituindo-se como referência inquestionável de superioridade civilizatória. Assim, as supostas diferenças entre brancos e negros foram traduzindo-se em oportunidades distintas na aquisição de bens materiais e simbólicos, posições desiguais na hierarquia social, na segregação territorial dos negros e nas desigualdades de direitos. Essas diferenças e desigualdades estruturaram e possibilitaram o processo de colonização europeia, a escravidão e a expansão do capitalismo.

Faz-se importante para esta pesquisa fazermos uma distinção entre racismo, preconceito racial e discriminação racial. Esses conceitos inter-relacionam-se, sendo os dois últimos determinados pelo racismo, como também determinantes para que ele se produza: “O preconceito racial é o juízo baseado em estereótipos acerca de indivíduos que pertençam a um determinado grupo racializado, e que pode ou não resultar em práticas discriminatórias” (ALMEIDA, 2018, p. 25). Já a discriminação racial é compreendida como uma forma de tratamento diferenciado orientada a membros de grupos racialmente identificados. Nesse sentido, a discriminação tem no poder o seu requisito essencial, visto que, sem ele, não há possibilidade de atribuições de vantagens ou desvantagens por conta da raça. Ela pode, portanto, como nos aponta Almeida (2018), ser direta, quando há um repúdio ostensivo contra indivíduos ou grupos, motivado pela condição racial, ou indireta, quando a situação específica de determinados grupos raciais é absolutamente ignorada ou sujeitada a regras de neutralidade que desconsideram as desigualdades raciais e diferenças sociais.

Tais considerações são importantes porque o racismo, embora se materialize como um ato discriminatório ou mesmo um conjunto desses atos, precisa ser definido em seu caráter sistêmico, a partir do qual processos de condições de subalternidade e privilégios passam a fundamentar as relações entre grupos raciais distintos, não somente no campo das relações interpessoais cotidianas, mas também no político, econômico e jurídico.

Isso posto, a análise de fenômeno tão complexo não pode ficar circunscrita ao seu caráter individual a partir do qual o racismo é reduzido a uma questão ética ou psicológica de determinado indivíduo ou coletividade, os quais, a partir de motivações preconceituosas, agiriam de maneira discriminatória contra determinados grupos raciais. Embora isso, de fato, também ocorra, faz-se importante a calibração do olhar para essa questão, visto que por esse ângulo individualista “não haveria sociedades e instituições racistas, mas tão somente indivíduos racistas que agem isoladamente ou em grupos” (ALMEIDA, 2018, p. 28).

Para este estudo, mais do que essa dimensão individual, interessa-me a concepção institucional, na qual o racismo é tratado como resultado do funcionamento das instituições, cuja dinâmica de atuação propicia a aquisição de privilégios para o grupo racial hegemônico (no nosso caso o branco) e desvantagens para os considerados inferiores e destituídos de poder (não brancos). Segundo Almeida (2018), as instituições representam a materialização das formas sociais (mercadoria, dinheiro, Estado, direito) que coordenam comportamentos que tanto orientam a ação social, como a tornam possível, visando a uma estabilidade do sistema social. Tal estabilidade somente será garantida quando as instituições absorverem e normalizarem os conflitos e antagonismos inerentes à vida social, estabelecendo normas e padrões que orientam as ações dos indivíduos:

[...] é no interior das regras institucionais que os indivíduos tornam-se sujeitos, visto que suas ações e seus comportamentos são inseridos em um conjunto de significados previamente estabelecidos pela estrutura social. Assim, as instituições moldam o comportamento humano, tanto do ponto de vista das decisões e do cálculo racional, como dos sentimentos e preferências (ALMEIDA, 2018, p. 30).

Nesse sentido, o racismo institucional ampara-se na tese de que os conflitos raciais também são parte das instituições e que as desigualdades raciais são produzidas não somente pela ação isolada de determinados grupos ou indivíduos racistas, mas sobretudo por serem as instituições constituídas por grupos hegemônicos, que se utlizam de regras institucionais para impor seus insteresses políticos e econômicos. Portanto, segundo Almeida (2018), o racismo institucional tem o poder na centralidade das relações raciais, numa perspectiva de dominação.

Os detentores desse poder são aqueles que dominam a organização política e econômica da socidade, que, ao institucionalizarem seus interesses, impondo a ela regras, padrões de conduta e certas racionalidades, legitimam e tornam naturalizado o seu domínio.

Segundo Foucault (1999), o século XIX foi marcado por um fenômeno fundamental: uma tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo. Ele denominou tal fenômino de biopoder, que consiste em um conjunto de mecanismos que permitem inserir as características biológicas fundamentais da espécie humana em uma estratégia de poder, visando à regulação dos corpos para o controle político e econômico da sociedade. Tratava-se, segundo ele, da “estatização do biológico”. Assim, tal poder incide sobre a vida, visando ao seu cotidiano, bem como ao seu incansável melhoramento, à multiplicação e à incitação. No entanto, as transformações assistidas pela civilização ocidental a partir da emergência do biopoder, cujo propósito era aperfeiçoar os processos vitais, não significaram o extermínio ou neutralização das batalhas e genocídios que as acompanharam. De acordo com o Foucault (1999), na era do biopoder, a morte de alguns garantia a sobrevivência e existência de todos. A equivalência de vida e morte, encontrada na base do biopoder, explicaria a emergência e manutenção de fenômenos como o racismo de Estado. Logo, esse racismo poderia ser compreendido como:

O meio de introduzir afinal, nesse domínio da vida de que o poder se incumbiu, um corte: o corte entre o que deve viver e o que deve morrer. No contínuo biológico da espécie humana, o aparecimento das raças, a distinção das raças, a hierarquia das raças, a qualificação de certas raças como boas e de outras, ao contrário, como inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo do biológico de que o poder se incumbiu; uma maneira de defasar, no interior da população, uns grupos em relação aos outros (FOUCAULT, 1999, p. 304).

Essa, então, seria a primeira função do racismo: tratar a espécie, subdividir a espécie em subgrupos, que serão as raças, fazendo censuras nesse contínuo biológico a que se dirige o biopoder. Por outro lado, teria uma segunda função, que seria “permitir o estabelecimento entre a minha vida e a morte do outro, de uma relação que não é mais relação militar e guerreira de enfrentamento, mas uma relação do tipo biológico” (FOUCAULT, 1999, p. 305). Assim, com o desaparecimento das espécies inferiores, dos indivíduos anormais, a vida, de uma forma geral, se torna mais sadia numa perspectiva de purificação (FOUCAULT, 1999).

A importância de tal ideia, segundo Foucault (1999), está no fato de que tirar a vida de outrem só é admissível no sistema de biopoder, caso tal imperativo de morte não se deva à vitória dos adversários políticos, mas tão somente à eliminação de perigo biológico e ao fortalecimento, entendido como consequência direta dessa eliminação, da própria espécie ou da

raça. A raça e o racismo, são, em última instância, condições de aceitabilidade para se tirar a vida em uma sociedade de normalização. Em outras palavras, condição para que se possa exercer o direito de matar. Direito este que deve ser compreendido não apenas como o assassínio direto, mas, sobretudo, de outras formas indiretas de se tirar a vida: o fato de expor a morte, aumentando naturalmente o seu risco, ou tão somente a morte política, a expulsão, a rejeição, etc. Fato secularmente vivenciado pelo segmento não branco da população brasileira. Com isso, compreende-se o vínculo que se estabeleceu entre a teoria biológica do século XIX e o discurso do poder. Segundo Foucault (1999), o evolucionismo darwinista, com todos os seus conceitos, passou a ser naturalizado, não apenas como uma transcrição biológica do discurso político, mas, sobretudo, como uma forma de se pensarem e justificarem as relações de colonização europeia, a escravidão, a criminalidade, os fenômenos da loucura, a história das sociedades com suas diferenças de classe, etc. (FOUCAULT, 1999).

Tal fato, pela visão de Foucault (1999), permite a compreensão do porquê de o racismo ter-se desenvolvido nessas sociedades modernas, que se estruturaram no biopoder, em que o direito à morte era requerido. Em última instância, economia do biopoder justificava e legitimava o genocídio colonizador, segundo o princípio de que a morte do racialmente inferior, representaria o fortalecimento biológico de uma raça superior, o que facilitaria o funcionamento do Estado para o exercício de seu poder soberano.

O racismo, portanto, por ter sido uma potente estratégia de dominação das sociedades ocidentais modernas, acabou por se constituir em um produto da própria estrutura de tais sociedades. Para além de uma patologia social ou de um desarranjo institucional, ele é uma decorrência do modo “normal” como se constituem e se organizam as relações políticas, econômicas e jurídicas. Por assim ser, ele é estrutural. Assim, comportamentos individuais e processos institucionais racistas são derivados de uma sociedade na qual o racismo é elemento estruturante do processo social.

A partir dessa perspectiva do racismo como processo estrutural, pode-se, também, compreendê-lo como processo político, visto que o caráter sistêmico de discriminações que influencia a organização das sociedades depende diretamente de um poder político que viabilize a discriminação sistemática de grupos sociais inteiros. Esse aspecto político, de acordo com Almeida (2018), materializa-se em duas dimensões: a primeira compreendida como institucional, visto estar o Estado na centralidade das relações políticas das sociedades contemporâneas, utilizando de regulações jurídicas e extrajurídicas; e a segunda ideológica, na qual o Estado, a despeito das fraturas causadas pelo racismo, sexismo e divisão de classe, cria narrativas que intencionam a unidade social.

Na dimensão institucional somente o Estado pode criar meios repressivos, dissuasivos ou persuasivos para que o racismo e a violência por ele engendrados sejam incorporados às práticas cotidianas. E na dimensão ideológica, o Estado e outras instituições sociais, como parte do aspecto político e do exercício de poder, criam discursos que alimentam o imaginário social de uma unificação ideológica. O que é cotidianamente reforçado e disseminado não somente pelo Estado, mas pelas escolas, universidades e meios de comunicação de massa.

Almeida (2018), a partir dessas considerações a respeito da “politicidade do racismo”, traz uma importante contribuição para que se compreenda um recurso defensivo muito utilizado pela branquitude, quando convocada a refletir sobre sua responsabilidade na produção e manutenção do racismo. Muito frequentemente, brancos, ao serem confrontados com a questão racial, utilizam o argumento do racismo reverso, que seria aquele dirigido a eles pelos negros. Tal proposição é um equívoco, visto que membros de grupos racialmente minoritários podem até ter comportamentos preconceituosos e discriminatórios, entretanto nunca terão possibilidade de impor desvantagens sociais, seja direta ou indiretamente, a outros grupos raciais majoritários no que tange à hegemonia do poder.

Outro aspecto importante trazido por Almeida (2018) é a análise do racismo enquanto processo histórico. A especificidade da construção do racismo como estrutural está intimamente relacionada à peculiaridade com que cada sociedade é formada, considerando uma trajetória que é singular e que dará às formas sociais (economia, Estado e direito) particularidades que somente podem ser compreendidas mediante uma análise das experiências históricas determinantes na formação social. É nesse sentido que a formação dos Estados Nacionais contemporâneos é compreendida como projeto político, em que as classificações raciais foram essenciais para a definição de hierarquias sociais, bem como para a legitimidade na condução do poder estatal no que se refere às estratégias econômicas e de desenvolvimento. Tal fato é comprovado pelas distintas formas de classificação racial. No Brasil, por exemplo, a definição racial negra, além de características físicas de ascendência africana, é também determinada pelo pertencimento de classe demonstrado na capacidade de consumo e circulação social.

No documento marcelodossantoscampos (páginas 60-66)